“Esse ser humano se alimenta de cinza; seu coração enganado o ilude, de modo que não consegue salvar a própria vida nem é capaz de dizer: “Não será apenas  mentira isto que tenho nas mãos?” (Is 44, 20)

Segunda Parte: Fé e Idolatria

Dom Seb ateismo e fé bibliva segunda parte

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Frequentemente, ateus e crentes concebem fé e ateísmo como sistemas contrapostos, antagônicos. A fé necessariamente teria de combater o ateísmo e vice-versa. É a visão convencional. Seria, porém, a visão tradicional, isto é, bíblica e originalmente cristã?

Que pretende o ateísmo?  A negação dos deuses em prol da liberdade humana. Que pretende a fé? Igualmente, a negação dos deuses em prol da liberdade humana. Tanto a fé quanto o ateísmo busca libertar a humanidade da escravidão dos ídolos. Com uma diferença: para o ateísmo, a libertação só seria possível a partir da negação radical dos deuses; para a fé, é preciso destruir os deuses e permanecer em busca da face do Deus vivo. A tarefa da fé não é uma abstrata afirmação da existência de Deus, mas o discernimento concreto do Absoluto, ou seja, qual o Deus que salva, isto é, qual a referência absoluta e suprema na vida humana que permite assumir responsavelmente o mundo e a história. Qual o absoluto na vida humana que não aliena a humanidade de si mesma, mas, ao contrário, a plenifica?

Na verdade, ninguém consegue encaminhar a própria vida a não ser polarizando-a  em torno de um valor supremo e absoluto. Valor este que é como eixo de todos os valores e tem a misteriosa força de impor-se e exigir tudo, até o sacrifício (há sacrifícios de muitos tipos…) da vida. É assim que se dá sentido e direção à própria existência. Daqui vem o problema. Como empenhar a vida, entregando-a, obedientemente, a um valor que se impõe de maneira absoluta e, ao mesmo tempo, ser livre? Mesmo que alguém dissesse que “tudo é relativo”, já estaria revelando que há algo absoluto e inquestionável para si, ou seja, que “tudo é relativo”. Do absoluto ninguém escapa, a questão é discernir se o absoluto é transcendente ou não.

Na idolatria, projeta-se numa realidade mundana o poder divino e torna-se a pessoa humana escrava de si mesma, de alguém semelhante a si ou até do que lhe é inferior, de suas obras. É o fetiche. Algo que é como nós, ou criado por nós, ou que se acha a nosso serviço, que contém somente o poder que nós mesmos(as) lhe comunicamos e que, no entanto, nos ilude, dando-nos a impressão de ser mais poderoso que nós. Exige nossa adoração e nosso sacrifício, até da própria vida.  Na idolatria, quando os deuses são falsos, porque apenas projeção dos desejos e das frustrações humanas, estamos no círculo narcisista de adorar a própria imagem impressa em nossas obras, pois os ídolos não passam de retratos de seus artífices, realidades vazias, incapazes de salvar, expressão apenas de seres miseráveis necessitados de salvação.  AquiFreud nos pode auxiliar, com suas análises do processo de “projeção”.  Por isso, a Bíblia proíbe terminantemente construir  imagens da divindade: de Deus não se pode saber o Nome, nem d’Ele se pode fazer imagens. Qualquer representação, afetiva, mental, artística, ritual, doutrinal, por mais sagrada que seja, será sempre, de alguma forma, projeção humana e, por isso idolátrica. Também no Cristianismo (12). O povo no deserto constrói o bezerro de ouro para ser “um deus que vá a nossa frente”, justamente quando se recusa a aguardar por Moisés, “esse homem que nos fez subir da terra do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu”:erige-se o ídolo quando se renega a experiência da liberdade (cf. Ex 32, 1-10).

Na sociedade romana, marcada por intensa religiosidade, e onde os deuses se achavam representados em cada esquina, o povo cristão foi acusado de ateísmo, inimigos dos deuses e da raça humana. Havia até o boato de que em suas reuniões secretas se faziam sacrifícios humanos e em seus banquetes se comia carne de criancinhas… Acusações tão antigas e tão modernas, que envenenaram nossa imaginação de crianças nos tempos da Guerra Fria…

