mario 1

QUAL FOI SUA CONVIVÊNCIA COM DOM ALOISIO?

Conheci Dom Aloísio por ocasião do Sínodo da Igreja Católica sobre a Penitência no ano de 1983. Convivemos um mês no Colégio Pio Brasileiro de Roma, juntamente com outros bispos participantes. Eu estava lá como assessor da CNBB, devendo colaborar com todos os bispos do Brasil. Mas acabei trabalhando muito próximo a Dom Aloísio Lorscheider, pois seu vigor de pensamento e sua abertura teológica logo me cativaram. Elaboramos textos juntos, e aí fiquei fascinado com sua ampla visão do cristianismo, equilibrada, bem fundamentada, aliada a uma profunda humildade. Certa vez eu lhe ditava um texto que havia escrito em português e, para meu espanto, olhando por cima da máquina de escrever, notei que ele já o batia em latim, e num ótimo latim! Anos depois colaborei, juntamente com outros teólogos, na Comissão de Doutrina da CNBB, que ele presidia. Foi também um tempo de graça, pois pude aprender muito com sua pessoa, simples, objetiva, culta, corajosa. Talvez tenha sido a figura de bispo mais completa que encontrei em minha vida e que me lembra os grandes Padres da Igreja do primeiro milênio. Sem dúvida alguma, devo-lhe muito em minha vida sacerdotal, religiosa e acadêmica pelo exemplo que me deu. O que seríamos nós sem estes gigantes que nos precederam e que tanto reforçam nossa fé?

HAVERIA MAIS ALGUM ASPECTO NA PESSOA DE DOM ALOISIO QUE LHE FEITO IMPRESSÃO?

Três palavras sintetizam o que quero expressar, embora não saiba se o conseguirei adequadamente: Evangelho, Igreja e Pobres. Vejamos a primeira delas. Dom Aloísio sempre me pareceu um cristão profundamente impregnado dos valores evangélicos, valores estes hauridos e assimilados através da espiritualidade de São Francisco de Assis. Daqui provinha sua simplicidade, sua humildade, sua facilidade de trato com os mais simples, sua liberdade interior diante da fama, das honras e do poder que ele, de fato, teve na Igreja e na sociedade. Daqui também brotava sua sensibilidade espontânea pelos valores evangélicos que o levava a sintonizar logo com as pessoas que também os viviam. A outra palavra é Igreja. Sempre vi nele um autêntico homem da Igreja, todo entregue, apesar de seus problemas de coração, às importantes tarefas de que foi encarregado. Não esqueçamos que Dom Aloísio foi o relator dos Sínodos durante o pontificado de Paulo VI, que lhe tinha grande confiança e estima. Mencionemos ainda sua colaboração intensa na CNBB e no CELAM como presidente destas instituições. Sua fidelidade e sua dedicação à Igreja não esmoreceram, mesmo quando teve de sofrer por parte de alguns membros desta Igreja. Soube calar-se, procurando sempre salvar a reputação alheia. A terceira palavra que procura sintetizar muito do que abrigava em seu coração é o termo: pobres. Sua sensibilidade humana e cristã diante do sofrimento alheio, sua coragem em denunciar as causas da injustiça, mesmo no difícil tempo da ditadura militar, sua atenção ao pequeno, ao anônimo, ao insignificante para o mundo, quebrando protocolos, arriscando sua reputação, dificultando seu relacionamento com autoridades do Vaticano, levando-o a se envolver em problemas sempre que o mais fraco estivesse em desvantagem, tudo isto reflete o que busco expressar embora imperfeitamente com este vocábulo “pobres”. Não podemos deixar de mencionar que seu amor aos mais pobres transformou o Santuário de Aparecida realmente numa Igreja dos pobres. Como arcebispo desta arquidiocese soube criar uma infra-estrutura nesta basílica que possibilita aos peregrinos mais pobres se sentirem em casa, quando vão rezar à padroeira do Brasil, à Senhora Aparecida.

QUAL O PAPEL DE DOM ALOISIO NA IGREJA CATÓLICA?

