(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Talvez uma das mais belas cenas do cinema de todos os tempos seja aquela do filme Casablanca, de Michael Curtiz, em que Ricky (Humphrey Bogart) ordena a sua amada Elsa (Ingrid Bergmann) que não fique em Casablanca com ele, mas suba no avião com o marido Victor Lazlo (Paul Henreid), que está prestes a partir rumo aos Estados Unidos. Diante do rosto belíssimo de Ingrid, que chora e pergunta: “E nós dois?”, Bogart responde: “Sempre teremos Paris”, referindo-se ao tempo em que, na capital da França, viveram um caso de amor que jamais esqueceriam e que marcara suas vidas para sempre.
Aparentemente nada tem a ver este comentário cinematográfico com o horror dos rituais macabros que se perpetraram na última sexta feira, na mesma Paris que abrigou o romance de Elsa e Ricky. Violência, execuções sumárias, barbárie invadiram o lazer de pacatos cidadãos franceses e estrangeiros que se distendiam após uma semana de trabalho. Ao fundo, a religião invocada sob o nome de Deus – Allah – que é grande, clemente e misericordioso – e que, segundo os terroristas, os inspirava a atar explosivos a seus corpos, detoná-los e pôr fim à própria vida e à vida de outros.
Não tão ao fundo, porém mais à superfície, o ódio pela violência primeira da França, que bombardeava a Síria e semeava a morte em seus países de origem. E, bem mais ao fundo, a herança do rancor dos “pied-noirs” – franceses cujos pais ou avós sofreram a guerra da Argélia e a cruel condição de eternos estrangeiros no país onde vivem.
Como todos, fiquei chocada e perplexa. Tenho uma filha que reside na França e um neto franco-brasileiro. Além disso, tenho grande carinho pela cultura francesa e pela belíssima e culta cidade que é Paris. Ali viveram figuras humanas que admiro e deram rumo à minha formação como teóloga. Paris, para mim, é a Paris de Bernanos, de Mauriac, de Simone Weil e de tantos outros. E dos amigos queridos que ali residem e agora sofrem com o medo e a insegurança que os atentados provocam em seu cotidiano. Ver os rostos das vítimas na grande imprensa e na televisão, tão jovens, no auge da vida, removeu-me interiormente as entranhas em compaixão e dor. Que sentido tem tudo isso? Qual o motivo real dessa carnificina? Por que interromper essas vidas em nome de Deus e de uma vingança que não levará a lugar algum?
Minha perplexidade e compaixão foram interrompidas pelo discurso raivoso do Presidente Hollande, declarando sua intenção de retaliar de uma maneira nunca vista e do ministro do interior, Manuel Valls. Ambos falaram de guerra, palavra que o mundo esperava ver silenciada para sempre após 1945. Mas parece que não foi assim. Aconteceu o Vietnam, o Camboja, o Golfo e depois o Afeganistão, o Iraque etc. etc. Para as autoridades francesas, no entanto, parecia claro que a guerra era o único caminho. Apenas o Papa Francisco – que há tempos vem denunciando o fato de estarmos já em uma terceira guerra mundial em capítulos – declarou seu não entendimento diante do mistério do mal e da violência, e afirmou não existir justificativa religiosa ou humana para isso.
Já no dia seguinte, víamos os fatos confirmando as palavras. Novos bombardeios sobre a Síria já tão destroçada. E o recrudescimento da violência armada no barril de pólvora que é o Oriente Médio, com um novo aliado: a Rússia, de Putin. A espiral vai crescer e não parece que terá um fim tão cedo. Caçam os terroristas pela Europa inteira, enquanto decidem entre as grandes potências quem vai contribuir com que arma para continuar destruindo o Iraque e a Síria.
Entendo que diante do terror são necessárias ações enérgicas para coibir a violência. Porém, a guerra pode até inibir uma violência maior sem com isso contribuir para construir a paz. A Europa sabe disso. As forças aliadas ganharam a Segunda Grande Guerra e prestaram inestimável serviço ao mundo destruindo a ameaça nazista. Mas o que a Europa é hoje nasceu da paz que foi fruto da solidariedade daqueles que se dispuseram a reconstruir seus países e mesmo sonhar com a utopia do que é hoje a União Europeia.
Uma guerra nunca é justa. Se é necessária alguma violência – a mínima possível – para evitar um mal certo e maior, só deve ser empregada quando esgotadas todas as alternativas pacíficas e dialogais. E me parece que isso não aconteceu ainda. Jamais a força usada além do necessário pode ser justificada. Ou justificável.
Mais ainda: uma boa parte dos terroristas que atiraram indiscriminadamente no Bataclan, ou no Le Petit Camboge, ou em outros lugares de Paris, ainda que venham de famílias árabes, eram franceses. Ou belgas. Ou britânicos. Nasceram e cresceram nos mesmos países que atacaram e que agora são objeto de seu ódio. Eles desmascaram assim o “lado sombrio” de uma sociedade que prega o bem estar material, a tolerância e a liberdade, mas condena grande parte de seus jovens a condições existenciais periféricas e marginais. Ali a falta de sentido para vida, a exclusão social, a discriminação sistemática alimentam a violência e vão cultivando o ódio que explodirá em assassinatos coletivos, como os que vimos em Paris. Ou como os que vemos – em outra chave de leitura – nas grandes cidades brasileiras, ou mexicanas.
Se não cuidarmos da justiça, não haverá paz, porque não haverá futuro. E para um jovem que olha para a frente e não vê horizonte algum, a vocação de homem bomba pode ser um poderoso atrativo. Se continuarmos em nossa incompetência para oferecer às novas gerações mais do que um consumo inatingível e frustrante, a Paris que para Bogart e Bergmann era o motor de força para viver a dignidade de uma vida fiel e honesta não será mais capaz de inspirar ninguém. Se continuarmos destruindo os sonhos dos jovens, nunca mais teremos Paris. E, infelizmente, essa profecia corre o risco de ser bastante real!
Obs: A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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