Saulo Marden 1 de dezembro de 2015

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Há quem considere beber, comer, dançar, transar, fumar, relaxar e dormir como as sete maravilhas. Eu acrescentaria mais duas: ler e escrever. apesar destas últimas serem atividades que fazemos desde criança, poucos são os viciados. Estes, ficam aborrecidos se alguém os interrompe para alguma coisa. Querem mesmo é ler ou escrever.

Ao me aposentar, pensei que teria a satisfação de fazer o que bem entendesse: Riscar do calendário datas e horários, não me preocupar com nada, só ler e escrever.

No entanto, a família vendo o quanto estava ocioso, logo me arranjou um emprego na firma “JAQTÁ”, sem remuneração, lógico: Me dizia a esposa: “Querido, já que está sem fazer nada, vá ao banco, depois ao supermercado e, se tiver tempo, pague, na casa lotérica, as contas de água, luz e telefone. Caso tenha tempo, no horário da tarde vá à Fundação tirar uma guia médica.

Durante o dia, o tempo voava. A programação, por mais calculada que fosse, sempre era falha. Sobrava a noite. Ah! A noite. Essa era minha. Ninguém iria me importunar.

Após o jantar, tomava um banho, vestia o pijama sentava diante do computador. Para não ser incomodado, dei a televisão do quarto à sogra, devido a esposa só dormir com ela ligada. Nunca vi um sedativo tão bom. E se for na hora das novelas Globo o efeito é mais rápido. Agora sim, estava finalmente a sós. Eu e o computador. O computador e minhas idéias. Dedos no teclado esperei surgir a primeira frase. Mas, por onde iniciar? Ainda não terminei os exercícios da Oficina Literária. O professor vai ficar pê da vida se eu não concluí-los. Ele gosta quando apresentam trabalho. Desmonta, desmancha, remonta por várias vezes até que considera o texto aceitável. E quais os exercícios que apresentarei? Tenho duas opções: Termino os sobre monólogo interior ou faço um conto de Natal. Sem tempo para fazer tudo, prefiro escrever o conto.

Feliz, ele brincava com outras crianças. – Parei de escrever por meu filho entrar no quarto:
– Pai, o senhor imprime meu currículo? Amanhã, precisarei para uma entrevista. – como negar um pedido deste? E ainda mais se tratando de uma promessa de emprego. Nos dias de hoje, as chances são raras, não vale desperdiçá-las. Ao terminar de imprimi-lo eram vinte e duas horas:
Todas as vezes que passava por mim, ria. Com oito anos nunca participou de um Natal em família. A mãe na condição de pedinte,  comia do que lhe davam, dormia sob as marquises no comércio da Encruzilhada…. – Bateram na porta do quarto. Desta vez, era a filha:
– Papai, não consigo dormir. O senhor tem algum remédio?
-Faça um chá de camomila. – e continuei:

Quando a mãe morreu ele tinha dois anos. Amparado pela  Casa da Amizade, logo o encaminharam para um orfanato onde permaneceu por seis anos. O dirigente que era canadense recebia ajuda financeira de alguns conterrâneos o que possibilitou a sobrevivência da instituição por um bom período. O número de crianças aumentava a cada ano, chegando a casa dos cem, entre meninos e meninas. Certo dia o diretor sentiu dores no pulmão. Estava com um CA. Teria de retornar ao seu país. Os problemas logo surgiram.

Um domingo antes do Natal,…– parei a digitação. A esposa entrava no quarto:
– Querido, está passando um filme ótimo. Não quer assistir?
– Infelizmente não posso. Preciso concluir este conto para entregá-lo amanhã. – voltei a escrever:

