(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Há tempos circula nas redes sociais a frase: “Não existe mulher que gosta de apanhar; o que existe é mulher humilhada demais para denunciar, machucada demais para reagir, com medo demais para acusar, pobre demais para ir embora.” Gosto da frase apesar de sua alguma banalidade. Gosto porque me parece que, de forma primária, diz a verdade sem sombras nem ocultamentos.
Cresci na geração que glorificava frases machistas do tipo “Lugar de mulher é na cozinha” ou “Quando você bate em uma mulher você pode não saber por que está batendo, mas ela sabe por que está apanhando”. Trata-se da geração que brindava por “saúde e filhos machos” e considerava a mulher um objeto de propriedade do pai, do irmão mais velho, depois do marido, do filho etc., sem vida própria, vontade própria ou qualquer laivo de independência.
Por isso, parece-me de extrema oportunidade o tema da redação da prova do Enem sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Questão extremamente atual, instigante e que obriga os estudantes que se dispõem a fazer o percurso da universidade a tomar consciência de que a violência contra a mulher no Brasil só faz crescer. Apesar de alguns avanços, como as delegacias da mulher, a Lei Maria da Penha e outros, é fato que continuam acontecendo espancamentos, violações, estupros e toda classe de violência sexual que diariamente acometem as mulheres em todo o nosso território nacional. Pesquisas comprovam que a maior parte das agressões ocorre dentro do lar, e são cometidas por esposos, companheiros ou namorados, ou seja, pessoas da confiança das agredidas.
É sintomático da existência de um ainda vigoroso machismo em nossa população o fato de o tema ter causado tanta polêmica, invadido as redes sociais com críticas irritadas e agressivas. Muitos protestam contra o que dizem ser uma forma de tornar a mulher uma “vítima privilegiada” da violência. Parecem não dar-se conta de que se homens e mulheres e até mesmo animais são suscetíveis de sofrer violência tornando-se, portanto, igualmente dignos da proteção da Lei, as mulheres têm contra si vários elementos que tornam a violência que sofrem mais frequente e por isso mesmo mais lamentável. Padecem, além e acrescentado à agressão, do fato de possuírem menor força física, ou dependerem financeiramente do agressor. Os agressores contam também com a cumplicidade e o pacto informal de silêncio das instituições e da sociedade quando o assunto é violência doméstica ou feminicídio. Ditos como “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher” confirmam agressor e vítima no papel que desempenham no triste cenário da violência sexual que continua acontecendo em nosso país.
Em todo caso, a prova de redação incomodou. O tom de alguns comentários ouvidos e lidos após a prova era de surpresa, como se uma realidade presente em muitos lares, bares e locais de trabalho nunca tivesse existido, fosse uma pequena desavença doméstica sobre a qual não seria educado falar. Ou ainda, apenas uma bandeira de movimentos de gênero ou políticos
Ora, independentemente das provas do Enem, a violência contra qualquer ser humano, animal ou natureza não é questão de ideologia. Trata-se de uma violência contra a humanidade, aos direitos humanos, à civilização, aos direitos fundamentais. Está previsto no edital do próprio exame que “[…] será atribuída nota 0 (zero) à redação: […] que desrespeite os direitos humanos…” A violência contra a mulher é a violação de um direito humano e, portanto, intrinsecamente perversa e reprovável. Mais: trata-se de violência cometida contra a mulher, independentemente de sua ideologia, posição política, configuração ideológica. Atirar sobre o tema a perspectiva do feminismo como ideologia reducionista não corresponde à realidade e não é expressão da verdade.
Na realidade, a questão motivadora da redação na prova é detonadora de toda a celeuma. Trata-se da citação da conhecida filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminine.”
Simone de Beauvoir é uma das pensadoras mais conhecidas da contemporaneidade. E não apenas nem principalmente por ser a companheira do famoso e ilustre filósofo Jean Paul Sartre. Com luz própria e uma personalidade fulgurante, Simone abriu caminho por entre a machista sociedade francesa e europeia com seu livro “O segundo sexo”, chamou sobre si os holofotes do questionamento que faria surgir um dos movimentos mais importantes do século XX, o movimento feminista.
Muitas mulheres certamente não se alinham inteiramente com o ideário de Simone de Beauvoir. Eu sou uma delas. Mas não posso deixar de reconhecer seu valor intelectual e o largo e fascinante caminho que abriu para todas as mulheres do mundo, espécie ainda medrosa, envergonhada e intimidada pela discriminação de que sempre foi objeto. O fato de seus textos serem acessíveis aos jovens de ambos os sexos que hoje se preparam para entrar na universidade é extremamente positivo. São jovens que, procurando redigir um texto claro e inteligível sobre o tema, são convidados a não confirmar na sociedade em que vivem e à qual amanhã presidirão chavões lamentáveis como o título deste artigo.
Mulher não gosta de apanhar. Como todo ser vivo mulher gosta de carinho, de amor e de respeito. A diferença é que cada vez mais ela está aprendendo a se defender e a demonstrar que se recusa a enquadrar-se nos estereótipos que lhe foram destinados. Trata-se de uma das maiores revoluções – senão a maior – que está em curso em nossos tempos. Quem sabe uma sociedade onde a mulher tenha um papel mais relevante poderá ser menos violenta, menos injusta, menos cruel? A história dirá. Enquanto isso, leiamos Beauvoir. Mas não só ela. Também todos e todas que na história mais recente ou mesmo mais antiga refletiram sobre a igualdade de direitos entre mulher e homem, no coração de suas inegáveis e saborosas diferenças.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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