“Deus é amor, quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4, 16)

 Terceira Parte: O Amor é sobrenatural

dom sebast ateismo III PARTE

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Alguém, perplexo diante da reflexão acima, poderia perguntar: Mas, Deus não é sobrenatural? Como o amor humano, “natural”, portanto, pode proporcionar a experiência “sobrenatural” de Deus? E onde caberia a possibilidade de milagre? Não estamos diante de uma reflexão “reducionista”?

Santo Agostinho, com seu extraordinário poder de sintetizar aspectos contrastantes da vida e formulá-los em belos e imortais trocadilhos, vem em nosso auxílio mais uma vez. Diz-nos que Deus “é mais alto que tudo o que há de alto em mim, e mais íntimo que meu próprio íntimo” (“Superior supremo meo; interior intimo meo”). O mais alto e transcendente é, na verdade, o mais íntimo de nós. No Novo Testamento, a perspectiva é que Deus já nos cria em vista de sermos em Cristo, é o que se depreende da reflexão das Epístolas aos Colossenses e aos Efésios. Se, de um lado, nossa “pura natureza” não exige a filiação divina, por outro lado, por desígnio da graça, já somos estruturados(as), não só como “desejo de Deus”, mas para acolher, evidentemente em liberdade, o dom de nos tornar filhos e filhas de Deus, como se vê na bela meditação da Epístola aos Gálatas. E de novo nos ajuda Santo Agostinho: “Nosso coração restará inquieto enquanto não repousar em Ti”. O amor humano, se plenamente amor, já é em Deus, como nos ensina a Primeira Carta de São João; já é ultrapassagem, é ir além de nós, ao jogar-nos na Transcendência, em inenarrável diálogo interpessoal, no qual se fala e se escuta e se responde com o dom total de si mesmo(a). Com efeito, o que dizemos “sobrenatural” seria mais adequadamente referido como “intranatural”, “dentronatural”, porque “mais íntimo que meu próprio íntimo”.

O amor, porém, sempre busca um rosto. Daí, por que os salmos interpretam essa sede falando-nos de “permanecer na busca da face do Senhor” e o profeta Miquéias descreve o ideal de vida como “praticar a justiça, amar a bondade e caminhar em obediência diante da face do Senhor” (Mq 6, 8). A Bíblia, ela mesma nos responde, dizendo-nos que Sua face, em si mesma “abscôndita”, “habitando em luz inacessível”, se revela em nossa própria face. Somos “imagem e semelhança” de Deus, cada qual de nós e o conjunto de nós, mulheres e homens, e frente a frente entre nós, é o que lemos na meditação de Gênesis, capítulos primeiro e segundo. E Jesus nos excede a todos(as) sendo, Ele mesmo, a imagem por excelência (cf. Cl 1, 15-20; Ef 1; Fl 2, 1-11; Hb 1, 1-4). Por isso, diz-nos no evangelho segundo São João: “Quem me vê, vê o Pai” (cf. Jo 14, 6-10). Em Jesus e no ser humano em geral, estamos de cheio a tocar a estrutura profunda do mistério da Encarnação. Na busca do rosto de Deus, o risco é julgar tê-Lo identificado quando apenas continuamos a nos olhar no espelho. A idolatria é narcisismo, aurtocontemplação e autocomplacência. O Rosto, não somos nós que o construímos, já está dado em Sua “imagem e semelhança”, sempre diante de nós.

