Paulo Rebêlo 15 de fevereiro de 2016

(www.rebelo.org)

O que leva uma pessoa a deixar de ter coração? Mistérios indecifráveis da vida, apesar de todo mundo saber suas próprias causas e respostas. Acho engraçado quando acusam este pequeno e indefeso Super Ranzinza de não ter mais coração.

Ou, na visão de outrem, de ter aprendido a isolar sentimentos em causa própria. Mais um pouco e fico rico dando palestra Brasil afora.
Não deixa de ser uma má idéia.

A natureza se adapta ao meio. Então, a resposta ranzinza é objetiva e, não duvido, verídica: o coração desceu para ajudar o fígado.

Na falta do funcionamento de uma coisa, esta precisa ajudar outra que esteja sobrecarregada. No caso, nada melhor do que um apoio logístico para o fígado em exaustão.

Por outro lado, a psicologia clássica nos diz que quase todos nossos problemas e comportamentos, quando adultos, podem ser frutos de acontecimentos da infância. Talvez devido à sobrecarga do fígado, tenho percebido minha memória RAM (de acesso recente) apresentando seguidos defeitos; contudo, o disco rígido (de armazenamento contínuo e prolongado) ainda funciona muito bem e resolvi voltar no tempo para
verificar.

FREUD EXPLICA —

Minha primeira paixonite se chamava Daniela. Eu tinha cinco anos de idade e estava na alfabetização. Sempre chegava atrasado e ela sempre guardava meu lugar ao lado dela. Tudo bem que, na hora do recreio, era cada um para seu lado.

Quando acabava a aula, ela sempre perguntava: “você quer que eu guarde seu lugar amanhã?”. Eu sempre chegava por último na sala e ficava lá nas primeiras filas por causa dela. Será que foi por isso que, muitos anos depois, mesmo na faculdade, meu lugar predileto sempre foi a última cadeira no canto da parede? Freud explica, eu não.

Já para o final do ano, a Daniela disse que no próximo ano os pais dela iam colocá-la para estudar de manhã, pois era o começo do primário. Eu continuaria estudando à tarde. Foi quando resolvi criar coragem e pedir para namorar com ela.

Então, todo dia no caminho da escola – uns dez minutos de caminhada – eu vinha pensando em como ia pedir a coitada em namoro. Na hora de falar, eu desistia. O tempo passou, o ano foi chegando ao fim e só pelos últimos dias de aula é que resolvi falar. E a Daniela perguntava o motivo de eu estar chegando mais cedo no final do ano.

Quando criei coragem, chamei a criatura e perguntei se ela queria namorar comigo. Foi quando ela jogou aquele olhar singelo que só as mulheres sabem fazer, uma mistura de espanto com meiguice, e falou: “mas a gente já não é namorado”?

Se “a gente era namorado” eu não sei, mas acho que o namoro terminou ali mesmo. Freud também explica, mas tenho cá minhas dúvidas de que aquele desastre me perseguiu por muito tempo.

FLORES DE PLÁSTICO —

Acho que a psicologia clássica não está com nada (a moderna, menos ainda), cada caso é um caso e no final, o fato é que tem gente que é desastrada mesmo e acabou-se. É a coisa mais normal do mundo, afinal.
Os seres muito ranzinzas, em geral, não são diferentes.

Lembro que só mandei flores para alguém duas vezes na minha vida. Sempre achei a maior besteira, talvez ainda ache, mas com o tempo a gente aprende que é melhor fazer uma besteira do que não fazer achando que é besteira — mesmo quando se sabe que vai quebrar a cara ou levar um fora sustento. O importante é que, no fim, tudo vira história para os netinhos…

Na primeira vez, comprei as flores pessoalmente. Tinha um bar logo ao lado da floricultura, era o único jeito de criar coragem. Tomei meu Bacardizinho para perder um pouco da razão e fui na cara e na coragem entregar as flores.

Acontece que houve um erro de cálculo e a criatura não estava em casa. E naquela época, celular era coisa de Arquivo-X.

Deixei as flores na portaria com o aviso. E deu que o porteiro acabou entregando as flores para a pessoa errada. Só fui descobrir isso dias depois.

Anos se passaram. Resolvi superar o trauma. Quando achei que tinha encontrado uma provável substitua à moça das primeiras flores, resolvo que desta vez não pago mico. A própria loja fez a entrega das flores. Dias se passaram e nenhuma notícia da arataca. Pronto, só faltava a entrega ter sido errada também.

Mas, não foi. Antes tivesse sido. Entregaram certo e, ao ver as flores, a criatura deve ter entrado em pânico. Sumiu do mapa. Semanas depois, fui descobrir que o motivo era bem simples (como quase tudo na vida): estava na cara de que o Super Ranzinza já tinha uma certa queda por ela e aí perdeu a graça, morgou. A conclusão é que poderia ter dado certo se o fator “flores” não existisse.

Pensei cá com os botões enferrujados: mas 99,9% das mulheres não reclamam que homem não é romântico, que não quer namorar? Olha, acho que Freud não explica essa. Só a ciência. É coisa da genética. Devo ser um cientista frustrado e vou começar a estudar Química e Física agora. Bom, pensando bem, melhor deixar isso para os netos, agora não dá mais tempo.

Coitado do meu fígado. Acho que ele já pensava que ia perder a valiosa ajuda vinda lá de cima na hora do metabolismo etílico. Fica o recado: companheiro, não se preocupe. No que depender da genética, você terá apoio logístico por mais um bom tempo. Mas ninguém pode dizer que não tentei.

Aliás, não dizem que cachorro é o melhor amigo do homem? O mestre Vinícius de Moraes já ensinava: “Uísque é o cachorro engarrafado”.
Para ter um amigo assim, tem que tratar muito bem do fígado mesmo.

Engraçado é que as mulheres, quando querem nos xingar feio, nos chamam de cachorro. Sei não, a gente é um bicho muito estranho mesmo. (24.10.2003)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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