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Introdução

A problemática em torno do fenômeno conhecido como sincretismo não só é bastante próxima ao tema da inculturação, como ainda traz à luz novos aspectos desta realidade. Objeto de estudo das ciências da religião, sobretudo da história, da sociologia e da antropologia cultural, o sincretismo também vem sendo alvo de pesquisa e avaliação por parte da teologia. A passagem do nível fenomenológico para o teológico já apresenta certa dificuldade epistemológica, que exige uma distinção bem clara das duas possíveis leituras do fenômeno. Vamos ver que ambas se justificam, são legítimas sem mais, mas não devem ultrapassar, em seus juízos, seus respectivos campos noéticos.

O sincretismo, em sua vertente cultural ou religiosa, desmascara um discurso sobre a inculturação da fé que se confinasse exclusivamente aos dois pólos fé e cultura. Pois na medida em que as culturas estão embebidas no “religioso”, a relação fé-cultura é inevitavelmente também uma relação fé-religião. Deste modo, a expressão “inculturação da fé” aponta apenas para uma parte do fenômeno, já que juntamente com elementos culturais também componentes religiosos são assimilados, reinterpretados, integrados pela fé cristã em sua autocompreensão. Como já foi afirmado, deveríamos completar o discurso sobre o fenômeno da inculturação da fé introduzindo a expressão “inreligionação da fé”.[1]

Contudo, o assumir componentes de outras religiões evoca em nossa mente mistura, deformação, perda de identidade, heresia mesmo. Tudo isto vem sintetizado de certo modo no vocábulo “sincretismo”, tal como é tradicionalmente entendido no cristianismo.[2] Portanto, esta noção completa, por um lado, o discurso sobre a inculturação, mas, por outro, aporta reais problemas para o nosso tema. Não podemos ignorá-lo, já que a própria história do cristianismo o atesta: a inculturação se deu pela assimilação de componentes culturais e religiosos.

O sincretismo cultural e religioso é um fenômeno muito mais espalhado do que pensamos, sobretudo nas sociedades pluralistas onde vivemos. Em nosso país, profundamente pluricultural e multirreligioso, esta realidade pode ser facilmente encontrada. Mas a finalidade deste estudo não é oferecer um juízo teológico sobre os atuais grupos religiosos, caracterizados comumente como sincretistas. Nosso objetivo é mais modesto, pois pretende apenas municiar o leitor com chaves interpretativas, que permitam posteriormente uma avaliação teológica de cada grupo concreto. Pois bem sabemos como estes são, em nosso país, muito numerosos e bem diversos entre si.

Como o termo “sincretismo” recebe já nas ciências das religiões significações diversas, sendo que também na teologia é entendido e valorado diversamente, se nos impõe primeiramente esclarecer o sentido que lhe atribuímos nesta reflexão. Em seguida, examinaremos como o processo da inculturação da fé não se limita ao âmbito do cultural, mas implica também o universo religioso. Numa terceira parte tentaremos avaliar teologicamente o sincretismo religioso dentro do contexto da inculturação da fé. E somente no final, numa perspectiva mais pastoral, entraremos na complexa questão do assim chamado “sincretismo afro-brasileiro”.

1. Sincretismo: um termo complexo

Sabemos que o termo “sincretismo” tem sua origem em Plutarco[3] e caracterizava a união das cidades cretenses, normalmente inimigas, diante de ameaças externas. Desde o renascimento serve a palavra para designar, positiva e negativamente, compilações sintéticas de cunho cultural. Na época do confessionalismo se tornou um conceito antiecumênico, até emergir no século XIX como um instrumento utilizado nas ciências da religião.[4] Aí então foi empregado, com finalidade descritiva ou polêmica, no estudo histórico do cristianismo, já que este, em seu desenvolvimento, absorveu elementos culturais e religiosos de seu contexto. Neste sentido muitos consideram o catolicismo como um dos maiores exemplos de uma religião sincretista.

Para as ciências da religião o sincretismo é um fenômeno que acontece, sem conotação positiva ou negativa. Ao analisá-lo, contudo, discordam claramente os estudiosos, devido ao diverso instrumental teórico usado para interpretá-lo e aos pressupostos subjetivos, conscientes ou não, por parte dos cientistas.[5] Exemplo marcante desta falta de consenso no estudo deste fenômeno vem a ser a rica diversidade de interpretações diante do sincretismo religioso afro-brasileiro.[6] Nosso objetivo nesta reflexão é de ordem teológica. Evitando entrar no mérito das discussões em curso, procuraremos apenas delinear o fenômeno do sincretismo em vista de uma avaliação teológica e em continuidade com a temática da inculturação.

O fenômeno do sincretismo, visto em toda sua amplitude, não se limita ao encontro de duas religiões, mas pode também acontecer entre duas culturas ou mesmo entre uma religião e uma cultura. Já aqui aparece quão próximo está do tema da inculturação. Contudo, dentro da nossa perspectiva, o consideraremos sobretudo como a integração de elementos religiosos, presentes numa determinada cultura, quando se dá a inculturação da fé nesta cultura. Assim, nosso objetivo não consiste primariamente em estudar as mútuas transformações resultantes do encontro de duas religiões, mas a incidência da dimensão religiosa da cultura no cristianismo, como fator intrínseco ao processo de inculturação.

Poderíamos já aqui antecipar a hipótese de que, nesta perspectiva, o sincretismo religioso (previamente a uma valoração teológica) poderia ser parte ou etapa do processo de inculturação da fé. Mais ainda. Como as culturas (com seus respectivos núcleos religiosos) são grandezas porosas em contínuas transformações, assim a inculturação da fé significaria um processo permanente na vida da Igreja, dele participando também o sincretismo enquanto sua vertente religiosa.