Diante de qualquer representação ou de qualquer discurso a respeito de Deus, os antigos teólogos da Igreja sempre disseram: “Deus é sempre maior” (“Deus semper major”). A mesma experiência, a temos no testemunho de místicos e místicas de toda a história cristã. Nunca podemos identificar com Ele o que d’Ele pensamos, sentimos ou imaginamos. O próprio Santo Tomás que tanto pensou e escreveu sobre Deus, considerado o maior teólogo da Igreja do Ocidente, um dia quis queimar toda sua obra dizendo que a experiência de Deus lhe revelara ser seu discurso sobre Deus totalmente inadequado. Deus seria completamente outra coisa. Ou seja, o discurso sobre Deus é sempre, de certo modo, idolátrico.  É que “de Deus sabemos o que não é, mas não sabemos o que seja”. Carlos Barth nos advertiu: mesmo com toda sua extensa obra  teológica, nunca deveríamos esquecer que “foi apenas um homem tentando falar a respeito de Deus”. Por isso, a tradição se referia a  Teologia Negativa: o discurso para dizer o que não é Deus. E  esta é uma das  precípuas funções da Teologia. Mais que discurso sobre Deus, é escuta de Sua Palavra e discurso crítico, de discernimento de todos os discursos acerca de Deus, para desmascarar em que medida estão eivados de idolatria e são expressão da alienação humana.

Vemos, assim, como a tarefa da Teologia se avizinha da tarefa do ateísmo: a crítica, o discernimento e a negação dos deuses, e a denúncia da falsidade dos discursos religiosos. Deve-se mesmo dizer que aquilo que os antigos chamavam de Teologia Negativa, nós hoje poderíamos chamar de dimensão atéia da fé. Na verdade, o ateísmo não é o contrário da fé. O contrário da fé é, sim, a idolatriaO ateísmo, em vez, é dimensão interna, intrínseca, da própria fé: crente é quem afirma ser Deus sempre maior, não pode ser identificado com nenhuma representação, por mais sagrada que seja.  A fé nos leva a passar sempre além, a destruir todas as divindades, não para construir um “novo deus”, ou seja o “nosso”, que seria, então, o Deus verdadeiro, mas para permanecer sempre em busca do Mistério e atento a Sua voz e ação na história. De fato, a insegurança e medo diante da vida nos leva a necessitar de um “poder” que nos sustente ao nos comunicar a sensação de sermos nós mesmos poderosos(as). A Bíblia fala disto quando diz que atribuímos poder divino às “obras de nossas mãos” e, assim, nos alienamos, pela renúncia à liberdade, em troca de submissão a nossos próprios caprichos, a nossos “padrinhos” ou “madrinhas” e a nossas obras, que nos dão a falsa segurança de ser “superiores”, quando, de fato, o que pretendemos é camuflar nosso sentimento de inferioridade e de medo de “não ser”.

A tarefa da fé e, por consequência, da Teologia, não é combater o ateísmo, pois este é dimensão intrínseca da própria fé; trata-se de desmascarar a idolatria como expressão de nossa imaturidade, cuja fonte é o medo que nos fecha no narcisismo, como mecanismo de autoafirmação. O que nos deve preocupar não é afirmar a existência de Deus (essa discussão se dá no terreno da Filosofia). A Teologia, por seu lado, parte da constatação de que toda pessoa organiza sua vida em torno de um valor absoluto, isto é, de um valor que lhe funciona como Deus, pois a tudo dá sentido e tudo pode exigir, de vida e de morte. Não é possível fugir de “adorar” um deus. A fé e a Teologia se situam no terreno de discernir a respeito das diversas imagens dos deuses: qual o Deus que nos liberta e qual o deus que nos escraviza. Em outras palavras, qual o valor supremo, o absoluto, que nos humaniza e nos abre à vida e qual o que nos aliena de nossa humanidade e nos fecha em individualismo e egoísmo. E esse discernimento é eminentemente prático, faz-se  no seio das experiências concretas de vida, como nos diz claramente Jesus nos evangelhos: não é quem diz, mas quem faz.

