(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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O Papa Francisco está de volta a Roma após sua viagem a Cuba e aos Estados Unidos. Torna-se difícil dizer, entre os vários discursos que pronunciou, qual o de maior impacto. Assim como em Cuba a tônica foi a da reconciliação, parece-nos que nos Estados Unidos haveria que destacar seu discurso ao congresso, onde foi aplaudido e ovacionado várias vezes.
Primeiro pontífice a falar no Congresso estadunidense, Francisco pronunciou ali um discurso considerado histórico por todos os analistas. Tocou em todos os pontos críticos da política interna e externa do país, não se desviando de nada que pudesse ser mais conflitivo ou arriscado. Falou como imigrante, cuja família veio da Itália para o sul do continente americano. E recordou aos congressistas que ali todos ou quase todos partilhavam com ele da mesma condição. Por isso, pediu o fim da “mentalidade de hostilidade” contra os migrantes e a passagem a uma “subsidiariedade recíproca: “Não tenham medo deles. Olhem seus rostos. Escutem suas histórias”, pediu aos congressistas.
Não poderia faltar o tema do clima e do meio ambiente por ele tão bem tratado em sua encíclica “Laudato Sì”. Com relação a este tema, que divide republicanos e democratas nos Estados Unidos, Francisco afirmou ter o Congresso daquele país um importante papel a cumprir na luta contra os danos e agressões ao meio ambiente. Pediu “ações valentes” neste sentido, dizendo estar convencido de que se pode fazer a diferença neste assunto.
O discurso avançava e o Papa ia adentrando cada vez mais profundamente em temas polêmicos e candentes. Chegou a vez de tocar na ferida da pena de morte, ainda tão presente e praticada nos Estados Unidos. Contra ela, o pontífice falou claramente. Pediu sua abolição global, dizendo estar convencido de ser esse o modo correto de agir, já que toda vida é sagrada. Neste ponto colocou-se inclusive mais radicalmente em favor da vida do que o próprio texto do Novo Catecismo da Igreja Católica, que admite o recurso à pena de morte se for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto.
A posição papal nesta negativa frontal a tudo que produz violência e que agride a vida humana foi ainda reforçada com sua denúncia corajosa e veemente sobre o comércio de armas. Ao perguntar-se diante dos representantes eleitos de um país que ocupa o primeiro lugar no ranking mundial desse comércio “por que há tantas armas mortais sendo vendidas àqueles que pretendem infligir sofrimento a indivíduos e sociedades”, tocou fundo na causa primeira e maior de tal fato: ” Infelizmente, a resposta, como todos nós sabemos, é simplesmente por dinheiro: dinheiro encharcado de sangue, frequentemente de sangue inocente.”
O mundo inteiro acompanhava, impressionado, o discurso sereno e corajoso de Francisco. A força maior do que dizia, no entanto, não estava apenas com ele. Invocou para acompanhá-lo quatro figuras humanas, quatro grandes cidadãos daquele país que encarnaram os valores que podiam fazer face aos contravalores que ameaçam hoje a vida e a harmoniosa convivência na grande nação do norte.
O primeiro foi Abraham Lincoln, presidente norte-americano que defendeu a liberdade e trabalhou incansavelmente para que a nação conhecesse uma nova aurora de liberdade. O segundo, Martin Luther King, que assumiu como ideal e objetivo de vida realizar o sonho de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. A partir do famoso e grande discurso de Luther King no Alabama, “Tive um sonho”, Francisco se referiu aos Estados Unidos como a terra dos sonhos e lembrou os migrantes, tantos homens e mulheres que acorrem em massa ao país em busca da realização de um sonho que transforme suas vidas.
A terceira foi uma mulher: Dorothy Day. Serva de Deus, em processo de canonização, esta ativista norte-americana foi citada por Bento XVI em sua homilia da Quarta-feira de Cinzas, imediatamente após a renúncia ao pontificado, como modelo de conversão. Agora é resgatada por Francisco como exemplo a seguir na paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos inspirada no Evangelho.
Finalmente o quarto: um monge trapista, Thomas Merton, cujo centenário é celebrado neste ano de 2015. Homem de oração e pensador que desafiou as certezas de seu tempo, Merton, desde sua cela na Trapa, comunicou-se com o mundo inteiro através de seus escritos, abrindo novos horizontes para a Igreja. Além disso – lembrou o Papa – foi também um homem de diálogo, promotor da paz entre povos e religiões.
Francisco terminou seu discurso sob uma chuva de aplausos. Mas fez sentir ao congresso dos Estados Unidos que tudo o que dizia recebia seu sentido maior da menção à nuvem de testemunhas que o rodeava. Chamou a atenção para o fato de que uma nação é grande não quando é a mais rica do mundo, nem quando é a maior potência mundial e possuidora da maior quantidade de material bélico. Nem tampouco quando faz tremer os mais fracos e vulneráveis com seu poder e a truculenta defesa de suas fronteiras.
Mas a grandeza de uma nação se torna patente quando defende a liberdade como Lincoln; quando gera uma cultura que permite sonhar com a plenitude dos direitos para todos, como fez Martin Luther King; quando se identifica totalmente com a justiça e a causa dos oprimidos, como Dorothy Day; quando vive uma fé que se faz diálogo e semeia paz como Thomas Merton.
Assim partiu Francisco, deixando atrás de si a mensagem da Carta aos Hebreus, 12,1: Portanto, também nós, considerando que estamos rodeados por tão grande nuvem de testemunhas, desembaracemo-nos de tudo o que nos atrapalha e do pecado que nos envolve, e corramos com perseverança a corrida que nos está proposta.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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