Maceta era residente flutuante e assíduo da República Cebolinha. Tinha a aparência de um pacote mal arrumado e as curvas do seu corpo facilmente identificavam a ancestralidade da Matapoã. Com estatura mediana, pesado, tinha um caminhar lento que tocava o chão primeiramente com as pontas dos pés. Rosto quadrado, nariz saliente com arquitetura em bico de arara azul e lábio superior estreito deixando as narinas próximas à boca. As pálpebras, quase sempre inchadas, imprimiam em sua face uma expressão de sonolência. Pescoço curto e grosso e abdômen muito volumoso e globoso, com ligeira aparência de avental. Prodigioso e de imaginação fértil e rápida, respirava pilhéria. Gozador fino, criava a todo instante piadas, sem limites ou censura, mesmo em lugares solenes. Com seu linguajar cheio de trocadilhos e espertezas, expunha sua língua afiada e obscena de plantão permanente contra qualquer agressão. Suas investidas prendiam a atenção de todos, quando satirizava os defeitos, as desgraças, os costumes e a ética.
Para Maceta não existiam bons e maus dias pois o excesso de álcool tornava-os iguais, além de mais aguçar os seus pensamentos, que afloravam ainda mais ferinos de sua mente. Nada interferia no seu modo de sentir e de fazer as coisas e nunca demonstrava preocupação com detalhes, regras, horários, trabalho e escola. Estudava o suficiente para ser aprovado sem pensar em aprendizagem contínua, cumulativa e evolutiva.
No dia da morte de seu pai, uma perda significativa, seu comportamento parecia mover-se a prevenir e neutralizar qualquer desconforto resultante daquela situação. A cultura local exigia ambiente de tristeza, lamentações e luto. Os afins do defunto deviam escancarar intensa expressão de sofrimento, suspiros e choros. Maceta descartou o clima do velório e escondeu qualquer apego emocional ao genitor perdido. Não demostrou ter assimilado qualidades, maneirismos ou características que perpetuassem a imagem do pai. Nesse dia bebeu muitas cervejas sem se preocupar em cessar ou reduzir a quantidade ingerida. Uma só lagrima não desceu de seus olhos e contou piadas até o dia amanhecer.
Exercia grande poder de persuasão e possuía capacidade de influenciar e dominar as atenções aonde chegava. Esperto e matreiro, arrotava argumentos que tocavam a sensibilidade, as necessidades e aspirações dos que o acompanhavam. Seu comportamento e sagacidade justificaram sua escolha como chefe da torcida do Itabaiana pelos residentes da República Cebolinha. Assumiu a promessa de comover, inspirar, mobilizar e incentivar os torcedores. Na semana que antecedia um jogo promovia caminhadas, passeatas e carreatas pela cidade. Concedia entrevistas aos programas esportivos atiçando a rivalidade entre as torcidas adversárias. O resultado do alvoroço era o estádio cheio. No campo, fazia a torcida tremular as bandeiras do time e gritar até o último minuto de cada partida.
Para acalmar e descansar após os desgastes da semana, sobrava apenas o domingo. Pela manhã, a praia era a opção favorita para tomar sol e respirar um pouco de ar livre. Durante a tarde, escolhíamos o cinema Palace ou o Batistão. Num domingo de junho, os republicanos acompanharam Maceta até o campo para assistir o Itabaiana jogar e na hora ‘H’ o time perdeu sem ao menos fazer um gol. Voltamos para a República desanimados, cada um com sua bandeira debaixo do braço e uma caixa de fogos de artifício na mão. O caminho de volta era interminável e as cervejas, antes reservadas para a vitória, foram ingeridas sem qualquer entusiasmo.
De repente, já perto das 22 horas, Maceta liberou sua imaginação maldosa e estimulou outros residentes a soltarem os fogos que não haviam sido usados durante o jogo. O foguetório ocorreu no pequeno quintal do fundo da casa e na porta da frente. Os estrondos no céu quebraram o silêncio noturno e ultrapassaram o quarteirão. As pessoas assustadas e enfurecidas, despertadas com tantos estrondos, correram para as portas e para as calçadas em protesto. Alguns fogos foram apontados para um jenipapeiro da casa vizinha, cuja copa protegia um cercado onde eram criadas várias galinhas. Depois de intensos cacarejos e barulhos das batidas desordenadas das asas das aves, veio o silêncio demorado que anunciou a morte de todas as galinhas.
Recebemos informações de que famílias inteiras comunicaram os acontecimentos à delegacia plantonista e que um destacamento da policia seria enviado para resolver o problema. Imediatamente combinamos que somente um de nós permaneceria na República e os demais deveriam procurar outras residências para passar a noite. Em poucos minutos a casa estava vazia.
Arrumei a mesa, como faz qualquer estudante, e espalhei sobre ela livros e papéis. Fingia estudar. A porta entreaberta permitiu-me enxergar a chegada de duas viaturas com pisca-pisca colorido. Os policiais conversaram alguns segundos com o vigilante do único edifício da rua e apressadamente invadiram a República. Fecharam a porta com violência para intimidar e caminharam na minha direção. Um dos policiais segurou o meu braço com força enquanto outros vasculhavam, um a um, todos os quartos, que ainda abrigavam o cheiro desagradável de pólvora. Queriam informações sobre “o bando de desordeiros”. Apresentavam expressões faciais e gestos que ameaçavam minha segurança e até mesmo a minha existência. Eu estava vivendo, de forma intensa, momentos carregados de ansiedade e medo. Expliquei que haviam torcedores que, desequilibrados com a derrota do time, haviam fumado, bebido, soltado fogos e aterrorizado os vizinhos. Haviam me privado das condições necessárias para estudar e depois saíram na direção da lanchonete Iara para pegar uma Kombi com destino a Itabaiana. Os policiais surpreendidos e perplexos, anunciaram a vontade de ainda encontrá-los. Quando deixavam a República fiz uma breve intervenção: “vocês asseguraram a paz no quarteirão, entretanto, tenho dúvidas sobre quanto tempo terei esta tranquilidade. Receio que eles não encontrem o transporte e retornem com a mesma fúria. Gostaria que um soldado ficasse na porta da República por mais algumas horas, porque preciso estudar”. Ninguém se prontificou a atender o meu pedido. Um deles mandou que eu tomasse no .. e todos foram embora.
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.