Tassos Lycurgo 1 de novembro de 2015

Tassos foto escolhida para postar  blog1

www.defesadafe.org

Tendo em mente o avançado das horas vespertinas, o sol já se preparava para dar lugar à lua, assim como minha vigília fazia em relação à modorra. Tentei não mais demonstrar as fraquezas nobres da alma, que logo se vêem nos meios-sonos, e altoestemente fui descansar em uma das redes na varanda da fazenda Galeão, propriedade de Lycurgo Quinto. De lá, vi algumas aves apressadas com os efeitos do crepúsculo, umas nuvens que tinham formas de grandes personalidades sertanejas e, por fim, as ovelhas caminhando no pasto. Sem bem saber precisar a quantidade exata do gado ovelhum, por regozijo, concentrei-me na contenda e decidi que, apesar do sono e ainda da rede, lembrando-me do que, no propósito de dormir, fazia imaginativamente na infância, mentalmente as contaria… — “uma, duas, três…” — Fiquei, em compêndio, contando ovelhas…

Após algum tempo, fui ter com os bichos no pasto. Notei, logo ao chegar lá, que elas, como os homens, andam juntas, de forma que em vez de quereres individuais, parece ter uma só vontade todo o rebanho. Desta constatação, criaram-se rijos assertórios: — “os homens são como as ovelhas! Rebanhos há tanto de humanos quanto de ovinos…” Mas, à frente de tais idéias estabelecerem-me o desatino ou o desvario, elas me trouxeram à imaginação um quesito: se são homens e ovelhas semelhantes, o que faz os autores escreverem sobre as tramas humanas e não sobre as de malhada? A questão martelou-me o recheio de crânio por um par de minutos até que ponderei: ambos, homens e ovelhas, indistintamente trespassam a mesma trilogia da vida, cujas tragédias são nascer, sofrer e, por fim, morrer.

Tal resposta, contudo, não se me apresentou completa, de maneira que já ia, no surto do fracasso dos respondedores, considerar a pergunta irrespondível, quase uma aporia, quando aconteceu-me o inesperado. A ovelha mais velha do rebanho, animal já estéril, uma badana, a mais sábia do grupo, olhou para mim e, com uma feição que era um misto de emoção shakespeariana e expressão de Münch, falou como se houvesse sabido a questão que cambaleava-me no cérebro. Tens aqui, com os votos da serenidade, as suas palavras: “Por que me ignoras autor? Sou digna das tuas verdades e mentiras. Escreve sobre este animal estéril! Dá-me uma história, uma sucessão, já que não posso ter filhos!” — Veio-me primeiro o susto, o sobressalto, o espanto… Daí, o medo, o receio, o pavor… Ovelhas falam! Mais que isso, pensam, concatenamidéias!

Havia eu, nada obstante, de reagir. E, como um defensor da humanidade, em um antropoteísmo absoluto, endeusei-me a mim mesmo e ao ser humano. Por fim, com o agregado de vingança e humildade de todos os deuses, respondi à badana, à ovelha inquiridora: “Que animal insolente e ingrata! Antes de pedires para escrever sobre ti, devias agradecer-me por não fazê-lo. Ovelha, os escritores não escrevem a respeito de ti ou sobre as da tua estirpe porque vos consideram moralmente superiores aos humanos. Será que não vês?! Tu és bicho, concordo, mas és bicho de muita sinceridade! Tu não és dada à dissimulação…” — eis uma idéia de primeira ordem! A ovelha, contudo, não me pareceu satisfeita com a resposta, foi aí que continuei o argumento: — “Por não dissimulares, velha badana, é que os autores abandonam-te e os teus aos famigerados e agráficos vermes. Mais que isso, enquanto eles se sustentam da parte rubra do teu corpo, os escritores continuam com os astuciosos, fingidos, hipócritas e dissimulados bípedes, pois destes encontram o teatro na rua… Daqueles, tu, badana, e outras ovelhas, só há sinceridade… E, antes de achar o argumento um contra-senso, dize-me para que serve a lhaneza para teatristas e escritores? Se pensas, ovelha, que se faz literatura da lisura, digo-te, que não me cultives raiva: és ingênua. O fingimento da humanidade é o regozijo, o arroubamento, o júbilo dos escritores. E se tu preferes mais religiosidade e menos masculinidade nos substantivos, repisemos: a hipocrisia das pessoas é a aleluia dos autores.” — Depois, paradoxalmente, senti-me tristíssimo, pois havia convencido a ovelha da mesquinhez humana. Havia feito-a entender que astúcia, fingimento e hipocrisia são o que há de inegociável no bicho humano.

A ovelha, então, alheia à minha inquietação, calou-se — digo ainda —, quase chorou e olhou-me fixamente, com pena… Não que eu notasse lágrimas em seus olhos. Notei apenas a ausência de um olhar corriqueiro. Tinha, naquele momento, olhos profundos como as cacimbas secas do sertão e é assim que seres graves choram. Preferiu a anônimidade ao papel trágico e, quiçá, fosse essa uma boa escolha; não continuei o julgamento. O fato é que, quando menos esperava, quando o crepúsculo do fim de tardinha já se configurara e o lusco-fusco dera definitivamente lugar à noite, o bicho foi-se como veio, de improviso, assim como vêm e se vão as boas idéias no meio da noite… Só bem sei que acordei pela manhã com o sol que me esquentava a face e a rede onde dormira.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]