O Apóstolo São Paulo radicaliza o pensamento do quarto evangelho: o Filho de Deus, expressão perfeita do Pai, se faz Filho do Homem, pois “não se agarra com ciúme a Sua condição divina”, como que “salta fora de Deus” e se torna em tudo como os seres humanos, chegando até a assumir a forma de servo e enfrentar a pena de morte, reservada pelo poder romano a escravos rebeldes (cf. Fl 2, 1-11). É particularmente no ser humano excluído – “Eis o Homem!” (Jo 19, 5) – que nos deparamos com a interpelação absoluta de Deus, é nele que somos chamados(as) a contemplar “o Nome acima de todo nome” diante de quem “todo joelho se deve dobrar” por toda parte. Dom Helder Camara, em seu discurso de posse na Arquidiocese de Olinda e Recife, em 1964, teve a coragem de proclamar: “No Nordeste, Cristo se chama Zé, Antônio e Severino”, os nomes pelos quais se chamam os pobres (cf. Mt 25, 31-46). Poderia ser de grande valia ler a página sobre os rostos de Cristo em nosso Continente, redigida pelo episcopado católico romano no famoso “Documento de Puebla” (conclusões da terceira conferência do episcopado de nossa Afroameríndia). Dificilmente se teria podido escrever algo mais bonito e interpelador à fé cristã. De fato, a suprema revelação, o mistério proclamado pelo Evangelho é o paradoxo de que Deus se acha, se dá a conhecer e se faz encontrar no aparente “não-Deus”, sem dúvida sempre Sua imagem, mas tão desfigurada a ponto de não guardar nem mesmo “aparência humana” (cf. Is 53); o mesmo que dizer que “o mais alto” se acha é no “íntimo” e o “sobrenatural” se encontra no coração do natural, o “sagrado” no interior do “profano”, o “divino” no humano”, Deus no que parece não ter aparência de divindade…  Fora disso, como nos sugere o grande Dietrich Bonhoeffer,  é buscar em Deus um “tapa-buraco” para nossas fragilidades e impotência, para nossa condição “carnal”. Ora, a revelação que temos é justamente que Deus “se faz carne”, em Jesus de Nazaré e no Corpo total de Cristo, Teilhard de Chardin diria “no corpo cósmico de Cristo”, para ensinar e animar-nos a assumir corajosamente, neste mundo, as batalhas de Deus, não o contrário. Antes de Deus satisfazer nossos interesses, garantir nossas mesquinhas batalhas, nós é que temos de assumir corajosa e alegremente as causas de Deus, pelas quais Ele mesmo deu Sua vida em Jesus “pela vida do mundo”.  Quem sabe, a regra para nós tem de ser aquela simpática oração da criancinha que, a cada manhã, voltava os olhos aos céus e perguntava: “Meu querido Deus, em que é que eu posso Te ajudar hoje?”

Não é por acaso que o maior milagre de Jesus nos evangelhos seja justamente provocar a partilha do pão. Ou seja, a transformação das pessoas pela misericórdia e compaixão que as humaniza e as torna “pastor” umas das outras. Em outras palavras, o milagre da humanização, para assumir as dores de outrem como próprias; crer firmemente que a solução se encontra em nossas mãos unidas solidariamente e não nos poderosos; organizar-nos “em grupos de cem e de cinqüenta”; decidir pôr à disposição o que somos e o que temos; é o que provoca a abundância agora e para o futuro (cf. Mc 6, 30-44). E quem “não compreende o sinal dos pães” nada percebe da proposta e do ministério de Jesus (cf. Mc 6, 52; 8, 14-21).

Na relação de amor, como pensar que os milagres não sejam possíveis? Sem dúvida, de acordo com os evangelhos, em meio a todos os milagres, o maior de todos é nossa transformação em seres humanos plenos, capazes realmente de amar e de compartilhar a vida. É pelo amor que renascemos “da morte para a vida”, ou seja, o amor realiza o milagre maior que é a ressurreição, já como dinamismo revitalizante, transformador em nossa vida de agora, como nos ensinam belamente São João, com seu conceito de “vida eterna”, apresentado no evangelho e na primeira carta, e São Paulo, por exemplo, na epístola aos Romanos, capítulos 6-8, quando nos fala da condição de “nova criatura”. O grande poeta recifense Manuel Bandeira, que não se confessava cristão, chegou a intuí-lo profundamente e o expressou em seu poema “Tudo é Milagre”: “A vida, a vida é um milagre; a rosa, a rosa é um milagre; o amor, o amor é um milagre; só a morte não é milagre…” Deveríamos partir de sua intuição e retomar o que pensa de “morte” a Bíblia, “a condição de morte” já presente na vida neste mundo, o peso da “carne”, da fragilidade, da corrupção, da degradação e da morte. Nisto o mestre é o Apostolo Paulo, particularmente na carta aos Romanos.

Sabemos que não é fácil viver a “missão terrível” de crer e não ver, mas Jesus elogia seus discípulos exatamente por isto (cf. Jo 20, 29). De viver em Deus, como raiz da própria vida, sendo capazes de suportar o “silêncio de Deus” (cf. Mc 15, 34). Aceitar profundamente que “nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3, 3) e que nossa “glória” se revela na fidelidade até o fim, como se deu com Jesus que pela cruz revelou a glória do Pai. Esperaríamos maior milagre do que este, de sermos transformados(as) pela Graça, pelo Amor, pela Liberdade a ponto de “caminhar como se víssemos o Invisível” (Hb 11, 27) e de ter coragem de “negar-se a si mesmo(a), carregar a sua cruz e seguir”, na certeza de que “quem perde a vida é que a salva” (cf. Mc 8, 34-38)? Como dizia Bonhoeffer, “viver neste mundo como se Deus não existisse”, ao mesmo tempo em que se experimenta que “n’Ele vivemos, nos movemos e somos” (At 17, 28). É possível compreender, finalmente, o “milagre” de que nos fala o filósofo marxista Ernst Bloch: “Só um cristão pode ser um bom ateu, só um ateu pode ser um bom cristão”.

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

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