A crítica da fé a quem professa o ateísmo não se dá por causa do ateísmo, mas por causa da insuficiência de ateísmo.  Ou seja, por não ser suficientemente ateu. Toda pessoa sente necessidade profunda de achar legitimação ou aprovação para seu jeito de viver, para seus valores e opções. Ao negar a transcendência do absoluto, será sempre necessário erigir em absoluto alguma realidade mundana que nos dê sentido e legitime a vida: o Estado, o Partido, a Segurança Nacional, a Pátria, a hierarquia do poder, os interesses da própria classe, a família, o dinheiro, o consumo, o automóvel, o prestígio, a instituição à qual pertencemos, quer religiosa, quer não, uma determinada pessoa que nos fascina ou à quel nos submetemos…sempre um ídolo. Só negando caráter de absoluto a qualquer realidade mundana, isto é, só numa atitude anti-idolátrica de ateísmo radical, será possível garantir a liberdade, livrar as pessoas de toda sujeição. Mas, para chegar a isto, é preciso experimentar e afirmar o absoluto como “sempre maior”, como o horizonte que sempre se desloca para mais adiante, como transcendente. Neste ponto, vemos como fé e ateísmo não apenas se avizinham, mais coincidem. Torna-se inteligível a famosa frase do filósofo marxista Ernesto Bloch: “Só um cristão pode ser um bom ateu, só um ateu pode ser um bom cristão”. O crente é o “ateu” sem sentimento de orfandade, que conseguiu superar a necessidade de buscar segurança em deuses construídos a sua imagem e semelhança, que arrisca viver sem deuses, na permanente busca de Deus, sem jamais poder repousar ou assegurar-se num imaturo sentimento de posse. É a pessoa radicalmente aberta ao Mistério da vida, sem fronteira, pois, como nos ensina Santo Agostinhoé a própria busca o sinal de que já se dá o encontro: “Tu não me procurarias, se já não me tivesses encontrado” (13). O mesmo Santo Agostinho resumiu tudo de maneira lapidar: “Orar, como se tudo dependesse de Deus; agir, como se tudo dependesse de nós”. E, mais perto de nós, Bonhoeffer, o místico político e santo mártir por obra do Nazismo, não cessava de repetir: “É preciso viver neste mundo como se Deus não existisse”, pois Deus não pode ser tratado como “o tapa-buraco” da fragilidade e impotência humana, e acrescentava: “Não é a terra que vive em função do céu, é o céu que baixa à terra”, pois é esta a lei da encarnação. Ateísmo radical do crente que se deixa conhecer, luminosamente, no momento de ser fuzilado, ao segredar a seu amigo de cela: “Chegou o fim; para mim, é agora que tudo começa”.

Chegados(as) a este ponto, devemos perguntar-nos: Qual  a via de acesso ao Deus verdadeiro? Como não reconstruir os deuses, mas permanecer sempre na busca de Deus?  Como manter-nos crentes sem recair na idolatria? Como viver o ateísmo como dimensão interna da própria fé? Como viver a fé sem experimentar aquela separação denunciada por  Feuerbach?

A tradição bíblica tem duas palavras que nos podem orientar. Ao falar da criação do mundo, diz-nos que, em vez de a humanidade projetar-se e criar seus deuses, foi Deus mesmo que se projetou e criou o homem e a mulher a sua imagem e semelhança, criou-os como reflexos de si mesmo, lugar de manifestação do Absoluto. Escutar as vozes humanas será a condição imprescindível para a escuta de Deus. O encontro com Deus não se dará pelos caminhos da alienação do humano, mas, ao contrário, pela inserção no mundo e pela relação e inter-açãoentre as pessoas (14).

A outra palavra nos vem do Novo Testamento. Estamos habituados(as) a pensar em Jesus da seguinte maneira: Jesus é Deus. E com esta frase pensamos saber alguma coisa sobre Jesus. Aplicamos a ele nossas representações espontâneas de Deus (grande, todo poderoso, imutável, onisciente, onipresente, imortal, espírito perfeitíssimo…) e julgamos ter captado o que é Jesus. Ora, caímos no absurdo de imaginar compreender o que se  nos dá na história (Jesus), aplicando-lhe características de algo completamente desconhecido (de Deus nada sabemos). Tentamos compreender o desconhecido (Jesus) por algo ainda mais desconhecido (Deus). E, assim, caímos em contradição, ao nos confrontar com os limites da humanidade de Jesus: nasce, muda, cresce, não sabe, necessita, sofre, morre… Quando os discípulos pretendem “ver” o Pai, qual é a resposta? “Quem me vê, vê o Pai” (15). Ou seja, inverte-se completamente o raciocínio: o correto não é “Jesus é Deus”, mas “Deus é Jesus”, é n’Ele, em sua experiência humana que o Mistério se faz “ver”, como nos ensinava o grande teólogo uruguaioJuan Luis Segundo. Em Jesus é que Deus se revela. Na experiência humana de Jesus de Nazaré Deus manifesta os traços de seu rosto. Deus que muda fazendo-se ser humano, Deus que cresce “em sabedoria e até em graça”, como nos diz ousadamente o evangelista Lucas cf. Lc 2, 40), Deus que não sabe, Deus que é “carne”, Deus que tem por mãe uma mulher pobre, Deus que morre como condenado na cruz… Estar atentos(as) à história concreta de Jesus, eis a condição para perceber algo de Deus. Quer dizer, a experiência humana – “Eis o Homem”, diz-nos o evangelista João (16) — é o lugar da busca de Deus. É do interior da práxis humana que têm de brotar os critérios de discernimento para a crítica dos ídolos e para a busca do Deus verdadeiro. Do contrário, esvaziamos o mistério da Encarnação: Jesus não é Deus homem, como duas dimensões justapostas, como se vê na mitologia (sereias, esfinge, “heróis”…); não, é “Deus feito homem”, Deus que “se fez carne”, isto é, ser humano, experiência humana, histórica. O futuro Papa Paulo VI, relatava ele mesmo depois nos “Diálogos com Jean Guiton”, chegou a espantar teólogos quando declarara: “Se o Verbo se fez carne, é sinal de que a carne é Verbo”.