Um domingo antes do Natal fui com a esposa e outro casal fazer uma visita ao orfanato. Recebi informações de que as condições das crianças eram as mais precárias possíveis. Sem dirigente aquela instituição estava à deriva. Alguém teria de ajudar. Reuni-me com a esposa, alguns casais amigos e decidimos fazer, em primeiro lugar, a festa do Natal. As instalações eram boas: campo de futebol, teatro, pátio para brincadeiras de salão e um amplo restaurante. Junto com outros casais e filhos, improvisamos jogos, peça teatral, doces e salgados e, como não poderia faltar, presentes. Arrecadamos donativos. Deixamos o orfanato abastecido por um mês. No meio das brincadeiras vimos uma criança: desengonçada, raquítica, estrábica. No entanto, o carisma fazia inveja a qualquer outra bem afeiçoada. Chamava-se Luis Carlos. Logo me veio a mente apelidá-lo de “Toninho Cerezo”, cuja carreira estava no auge. Um apelido como aquele era um elogio dos bons. Precisava ver a satisfação quando eu disse:
 Ele se parece com “Toninho Cerezo”. Não acham? e um dos amigos respondeu:
 É mesmo. Quando crescer será o próprio jogador.  no resto da tarde, não mais nos largou. Eu e a esposa sentimos ter de deixá-lo.- mais uma vez abriram a porta. Era a esposa que entrava no quarto com os olhos entreabertos. Tombava aqui, tombava acolá. Ao tocar na cama, desabou como uma pedra. Sem querer perturbá-la, acendi o quebra-luz e continuei a escrever:

A semana passou rápida e, como era costume, convidamos parentes e amigos para a nossa ceia de Natal. O casal Claudia e Fonseca trazia entre os filhos Luis Carlos que ao me ver, disse:

 Tio, feliz Natal.  Fiquei calado. Não sabia o que responder. Abaixei-me. Dei-lhe um abraço. Ele estava bem vestido, cabelo cortado, sapato novo. Nem parecia um menino de orfanato. A noite foi só alegria. Os amigos e parentes mais afins aproveitaram a ocasião e comentaram sobre o significado do Natal: Renovação de fé, confraternização em família, puro comércio, troca de presentes.

A servida a ceia, alguns convidados foram aos digestivos enquanto outros se despediram. Chegada a vez de Fonseca, Luis Carlos disse:
 Tio posso ficar e dormir aqui?
 Meu filho, por que você não quer voltar com a gente?disse Fonseca.
 É porque nesta casa tem muitos meninos para brincar. e minha mulher respondeu
 Fonseca, deixe ele dormir aqui. Assim vocês aproveitam e amanhã almoçam com a gente.
 Obrigado tia Cristiane. E se estirou para beijá-la.

A noite era curta para tantas brincadeiras. Só dormiu quando meus filhos e sobrinhos também foram para a cama. – o cachorro começou a latir e a acordou. Ainda com a voz sonolenta, disse: Vai olhar porque neném está latindo. – nosso fila tinha em torno de cinqüenta quilos e sessenta centímetros de altura. Achar que era neném foi demais.  Imagine ao se tornar adulto! – Desci do primeiro andar com as luzes apagadas. Quando me aproximei da porta da área de serviço, antes de abri-la, tive um pressentimento de que havia alguém do outro lado. Os cabelos ficaram em pé. Contudo, tinha de prosseguir, afinal para que serve o dono da casa. A porta estava apenas no trinco. A adrenalina subiu a mil. Num rápido movimento a abri. Um grito dobrado se ouviu. Dobrado sim. Meu e de meu filho, que voltava do quarto de serviço onde fora buscar o pijama. Retornamos rindo e na algazarra acordei a esposa que, depois do ocorrido, ficou brava. Passado o susto voltei ao computador:

No dia seguinte, Luis Carlos acordou cedo e logo foi a procura dos presentes. Quando chegou a hora de ir para o orfanato, os olhos se encheram de lágrimas. Senti-me vazio. Cristiane ao vê-lo sair, comentou:
 Estou deprimida. Esta criança me abalou. Ainda é tão indefeso para morar num orfanato. Você não acha José?
 Sim. É muito indefeso para ser criado sem uma família. Enquanto não vemos ou participamos destes problemas, nada sentimos. Mas, quando presenciamos e nada fazemos, nos julgamos falsos, desumanos, culpados.
– Eram vinte e três horas quando os meus olhos começaram a arder de sono, mas meus pensamentos estavam ainda latentesr, queriam mais:

