Nas festas de fim de ano, o maior navio imaginário da face da Terra navegava pelas ruas de Itabaiana, transformada de forma fantasiosa no mais endiabrado e maior oceano do mundo. O oficial superior capitão-de-mar-e-guerra Zé de Biné era o comandante responsável pela direção e segurança do navio, dia após dia na luta sem trégua contra os mouros, um povo não batizado e sem fé, que a fogo ou a ferro, devia ser convertido ao cristianismo.

Zé de Biné nasceu com o dom para capitanear navio de guerra e liderar a tropa de forma exemplar. Comandava com tanta habilidade que nunca fora registrada qualquer rebelião entre seus subalternos. Homens degredados promovidos a marinheiros valentes, que nunca tremiam diante do mar agitado por fortes tempestades.

Os membros da chegança eram elegantes no trajar, no trato e no andar. Vestiam uniforme branco, vistoso, engomado de forma impecável e assemelhavam-se aos militares da Marinha de guerra do Brasil. A hierarquia era organizada em diferentes níveis como nas Forças Armadas. As divisas indicavam postos, graduações e a disposição decrescente no convés, com o comandante sempre na frente. Participavam da Chegança homens simples, vigilantes, pedreiros, sapateiros e pintores de paredes que tomavam uma nova identidade e esqueciam por completo, mesmo de forma temporária, a identidade real. Cada marinheiro assumia na embarcação uma nova personalidade e caráter, compatíveis com sua patente.

A Chegança era um espetáculo popular que atraía e prendia a atenção de todos. Seu deslocamento pelas ruas era um verdadeiro bailado e realizava-se com passos vivos, movimentos incessantes e harmônicos, danças e cantos que exaltavam fatos heroicos das vitórias no mar e em terra.

As festas natalinas possuíam grandes atrativos e no conjunto das cerimonias estava incluída a chegança de Zé de Biné, que costumava apresentar-se bem em público. Após o espetáculo artístico, que agradou a todos, na praça de Santa Cruz, o brioso comandante, com a cidade a seus pés, dirigiu seus passos na direção da praça da Matriz, para assistir junto aos seus marujos à Missa do Galo. Uma multidão acompanhava o deslocamento, as batidas de pé e o canto entusiasmado dos marinheiros.

Na rua do Cisco, estreita e escura, escondido no meio da multidão, resolvi tomar a voz de comando:
– Marujada!

 Os marujos levantaram suas espadas em direção ao céu e responderam com entonação forte:
– Las Barcas!!!

A cena se repetiu 3 vezes. O capitão Zé de Biné virou-se de forma brusca para seus fiéis marinheiros e ordenou descanso. A ordem foi imediatamente obedecida. O capitão-de-mar-e-guerra estava ferido e furioso. Pela primeira vez sentiu-se rebaixado, pisado e desabafou com xingamentos:
– Filho d’uma égua! Corno! Quem foi esse veado? Quem dá ordens aqui sou eu!!!

Seus gestos foram seguidos por curto silêncio. O folguedo foi encerrado e todos caminharam juntos mansamente até a igreja.
Depois de décadas, evoquei a memória remota, vasculhei todos seus cantos e não encontrei justificativa para a satisfação que senti quando usurpei por instantes a direção da Chegança. Algumas vezes creditei à internalização de poder e outras vezes, ao prazer de ter destituído do posto um capitão-de-mar-e-guerra. O arrependimento somente veio muitos anos depois, quando amadureci o suficiente para entender a mágoa causada ao maior comandante que a Terra já conheceu.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]