Ora, na vida humana, a forma mais alta de ser é ser em liberdade. E a liberdade é o ato próprio que caracteriza a pessoa em sua relação com o mundo, com a comunidade, a sociedade, a história. Só é possível na abertura para além de si mesma. A liberdade só acontece como dinamismo de auto-superação, de ultrapassagem, de transcendência, pois quem permanece agarrado a si demonstra que ainda não é livre, permanece “necessitado”, carente, submetido aos próprios caprichos.. E o outro nome de transcendência é Amor, afirmação de outrem, acolhida de suas exigências ou necessidades e de sua diferença, dom da própria vida para criar vida (cf. Mc 8, 34-38). O Apóstolo São Paulo chegou mesmo à coragem de dizer que a lei está superada e foi abolida e por isso “tudo nos é permitido, só que nem tudo é conveniente”. E o critério para discernir o que convém é a necessidade do irmão ou da irmã(cf. 1Cor 10, 23-24). As outras pessoas tornam-se o critério e a exigência absoluta, condição para que se supere o regime da lei abstrata, o reino da necessidade (como diria Marx) e se estabeleça o regime da liberdade, o reino da graça. Não transcender-se é permanecer sob a necessidade de agarrar-se a si mesmo, aos próprios caprichos e ao instinto de preservação… não tornar-se livre. Como nos diz, com impressionante convicção, o poeta Ferreira Gullar, “o sentido da vida são as outras pessoas”.

Mas como entender que alguém, tão limitado e relativo quanto eu, possa impor-se a mim com caráter de absoluto a até exigir o dom de minha própria vida, como se fosse Deus? Nossas vidas se equivalem por serem sempre limitadas, não absolutas, contingentes, dizem os filósofos. Nem mesmo a soma de todos os seres humanos ultrapassaria o caráter de sua relatividade radical. Por isso, ninguém merece estritamente o dom da vida de ninguém. Se, mesmo assim, alguém se torna capaz de entregar-se por outrem é que na experiência do amor se lhe comunica uma dúplice revelação: há um Absoluto que, para além de mim, me chama e me exige; e essa exigência ultrapassa e transcende a relatividade de outrem por quem me entrego. No ato de amor fazemos a experiência do Absoluto e da transcendência. Isto quer dizer que, na história humana, e na vida de cada qual de nós, a experiência da transcendência é experiência muito concreta: é o ato de liberdade, só possível no ato de amor. Na verdade, a experiência de transcendência é a experiência da transcendência da outra pessoa e do conjunto da realidade em relação a mim; em palavras teológicas, é aí que se dá a experiência de Deus. Daí por que nos diz o apóstolo São João que quem ama faz a experiência de Deus (17). Por isso em toda a Bíblia as exigências de Deus são, de fato, as exigências do amor fraterno. E cada qual de nós é chamado(a) continuamente a acolher a outrem, quem é diferente de nós,  necessitado, estrangeiro, estranho, é essa presença que nos interpela e provoca a ultrapassar-nos. Li, certa feita, numa igreja anglicana do Porto, Portugal, a seguinte e perfeita síntese: “Há muitas maneiras de amar o próximo, mas só há uma maneira de amar a Deus, amando o próximo”. Não se trata de dois amores alternativos ou concorrentes, antes, um se dá no outro (cf. Mc 12, 28-34). Na Bíblia, os mandamentos que dizem respeito a Deus são, na verdade, o fundamento dos mandamentos que dizem respeito ao próximo (cf. Dt 5,1-22). Deus é a Fonte secreta, o Mistério abscôndito, o que aparece e se pode tocar são nossas relações (cf. Mt 6, 5-14). Sim, porque a liberdade, que é a posse suprema de si, só acontece quando alguém já não vive mais para si, mas para além, voltado para um horizonte de auto-superação infinito. A liberdade é aceitação do sacrifício, “esvaziamento de si”, morte para criar vida, como se vê na Carta aos Filipenses, cap. 2, versículos 1 a 11. Só quem se possui, pode entregar-se (18).

