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Nos últimos anos acompanhamos uma série de incidentes ocorridos no interior da Igreja e experimentamos a dificuldade que ela sente em levar adiante sua missão de evangelizar na atual sociedade secularizada. Alguns falam mesmo de uma Igreja em crise, que estaria agravada pela recente renúncia de Bento XVI. A palavra “crise” tem também um sentido positivo: implica que se deve discernir o que fazer num momento de turbulência e agitação. O que nos convida à reflexão. Para entender um pouco a atual situação da Igreja devemos considerá-la devidamente como uma realidade humano-divina. Ela resultou da iniciativa de Deus em Jesus Cristo que lhe conferiu determinadas características que a definem como tal: a fé na pessoa de Jesus Cristo, a proclamação da Palavra, a ação do Espírito Santo nos fiéis, a celebração desta fé nos sacramentos, especialmente no batismo e na eucaristia, a comunidade dos fiéis guiada por um ministério ordenado. São elementos teológicos encontrados claramente no Novo Testamento e que devem estar sempre presentes para que haja Igreja.

Mas enquanto realidade histórica, inserida inevitavelmente num contexto sociocultural, enfrentando desafios concretos, dispondo da linguagem e das estruturas disponíveis na situação, a Igreja se institucionaliza historicamente ao procurar levar a salvação cristã a cada geração. Mantendo sua identidade, ela apresenta configurações diversas como aparece em sua história. As mudanças institucionais são momentos críticos nos dois sentidos deste termo: questionamento e discernimento. Hoje passamos por mais um desses momentos devido às rápidas e sucessivas transformações socioculturais que experimentamos as quais, aliás, atingem todos os demais setores da sociedade: família, cultura, universidade, setor político, profissional, etc. Todos sofrem o peso de uma hegemonia do fator econômico que tende a transformar tudo em mercadoria privando as realidades de seu valor substantivo e vendo-as apenas pelo seu preço de mercado. Instala-se assim uma cultura do individualismo, da produtividade e do consumismo que desvaloriza valores como a ética e o bem comum.

Neste cenário hodierno está a Igreja defendendo valores, incutindo esperança, estimulando a caridade e a justiça, humanizando uma sociedade mais voltada para a produção e a eficácia. Mas ela não pode permanecer com o que conquistou no passado se quiser realmente levar adiante sua missão em nossos dias. Daqui se explica a iniciativa de João XXIII ao convocar o Concílio Vaticano II marcado pelo diálogo com a sociedade e com a atualização da Igreja. Daqui se justificam as Assembléias Episcopais do CELAM na América Latina, Medellín, Puebla, Aparecida. Daqui também ganham sentido os esforços de João Paulo II ao promover um “encontro pessoal com Jesus Cristo”, uma inculturação efetiva da fé, uma maior atenção ao laicato, uma presença visível da Igreja numa sociedade secularizada, fatos que comprovam sua preocupação com a missão efetiva da Igreja. De fato, a Igreja deve se renovar para continuar sendo Igreja, a saber, sinal da salvação de Jesus Cristo ao longo da história. Daí sua obrigação de rever continuamente sua linguagem e suas estruturas para que possa ter pertinência e significado para nossos contemporâneos.

Deste modo está hoje a Igreja diante de dois grandes desafios: renovar a mentalidade dos católicos e encontrar estruturas institucionais condizentes para nossos dias. Tais desafios já foram percebidos e enfrentados pelo Concílio Vaticano II, pelo magistério de Paulo VI, de João Paulo II e de Bento XVI. Mas trata-se de uma tarefa diuturna, progressiva, como qualquer mudança histórica. Mas a renovação da vida cristã pela ênfase no encontro pessoal com Cristo (Puebla) no quadro do contínuo desaparecimento da época de cristandade, pela importância dada à fé como opção de vida com todas suas conseqüências (Porta Fidei), pela centralidade da caridade como o coração da fé cristã (Deus Caritas est), demonstram a insuficiência de um cristianismo limitado a práticas, ritos, cerimônias, planos de pastoral e teologias.

De fato, numa sociedade pluralista e crítica, impõe-se a experiência pessoal de Deus na vida do cristão, o testemunho de vida mais do que o testemunho das palavras, o levar a sério o amor cristão autêntico que implica renúncia e leva à vitória da ressurreição, um cuidado maior com o existencial, o vivido, o pessoal, o experimentado diante do institucional, do doutrinal e do jurídico, mesmo reconhecendo a necessidade destes últimos. Portanto, a mudança de mentalidade exige uma verdadeira conversão na linha do Evangelho, conversão esta já afirmada em Aparecida e objeto de ensinamento por parte de Bento XVI. Suas palavras na missa de quarta-feira de cinzas foram claras quando denunciou a hipocrisia, a busca de poder e honrarias, a preocupação com a popularidade, como fatores da atual crise.

Mas a renovação não se dará sem uma mudança também no âmbito institucional, como bem observava o Documento de Aparecida. Estruturas passadas, eficazes em seu tempo, podem hoje se tornar obstáculos à missão evangelizadora da Igreja. A configuração monárquica, centralizada, vertical do governo eclesiástico não é mais aceita numa sociedade que fomenta a participação, a liberdade de expressão, o respeito à subjetividade, o pluralismo cultural, a convivência com o diferente.

O ensinamento de João Paulo II sobre o laicato, as mudanças introduzidas no Código de Direito Canônico, o apelo de Aparecida para mobilizar leigos e leigas como discípulos missionários, a faculdade dada aos leigos e leigas para constituírem associações, são conquistas que certamente serão seguidas por outras que justifiquem a opção eclesiológica do Vaticano II quando iniciou sua Constituição Dogmática com a noção do Povo de Deus. O tema da colegialidade, tão necessário para o governo da Igreja, o respeito às Igrejas Locais, a sensata inculturação da fé, a confiança no laicato como força missionária com características próprias, a sabedoria do diálogo, pedem uma criatividade por parte dos responsáveis para que possam oferecer instituições adequadas ao serviço da fé. As primeiras comunidades cristãs servem de modelo, embora saibamos que as circunstâncias atuais impedem que sejam copiadas tais quais.

E uma palavra final. Toda mudança nos desagrada porque nos obriga a sair de nossos hábitos e de nossas seguranças. Jesus também experimentou a reação das autoridades religiosas de seu tempo quando buscou tornar mais autêntica a fé do povo de Israel. Pois ainda em nossos dias podemos viver um catolicismo mais cultural do que realmente religioso, mais exterior do que verdadeiramente pessoal. Mudaria de fato a vida cotidiana de alguns católicos se abandonassem certas práticas religiosas, ou permaneceria a mesma? Caem na conta muitos católicos que eles também são Igreja e a prejudicam pelo modo como vivem sua fé? O momento difícil atravessado pela Igreja exige autenticidade, decisão, vivência profunda da fé. Bento XVI deixou claro que a atual crise é, sobretudo, cunho espiritual. Para todo católico que também é Igreja é hora de se converter, de se desinstalar de hábitos e modos de pensar, de correr a aventura de estruturar a própria vida pela do Mestre de Nazaré, de assumir sua responsabilidade na missão da Igreja que também é sua. A Bíblia nos ensina que Deus age na história através das pessoas. Neste momento delicado Ele conta com cada um de nós. Não O decepcionemos.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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