Vladimir Souza Carvalho 15 de fevereiro de 2016

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A muriçoca sobrevoa as minhas pernas. Sinto, aqui e ali, os pousos, porque me incomoda. Bato com a mão e a paz volta a reinar por poucos instantes para depois tudo retornar a ser como dantes. É bom avisar que estou usando o computador, o que facilita a ação do inseto,  a preferir efetuar seus ataques no escuro. As pernas, enfiadas abaixo do teclado, se vestem de limitada escuridão, tornando-se assim objeto da cobiça da muriçoca. Incomodado, termino me levantando, na espera de um voo do inseto, as mãos abertas para pegá-lo no ar ou com o uso de uma só mão, para abarcá-lo, também em pleno voo, com sucesso, muitas vezes.

Já se pode perceber que meu relacionamento com a muriçoca é permanentemente belicoso e turbulento. Até que não me incomodaria lhe ofertar alguma gota de sangue para seu sustento. No entanto, é a marca que a picada deixa que me incomoda, no dia seguinte, o rosto cheio de pontos vermelhos, a evidenciar a suculenta passagem da muriçoca durante a noite. Horrível. Daí minha reação, que, aliás, não se compara com a do meu professor de ciências dos meus tempos de ginásio que, embriagado, costumava – dizem – liquidar as muriçocas com tiros.

Penso que no céu das muriçocas eu não terei acesso. O estoque já assassinado, com palmadas, é tão grande que devo estar na sua lista negra. Ou nos livros dos indesejados. Portanto, com o passaporte não carimbado. E não é para menos, porque as paredes brancas do quarto – em alguns deles – favorece a procura. O ponto preto preso a parede e sorrateiramente, como o gato na tentativa de pegar o passarinho próximo, a minha mão esmaga a muriçoca na parede. Menos uma. Quando não, é de manhã cedo, a muriçoca de barriga cheia, sem forças para alçar voo, apta, assim, para morrer. Quando, a duras penas, consegue  sair da cama, fica sem condições de nova fuga, o peso enorme do sangue sugado. E lá chego eu, implacável perseguidor, a me vingar das picadas da noite, a sujar minhas mãos com o meu próprio sangue, ao desmantelar a muriçoca, num ritual de vingança que até me assusta. Menos outra. Ou esta não me incomoda mais, devo dizer aos meus próprios botões.

O pior hoje é que a muriçoca aprendeu a usar o elevador, ampliando seu número de vítimas. Além de efetuar os ataques nas residências de piso único, agora, esperta, buscou os edifícios para suas incursões em todos os andares, onde, pela lógica, não teria condições de chegar a altitude tão elevada. Ou seja, se espalha por todo lugar, sabendo, inteligentemente, que o inseticida recomendado para seu combate também faz mal ao homem. Ou seja, cada vez imune a qualquer reação humana, pronta para a picada.

 De qualquer forma, mil vezes mais satânica que a muriçoca – e, aliás, não há nem comparação – é o mosquito da dengue, seu primo direto, porque, além de colocar a vítima na cama, também mata, veneno danado que invade todo o corpo . Perto dele, a muriçoca é fichinha, merecendo até um pires de sangue – se sangue fosse vendido em supermercado -, colocado na sala, para evitar sua presença no quarto. Sugestão brilhante, acho eu.

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Obs: Publicado no Correio de Sergipe
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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