Eis por que na Bíblia, e na fé cristã, não se trata de um deus afirmado como “um ser acima da natureza e do ser humano”. Em si mesmo habita luz inacessível, ninguém jamais o viu e d’Ele até Jesus só sabe falar por comparação com as realidades de nossas experiências. D’Ele temos é a experiência de uma presença salvífica em meio à vida – YHWH, “Aquele que está aí”. É um novo Espírito que nos invade, um dinamismo de amor, coragem e alegria que nos arrasta e transporta. Eis por que é impossível separar fé e amor, o contrário do que pensava Feuerbach. Eis por que, nas chamadas virtudes “teologais”, a saber, energias que nos assimilam a Deus, fé, esperança e amor, antes de Deus ser objeto, é sujeito em nós: A , mais do que fé em Deus, é ter os olhos de Deus, assimilar Sua lucidez e luz infinitamente penetrante, face à realidade, o que nos dá motivos de confiança inquebrantável; a caridade, antes de ser amor a Deus, é amor de Deus derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5), é ser movido por Seu Espírito que nos impele à solidariedade na construção de uma obra que cria o bem para outra pessoa, assumida como parte de mim mesmo(a), é querer bem como Deus quer bem; a esperança é a fidelidade inquebrantável, perseverança de quem nunca rompe a aliança. Fé e esperança são duas dimensões do amor, sua lucidez e sua fidelidade até à morte. Com efeito, amar é querer bem. Quem pode querer o bem a Deus, em Sua perfeição infinita? O que temos de fazer é, como Deus, querer o bem a outrem.

Vê-se como a questão de Deus não é de nomes ou de etiquetas religiosas: “Não é aquele que diz Senhor, Senhor, que participará do Reino dos Céus, mas quem faz a vontade do Pai” (19). Não é nem  mesmo questão de religião: “Fizemos até milagres em Teu nome. Mas o Rei lhes responderá: Eu não vos conheço” (20). É, antes de mais nada, experiência que se dá no centro da experiência humana fundamental – a partilha do poder sobre o mundo, partilha da vida, pelo serviço, e partilha dos bens. E hoje sabemos que, no estágio atual de desenvolvimento das forças produtivas, essa comunhão não pode permanecer (como foi no “comunismo” dos primeiros cristãos – cf. At 2, 42-47; 4, 32-37) no nível da distribuição e do consumo, muito menos ainda da ajuda emergencial, sob pena de tornar-se ineficaz e favorecer a reprodução dos mecanismos de exploração; a comunhão, na forma concreta da justiça, tem de chegar ao processo de produção, como nos indicavam, clara e corajosamente, Bispos e Superiores religiosos em memorável documento publicado nos tempos sombrios da ditadura civil-militar: “Ouvi os Clamores do Meu Povo” (21). Na verdade, o julgamento decisivo é proclamado naquela palavra do Rei, que paradoxalmente é o mendigo: “Eu tive fome e vós me destes de comer” (cf. Mt 25, 31-46).  Aqui estamos no centro mesmo do mistério da Eucaristia e da mensagem da Ressurreição, tocamos o coração da identidade da Igreja e de sua tarefa na sociedade: a partilha do pão como sinal da partilha da vida. “Minha fome é meu problema material, a fome de meu irmão, porém, é meu problema espiritual”, dizia um teólogo ortodoxo.

Dizia a filósofa francesa, cristã e comprometida com a causa operária, Simone Weil: “Eu reconheço a pessoa de fé, não quando me fala de Deus. Mas na maneira como encara este mundo”. De fato, não se trata de falar de Deus, de referir-se a Ele, como se fosse um objeto a mais em nossas vidas. Trata-se, isto sim, de participar de Sua vida, de fazer a experiência teologal de Sua atitude amorosa e tornar-se, como diria o Apóstolo São Paulo, cooperador de Sua obra de salvação, que é a restauração e a plena expansão da vida. Participar da obra de um Deus que, por amor ao mundo, que é essencialmente material, não hesitou em entregar seu próprio Filho unigênito e fortalecer-nos com Seu Espírito… (cf. Rm 8).

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Obs: Imagem enviada pelo autor.

 

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