Ronaldo Coelho Teixeira 15 de dezembro de 2015

Ronaldo No automático

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As tragédias que envolveram crianças esquecidas dentro de veículos me avisam para que eu desligue o meu piloto automático. Não, não que eu tenha crianças nessa mesma faixa de idade. Meus meninos e menina têm, hoje, respectivamente, 22, 18, 14 e 12 anos. Mas esses gritos mudos abafados pelos invioláveis autos desse modernoso século vinte e um estouram dia a dia meus tímpanos, já surdos, como os de quase todos, nessa modorra chamada civilização hightech.

Nesse mês em que nós, ocidentais, celebramos o nascimento do redentor, foram três ocorrências dessa nefasta natureza. Continuamos matando Jesus. Só que agora, menino. No primeiro, Marina, de dois anos e quatro meses, foi esquecida dentro do carro por seu pai, funcionário público em São Bernardo do Campo, São Paulo, e que devia levá-la da casa da avó para a escola, mas foi direto para o trabalho, esquecendo-a e só percebeu o sinistro quando foi automaticamente buscá-la na escola.

No segundo, em Belo Horizonte, Minas Gerais, uma mãe foi trabalhar e esqueceu a filha de quase dois anos dentro do automóvel por cerca de cinco horas. Aqui também ela só foi perceber o trágico quando foi buscar a filha no berçário.

E, no terceiro, mais do mesmo da bestialidade inumana: outra criança de dois anos morreu após ficar trancada dentro de um veículo de transporte escolar no bairro Jardim América, no Rio de Janeiro. E quantos são os casos em que os pais esquecem, mas se lembram a tempo de salvar seus filhos, já que essas ocorrências não aparecem nos jornais?

Atente-se que segundo os psicólogos, isso acontece quando nós saímos da rotina. Rotina? Palavra que com automatismo não rima, mas fica ali, emparelhada na sua ensurdecedora e assonora parecença. E a matutar em nossa já quase dormente mente: quem estamos sendo? Quem temos sido? No que nos tornamos ou nos tornaremos?

Para este texto, o mais comum, amigo(a) leitor(a), seria eu divagar sobre quem são esses pais, o que fazem, como estavam suas vidas nesses fatídicos dias e blá-blá-blá. Mas não. Quero fazê-lo de outra forma. Trazendo uma discussão acerca do que estamos nos tornando nesse acelerado século.

Se fosse o caso de já vivermos sob a sociedade futurista do longa Blade Runner, e fôssemos replicantes, com partes mecânicas dentro de si, principalmente no peito, vá lá. Ou se vivêssemos na também futurística sociedade do livro Eu, Robô, de Asimov, idem. Ou, por fim, se já estivéssemos ao menos sob a vigília eterna das teletelas de Oceania do livro 1984 de Orwell. Mas não, estamos meio que num limbo, entre o futuro hypercontrolado e o presente arrevesado entre o que podemos ser: máquinas transumanas e o que realmente somos: humanos de nervos, corações e baixos ventres.

E aqui lembro dos outros possíveis assombros sociais explicitados por esses tempos líquidos, como alertou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, referindo-se a essa era. Em seu livro homônimo ele diz que os homens são expostos aos seus mais graves temores, com a exclusão e a desintegração da solidariedade. O que reina hoje é a insegurança, sobretudo nas grandes cidades. E isso ocorre porque houve um desmonte dos mecanismos de proteção aos menos favorecidos, aliado aos efeitos incontroláveis dos filhos revoltos da globalização, segundo o autor.

O sociólogo conclui assustadoramente que as cidades tornaram-se o local das ansiedades por excelência. E tudo porque a legitimização da política atual, incapaz de alcançar a origem global dos problemas sociais, é baseada no medo. (exemplo crasso tupiniquim é a velha discussão sobre maioridade penal). Paliativos de mais, resoluções de menos.

Ademais, este século escancara a gritante divergência entre os tempos do mundo e do homem. Enquanto no primeiro o movimento do tempo é lento, no segundo, ele é rápido. E ainda não encontramos a pedra angular dessa questão. Infelizmente. E há muito esquecemos – como nos disse Koyré – que a civilização não nasce do trabalho, ela nasce do tempo livre e do jogo.

Da minha cegueira herdada e da minha ignorância adquirida só me resta constatar que isso é puro surrealismo social. Eis o paradigma que nós, homens desse século, temos que ultrapassar: se somos humanos ou máquinas.

Pois, ao final, acabamos por ser escolhidos pelos algozes que nunca queremos escolher: o tempo, a doença, e a tragédia. Mas os holofotes parece que estão praticamente voltados para essa última. Estamos todos doentes. E o remédio não tem na farmácia da esquina, nem na loja de peças do centro. Somos como uma Ferrari, uma supermáquina importada, parada, quebrada no meio da selva amazônica. E o conserto está a um século de distância.

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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