Costuma-se dizer que é mais importante a interpretação de um evento do que o próprio evento. Pois o que retemos na memória, enfatizamos da realidade, sofremos a influência, enaltecemos ou vituperamos, é sempre o fato como o entendemos, o fato interpretado. Só assim podemos recuperar e conceder atualidade aos acontecimentos do passado. Eles nunca nos são acessíveis exatamente como se deram, como o entendiam seus protagonistas, mas nos chegam sempre através da nossa visão particular, da cultura que nos banha, da linguagem que dispomos. A vinda de marinheiros e comerciantes portugueses foi vista pelos europeus como a descoberta do Brasil, mas certamente de modo algum pelos que aqui viviam vendo suas terras serem invadidas. O mesmo evento, duas leituras. Ou deveríamos dizer, dois eventos?
O nascimento de Jesus Cristo também foi um evento na história da humanidade, comprovado por documentos que o atestam para qualquer pessoa sensata e isenta de preconceitos. Um evento que ao longo dos séculos recebeu acentuações e matizes diferentes, conforme os contextos históricos e socioculturais onde era celebrado. Prova disto são as variadas modalidades de representações artísticas do presépio por parte dos nossos antepassados, retratando assim suas respectivas sociedades. Contudo, a história nos ensina que, em meio a esta diversidade, algo permaneceu constante. Tratava-se sempre de pessoas de fé, que viam no acontecimento mais do que aparecia a seus olhos. Afirmavam assim que esta criança indefesa e frágil era o próprio Filho de Deus que entrava em nossa história. Um mistério ao qual chegava sua fé, inalcançável para a razão. E, à luz deste mistério de Deus tornado acessível, eles alimentavam sua fé, fortaleciam sua esperança, viviam sua caridade.
Hoje vivemos um cenário único na história. O domínio crescente do fator econômico na vida das pessoas e das sociedades acabou por pasteurizar os demais setores da vida humana, fazendo com que tudo seja olhado sob o prisma da eficácia capaz de gerar dividendos. O mundo, artístico, simbólico, afetivo, celebrativo, lúdico, científico, profissional, valem enquanto entram na lógica do econômico, valem pelo que faturam, valem conforme se transformam em lucros e ganhos. Tudo vira mercadoria sob esta ótica, que define objetos e pessoas não substantivamente pelo que são, mas utilitariamente pelo que rendem. E nem mesmo a religião ficou imune a tal valoração, como assistimos em nossos dias: instituições que se apresentam como igrejas visando à arrecadação de dinheiro, sobretudo das camadas mais pobres.
Não é de se admirar que o evento do Natal também seja olhado pelo prisma do econômico. Ironicamente, boa parte dos presépios e árvores de Natal à venda são artigos made in China. De plástico, descartáveis e, sobretudo, baratos. Uma celebração da fé cristã que se transformou numa festa comercial, de compras e vendas, de presentes e comidas, colocando todos nós sob o imperativo do Papai Noel que não pode esquecer ninguém. O frenesi das compras se junta ao cansaço de final de ano, roubando-nos até a possibilidade de um olhar diferente para o presépio.
Faz-se mister redescobrir a celebração do Natal. Não deixá-la reduzida a uma festa cultural ou comercial. Fazer emergir seu sentido autêntico. A vinda de Deus para dentro de nossa história demonstra seu interesse e seu amor pelo ser humano, revela que não atravessamos, sozinhos, a aventura da vida e que Deus se compromete conosco, embora no pleno respeito à liberdade individual. Sua passagem por este mundo, em suas palavras e em suas ações, deixou marcas profundas na humanidade. Poderíamos hoje falar de direitos humanos, do valor da liberdade, de progresso histórico, de justiça social, de respeito a crianças, idosos e mulheres, sem o nascimento desta criança frágil e indefesa numa manjedoura? Valores cristãos presentes hoje no mercado, embora com outras etiquetas.
Numa época dominada pelo imperativo do lucro, que submete indivíduos e nações, gerando guerras e violência, injustiças e diferenças sociais gritantes, que tornam nossa vida insegura e ansiosa, o evento do Natal cristão ganha uma ênfase muito especial. Pois cada vez que homens e mulheres dele se afastam, tanto mais desumana se torna a vida de cada dia. Por isso mesmo, o clima do Natal é claramente outro: tempo de paz, de cordialidade, de atenção recíproca, de amor. Vivemos nestes dias um pouco do sonho de Deus para a humanidade e nos sentimos mais felizes. Lutemos por este sonho, construamos a história, moldemos o futuro, não desanimemos com o presente. Não é este o sentido profundo da expressão FELIZ NATAL, que obstinadamente repetimos todos os anos?