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Hoje, 12 de outubro, ao assistir pela TV Aparecida, a celebração da missa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, não pude deixar de perceber ali, o que na Liturgia se constituem “ruídos”, assim denominados quaisquer sons supérfluos, sejam  musicais ou simplesmente  verbais, que estejam fora do contexto litúrgico celebrativo.

É sabido que a celebração litúrgica do Mistério Pascal de Cristo, que se realiza na missa, obedece a parâmetros bíblicos-teológicos, representados pelos ritos litúrgicos, que são os sinais simbólicos que realizam e atualizam o que significam. Assim é que na missa não há ritos supérfluos nem palavras desconectadas com o sentido do que está sendo celebrado.

Todavia, nem sempre, as missas são celebradas de acordo com as prescrições litúrgicas recomendadas pela Igreja pós conciliar, que ao renovar a liturgia, enriqueceu-a, aprofundando o verdadeiro sentido da celebração Eucarística e ao mesmo tempo, permitindo ao povo compreender seu sentido  para que possa participar de forma consciente desse mistério, através dos ritos da missa.

Sobre os “ruídos”, é impressionante o quanto de ruídos acontece nas missas solenes, como na de Aparecida em que o presidente da celebração saúda nominal e pessoalmente autoridades eclesiásticas, civis, militares e demais, quando a única saudação deve ser a toda assembleia reunida em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, como Igreja, corpo místico, do qual Cristo é cabeça. A esta saudação à assembleia, feita por quem preside in persona Christi,  os fiéis respondem: Amém.  O que for acrescentado a mais, torna-se ruído impróprio e descabido.

Além desse, outro ruído se manifestou no canto de abertura através do refrão do qual se ouvia o seguinte: “Com Maria, em Jesus chegamos à gloria! Chegamos à glória com Maria, em Jesus”. Analisando-se o refrão, verifica-se neste uma impropriedade teológica e além de faltar clareza, o texto sobrepõe Maria a Jesus. Sabemos que Maria é intercessora, não condutora. O condutor é Jesus, através de sua Palavra. Portanto, seria mais apropriado dizer-se: Chegamos à glória por Jesus, com Maria! Com Maria, por Jesus, chegamos à glória!  Tais “ruídos”, entretanto, passam despercebidos por quem canta sem atentar para o sentido do texto que está sendo cantado. Desse modo, iniciado o canto, as pessoas entram na onda da melodia e cantam, automaticamente, o que ouvem e aprendem, como papagaios. Daí, a responsabilidade de quem escolhe os cantos para uma celebração eucarística, de optar por cantos litúrgicos, integrados ao rito e que reflitam as leituras bíblicas, a exemplo do salmo responsorial que é sempre resposta à Primeira Leitura e do canto de comunhão, cujo texto remete sempre ao Evangelho proclamado, operando-se, assim, a verdadeira integração da mesa da Palavra com a mesa da Eucaristia. No caso do citado canto de abertura, o ruído se fazia sentir, justamente, na imprecisão teológica contida no texto do refrão.

Quanto às alegorias, refiro-me à apresentação de uma dança encenada por várias jovens portando cartazes com invocações a Nossa Senhora, ao som de violinos que executavam a “Primavera”, uma das área das “Quatro Estações”, de Vivaldi, seguida por um carro transportando um grande mapa do Brasil, forrado por milhares de flores coloridas, tendo sobre ele uma imagem da padroeira, Nossa Senhora Aparecida, acompanhada ao som da Ave Maria de Gunot.  Em que pese a beleza da música e o gracioso desempenho das jovens dançarinas, essas exibições artísticas que talvez pretendessem  ter cunho litúrgico, serviram apenas como alegorias fora do contexto ritual, vez que não acompanhavam, sequer, a procissão de entrada, que faz parte dos ritos iniciais da celebração. Naquele momento estavam completamente desligadas do rito e, portanto, destituídas de sentido litúrgico ritual. A dança poderia ter acontecido, por exemplo, no momento da oração dos fiéis, durante as invocações à Nossa Senhora, como mostravam os cartazes; e o mapa do Brasil com a imagem da Aparecida, poderia receber a saudação dos fiéis no final da celebração, porquanto, na liturgia não há elementos supérfluos. Tudo tem um sentido e tudo se ordena e se destina a realizar, através dos ritos litúrgicos, o mistério pascal de Cristo.

A propósito, faço aqui uma observação que me parece pertinente: Na celebração da missa de Nossa Senhora Aparecida, que é representada pela imagem negra encontrada nas águas do Rio Paraíba, percebi que entre as jovens dançarinas não havia nenhuma negra ou mestiça. Isso me fez lembrar uma reflexão escrita por Reginaldo Veloso, aqui transcrita:

“Na verdade, deve haver um “enigma divino”, que importa ser decifrado por quem tem “olhos de ver”, nessa coincidência de a Mãe do Senhor aparecer “branca” a brancos, em Lourdes e em Fátima… aparecer “morena” a um índio, em Guadalupe… aparecer “negra” a negros, no Vale  do Paraíba, em tempos de escravidão, início do século XVIII. Quanta dificuldade tem a Instituição Eclesiástica de reconhecer-se, num país de maioria negra ou mestiça, como chamada por Deus a servir à causa da libertação dos oprimidos e excluídos, a engajar-se no combate ao preconceito, a contribuir para a convivência harmoniosa e enriquecedora entre etnias e culturas diferentes!”

Passando à Liturgia da Palavra, a Primeira Leitura, do Livro de Ester, foi proferida pelo governador Geraldo Alckmin, escudado por sua esposa que, postada ao lado da estante da Palavra, era uma figura meramente decorativa, cuja presença não tinha ali o menor significado, a não ser a ostentação pessoal. Na verdade, é incompreensível, essa deferência por parte de membros do clero para com pessoas públicas, que em geral aproveitam a celebração religiosa  para se promoverem perante os milhares de fiéis que poderão ser-lhes úteis, em futuras eleições. Aliás, esse é um hábito que vem sendo alimentado por padres, em relação a políticos que fazem bom proveito dessa exibição de religiosidade oportunista.

Por último, vem o ruído maior, que é o uso de marketing comercial na própria missa. Assim é que, além de oportunizar momentos para pedir doações em benefício da “Campanha dos Devotos”, no final da missa surgiu na basílica um carro alegórico conduzindo um adulto e uma criança cada qual trazendo os respectivos Livros de Doadores,  para serem colocados, solenemente, sob o altar, como se quais fossem relíquias de santos. Esse marketing ostensivo se constitui numa apropriação indevida da celebração, para explorar a piedade dos romeiros. E, por fim, seguiu-se outra alegoria, representada por jovens portando cartazes de plantas e animais, que não deu para saber a que se referiam e o que simbolizavam.

Diante de todo esse aparato, é de se perguntar se essa exacerbação religiosa que alimenta o devocionismo popular, na Basílica de Aparecida, está a serviço da verdadeira evangelização que favorece uma fé engajada e libertadora? Ou, se está a serviço da alienação e da manutenção de um sistema eclesiástico alheio ao Evangelho e ao Concílio Vaticano II, sistema esse que faz da religião um  meio para alcançar objetivos materiais, a exemplo da suntuosidade da própria Basílica? Seria, realmente, esse o caminho que a emblemática imagem negra de Nossa Senhora Aparecida, aponta aos seus devotos, que são, antes de tudo, os pobres, os fracos, os doentes, os negros e todas as vítimas de exploração, de racismo e de  preconceito?