“Ainda bem que hoje é sexta feira. Epa! Esta frase lembra a propaganda da cerveja: “Bavária… Bavária…Ba va riá.” Vou parar por aqui. Amanhã levarei o texto para Gravatá. La estarei só com a esposa. Não terá ninguém para atrapalhar.” Não consegui conciliar o sono. Durante o resto da noite a famigerada música da Bavária não me deixou em paz. Apesar de tudo, acordei disposto, na mesa da sala, me concentrei no conto. Sentia diferença por não estar no computador. Os pensamentos não chegavam. Levantei-me, fui ao bar, botei uma branquinha, descasquei uma laranja cravo e a tomei de um só gole. A inspiração chegou rápida.

Faltava um mês para o início do período escolar quando fui com minha mulher  falar com o diretor do orfanato:
 Sr. Domingos gostaríamos de falar sobre a alfabetização de Luis Carlos.
 Pois não.
 Iremos matriculá-lo na Escola São judas onde meus filhos estudaram. As professoras são pessoas amigas e farão tudo para alfabetizá-lo. Ele almoçará na escola e no fim do dia o traremos de volta para dormir no orfanato. O senhor concorda?
 Desde que seja para o benefício dele, nada tenho a me opor. Peço apenas que assinem este papel. Assim ficarão livres de qualquer eventualidade.

Quatro meses depois Domingos me procurou:
 Sr. José, eu preciso lhe comunicar o que se passa.
 O que houve?
 O orfanato vai fechar. Como o senhor bem sabe, estamos sem o apoio dos canadenses, da sociedade e do governo. Desta forma não temos condições de mantê-lo. Resolvemos entregar as crianças. Elas serão distribuídas entre a FEBEM, outras instituições e algumas famílias que se interessarem. Vim aqui porque o senhor e sua esposa ajudam Luis Carlos. Talvez possam encontrar uma solução. Entre as cem crianças apenas Luis e Tobias estão sem destino. O senhor pense. Se possível, me dê uma resposta dentro de duas semanas.
 Sim. Conversarei com Cristiane e assim que tiver uma resposta entrarei em contato.  Rápido, contei à esposa:
 José, poderíamos pedir um termo de guarda. Ele ficaria em nossa casa. Assim continuaria os estudos. – naquele momento, ouvi a risadagem dos filhos que acabavam de chegar. Com eles outros casais amigos. A casa lotou. A tranqüilidade acabara. Guardei os papéis e entrei na farra.

Na Segunda feira, recomecei durante a noite.

Luis Carlos morou por quatro anos em minha casa. Como toda a criança dá trabalho, eu precisava as vezes de muita paciência, noutras, perdia mesmo e o igualava aos filhos. Alguns castigos sem palmadas eram necessários. Desta forma, tentei com a esposa dar-lhe conforto, instrução, carinho e, sobretudo, percepção de como era viver em família. Empregando a mesma tática utilizada com os meus filhos vimos que não tínhamos sucesso. Cada dia ficava mais desobediente. Sem querer estudar, na minha ausência e da minha esposa passava o dia na rua. – uma forte chuva desabou sobre a cidade. A temperatura logo baixou. A noite está própria para escrever e tomar conhaque. Levantei-me, botei uma dose, voltei para o computador. De repente faltou luz. Não estou com sorte mesmo. Quando a energia foi restabelecida, já não suportava o sono. Fui para a cama. No dia seguinte notei que perdera parte do texto. E o refiz:

No sentido de encontrar um caminho certo para educá-lo, procuramos as psicólogas do Estado. Foi aí que veio a decepção. Soubemos que ele não queria mais morar na nossa casa. Orientado ainda pela juíza o internamos numa escola de artes e ofícios. Ele não se adaptou. Todos os dias fugia com outros colegas para tomar banho de rio. Fomos buscá-lo mas, as relações – pai e filho, não mais existiam. Quebraram-se. O devolvemos à FEBEM.

Daí em diante nas celebrações do Natal me vem a mente o seu sorriso e o questionamento:

“Onde falhei? Sem procurar saber, nunca aprenderei a lição.”

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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