Betto Santos 1 de novembro de 2015

Betto O cheiro do ralo

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O Cheiro do Ralo é um dos filmes brasileiros mais interessantes dos últimos anos. É uma mistura entre comédia e drama pessoais, que não deve agradar ao grande público, por ter elementos impopulares. O ralo do filme, que ganhou destaque em seu título, é uma engraçada analogia ao buraco e à bagunça em que nosso protagonista, Lourenço (Selton Mello), se encontra. A bunda da garçonete do bar, objeto de desejo máximo de Lourenço, é um martírio para ele. Sua existência, cuja vida está indo pelo ralo (seu noivado, problemas com clientes, etc.) é trágica. Não importa muito o que o ralo significa especificamente, basta entender que ele centraliza todos os acontecimentos do filme e, como você pôde notar, os acontecimentos são trágicos e engraçados ao mesmo tempo. Lourenço mantém em sua empresa uma coleção de milhares de objetos abolutamente inúteis, e isso já demonstra o quão deprimente é a sua vida.

Dono de uma estética bastante atraente, o filme proporciona sensação de sujeira e desconforto (apartamento e local de trabalho ambos feios), quase que como espelhando a vida de Lourenço. Combina-se a isso a direção arrojada de Heitor Dhalia apresenta planos modernos, lembrando, de certa forma, Paul Thomas Anderson e seu Embriagado de Amor. Às vezes a câmera passeia, sem objetivo maior, pelas construções de concreto, ajudando a aprofundar a atmosfera quase fétida da vida de Lourenço.

Em relação à frase que coloquei lá no começo, “não deve agradar ao grande público”, é porque O Cheiro do Ralo tem cara de ter sido feito para cinéfilos principalmente. Ou pelo menos a maioria das pessoas não atendam para os detalhes, como o quadro de Acossado (Godard) ao fundo da sala de Lourenço; ou o pôster de Getaway que logo depois o próprio Lourenço disse nunca ter ouvido falar (a comicidade do filme vem na soma desses pequenos detalhes). O filme tem uma aura pretensiosa de cinema autoral exibicionista, mas o diretor soube se conter e fazer com que esses detalhes não atrapalhassem o todo.

A drogada que acabou se prostituindo, expondo seu corpo em nu frontal, também é uma cena feia, mas que funciona dentro do espírito do filme. O roteiro é bastante divertido, embora em vários momentos recorra a clichês, como o escândalo armado pela ex-noiva após a separação, ou a garçonete que trabalha com uma mini-saia que apropriadamente se abaixa para pegar algo, revelando seus dotes físicos. Mas, mesmo os clichês funcionaram nesse projeto. Ele reforça o aspecto cínico de sua personagem principal, muito bem retratado pelo roteiro com o bordão “a vida é dura”. Não é possível acharmos um Lourenço nas ruas, mas suas características estão facilmente distribuídas entre a população. Acido, cru, debochado, non sense. O filme narra o dia a dia do homem que coisifica tudo, compra tudo e todos e não se importa de humilhar seu semelhante. A platéia ri, porque a sinceridade e aspereza da personagem é tão cortante que chega a ser indigesta. E percebemos que não estamos acostumados com a sinceridade alheia.

O Cheiro do Ralo é antes de tudo uma provocação sadia e bem feita. Ousado e bem acabado como o bom cinema deve ser. Não é a toa que foi escolhido como o melhor filme da Mostra Internacional de Cinema de 2006 (público e crítica), e no Festival do Rio 2006, levou os prêmios de melhor filme da crítica e de ator, além de ter representado o Brasil no Sundance Film Festival. Depois da entediante adaptação do clássico de Dostoievski, Crime e Castigo, que resultou em Nina (2004), Dhalia mostra que chegou para fazer diferença no cenário cinematográfico nacional. O Cheiro do Ralo é excepcional.

http://bettosantos.blogspot.com

 Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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