Certamente minha resposta será incompleta, pois nunca examinei com calma a história da Igreja Católica no Brasil no período em que Dom Aloísio atuava na presidência da CNBB. De qualquer modo foram anos difíceis para a Igreja, único porta-voz para os que estavam silenciados ou sofrendo violências e torturas. Havia nesta época, entre os jovens, muito mais idealismo e vontade de transformar a sociedade do que hoje encontramos. Independente da carga ideológica subjacente, presente em ambos os lados, muitos se arriscaram por reformas sociais que urgiam e eram sempre adiadas. Sabemos o que sofreram Dom Helder Câmara e outros bispos, padres, religiosos, religiosas, camponeses e estudantes, muitos com o sacrifício da própria vida. Sem perder a calma, mas demonstrando coragem e lucidez, Dom Aloísio soube tomar a palavra quando se fazia necessário, sendo respeitado mesmo pelos detentores do poder. Foi um tempo áureo da Igreja do Brasil que impressionava outras Igrejas por suas tomadas de posição e seus documentos, muitos deles traduzidos em várias línguas. Por outro lado, embora sem provocar muito ruído da grande imprensa, Dom Aloísio sempre esteve atento à formação na fé, às diversas pastorais da Igreja, ao ecumenismo, à carência crônica de sacerdotes, à formação espiritual de religiosas, ao cuidado com seus presbíteros, sendo um autêntico pastor. Deu muitos retiros por todo esse Brasil, proferiu palestras teológicas em muitos institutos de formação e soube falar ao nosso povo simples com profundidade espiritual e grande simplicidade.

FOI DOM ALOISIO UMA FIGURA POLÊMICA DENTRO DA IGREJA?

Certamente não, se entendemos por “figura polêmica” alguém que se destaca por atitudes radicais ou por afirmações extremadas. Ou ainda, alguém dotado de um temperamento forte que atrai a mídia por seus pronunciamentos. Porém não podemos negar que as tensões da Igreja com o poder militar, resultantes de sua postura diante das violências e das arbitrariedades, geravam certo mal estar em parte da hierarquia. Pessoalmente nada vejo de extraordinário neste fato, pois a Igreja Católica sempre manteve sua unidade numa certa diversidade. Basta que conheçamos sua história. É praticamente impossível que todos façam a mesma leitura da realidade, a partir de experiências passadas, contextos socioculturais e formação teológica das mais diversas. São normais as divergências em pontos não centrais da fé católica, que refletem uma diversidade que só ajuda à Igreja a ser realmente católica, isto é, universal. Também é normal que Dom Aloísio nem sempre foi entendido, nem teve suas opiniões acolhidas por parte da Cúria Romana. Mas sempre foi muito respeitado por sua personalidade profundamente cristã e lucidamente crítica. Não esqueçamos que João Paulo I afirmou ter votado nele para papa!

QUE LEGADO DEIXOU DOM ALOISIO PARA A IGREJA NO BRASIL?

Veja, a Igreja não existe para si mesma, mas para levar ao mundo a salvação de Jesus Cristo. Toda ela deve estar a serviço do Reino, que é mais do que ela. Tudo o que ela tem de propriamente religioso e que deve ser reservado e transmitido às novas gerações (doutrina, ética, culto, instituições, etc.) deve ser mediação para que a doação que Deus nos faz de si próprio no Filho e no Espírito Santo seja, de fato, acolhida pela humanidade, gerando assim uma sociedade fraterna, solidária, e justa. Ninguém se salva se não cuida de seu próximo, ninguém obedece a Deus se não cuida do contexto social onde vive seu irmão. Aqui se encontra o sentido último da Doutrina Social da Igreja, aqui se acha a razão de fundo que leva a Igreja a se interessar pela sociedade onde se encontra. Dom Aloísio, bem como Dom Ivo e Dom Luciano, para só citar alguns mais conhecidos entre muitos outros bispos, soube dialogar com a sociedade, entendê-la em suas dificuldades, valorizá-la em suas conquistas, denunciá-la em seus abusos, corrigi-la em seus erros. Neste tempo a Igreja esteve sempre presente e atuante nos eventos que marcavam nossa história. É uma tarefa difícil que supõe competência, personalidade, liberdade cristã. Mas Dom Aloísio deixou-nos o exemplo de que ela é possível.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]