Mesmo aceitando as leituras “funcionalistas” ou “político-sociais” das metamorfoses culturais, a assimilação de elementos religiosos “alheios” provém das mesmas causas responsáveis pela transformação cultural. Diante de situações existenciais que não mais conseguem ser enquadradas pelas coordenadas da cultura tradicional, faz-se mister abrir e expandir este horizonte de sentido através da incorporação de novos elementos que, modificando a semântica dos demais componentes e, conseqüentemente, da visão global (horizonte), consigam iluminar e dar sentido aos novos desafios.

A mesma razão comanda o processo de inculturação da fé, pois esta, para ser captada e vivida num contexto diferente, deve incorporar os novos traços culturais para poder se constituir, expressar e ser uma realidade viva. Entre estes traços estão componentes religiosos da outra cultura, que iluminam desafios da mesma e que deverão ser assumidos ou modificados pela fé, cuja intencionalidade fundamental é nada deixar fora de sua luz e inteligibilidade. Aqui já aparece o sincretismo religioso, como fenômeno neutro, como estreitamente vinculado à inculturação da fé.

Já a história das religiões nos mostra que as chamadas “grandes religiões” distinguem-se das religiões mais primitivas, das religiões tribais, por experimentarem um desenvolvimento interno em sua autocompreensão, motivado por questionamentos que se situavam além de seu halo luminoso de sentido. Na medida em que foram capazes de enfrentá-los e enquadrá-los, tornaram-se menos provincianas e mais universais, podendo então ser assumidas por outros povos e por outras culturas.

Diversos fatores possibilitam e facilitam a assimilação dos novos elementos religiosos. Em primeiro lugar as semelhanças encontradas em ambas as religiões, sejam de ordem ritual (uso de água benta), doutrinal (comunhão dos santos e culto dos ancestrais), devocional (orações de petição) ou moral (normas concernentes ao respeito do semelhante).[7] Em seguida, as lacunas existentes num sistema religioso, e então percebidas por ocasião do contato com outra religião, serão preenchidas por elementos desta última. Tais lacunas podem surgir também do impacto com outra cultura. Um outro fator de incorporação está na maior força de uma cultura (com sua religião) sobre outra. Neste caso, a cultura desprovida de poder e recursos quase desaparece diante da outra. Deste modo, a religião do mais forte dispensa a inculturação e quase não sofre influência da religião nativa. Não teria isto ocorrido com os nossos índios ao longo da costa brasileira?

Naturalmente nem tudo será incorporado ou assimilado, mas poderá aparecer justaposto ou ser simplesmente rejeitado por uma das religiões em contato. Assim, no caso do encontro entre catolicismo e religião africana pode haver convergência entre a concepção de Deus, certo paralelismo (semelhança) entre orixás e santos católicos, mistura na prática de certos ritos, como o batismo e a missa de sétimo dia, e separação (rejeição) com relação a certos elementos (tambor de choro ou axexê). Tais diversidades podem se dar simultaneamente.[8]

Para a fenomenologia religiosa o que está em jogo no processo de sincretismo é a identidade social do indivíduo. Pois a outra cultura (com sua visão religiosa) é vista como uma ameaça ao seu mundo já organizado e com suas respectivas práticas. Contudo, alguns elementos culturais (e religiosos) são assumidos, embora outros sejam rejeitados. Por que isto acontece? A leitura funcionalista deste fenômeno pressupõe aqui uma situação de crise, em vista das contradições culturais e/ou religiosas sofridas pelo indivíduo. Este sai então em busca de uma nova síntese que assegure novamente sua identidade.[9]

No caso do cristianismo deve ser considerado não só o esforço missionário em tornar a fé cristã entendida, aceita e vivida em outra cultura/religião, mas também a resistência dos povos nativos em conservar no cristianismo ao menos parte de seu universo simbólico cultural/religioso (símbolos, categorias e valores), como se deu em algumas regiões da América Latina.[10]

Naturalmente a nova síntese[11] irá assumir, sem mais, alguns elementos, descartar outros e ainda integrar outros numa totalidade diversa, no interior da qual dificilmente poderão conservar seu sentido original. Pois como símbolos polissêmicos se prestam a mudanças semânticas não alheias, mas também não idênticas às suas raízes. Utilizados em outros contextos, dentro de outros horizontes, confrontados com outras relações de poder, mudam os símbolos ou se transformam seus significados. Enfatize-se ainda que a introdução de novos elementos no interior de um sistema cultural ou religioso acaba por incidir, em graus diversos, no próprio sistema.[12]

O sincretismo aparece assim como um processo em andamento possibilitado pela distância que sempre vigora entre um sistema cultural/religioso e o indivíduo. Nunca este assimila perfeita e completamente aquele. Ao acolher, entender, tornar realidade vivida os elementos do sistema, o indivíduo já os modifica ao interpretá-los a partir de seu contexto vital, de seu horizonte de compreensão, de suas dificuldades existenciais e experiências de vida. Enquanto processo, ele se distingue, ao menos teoricamente, do sincretismo como resultado final.

Esta observação terá grande importância na posterior reflexão teológica, já que o sincretismo poderá, assim, aparecer como uma etapa prévia à inculturação da fé, atingindo mesmo o processo contínuo que é a vida, a prática e a doutrina cristã.[13] Com isto já começa a surgir o problema da identidade cristã, de grande importância para uma reflexão de cunho teológico.[14]

2. Sincretismo ou inculturação?

Como sabemos, o termo “inculturação” e seu conteúdo semântico só conseguiram consenso na reflexão teológica por ocasião destes últimos anos. O mesmo não podemos afirmar da expressão “sincretismo” que, pelo contrário, já atravessou séculos. Não nos admira portanto que ainda recentemente seja utilizada por teólogos.[15] Nota-se porém neles, em primeiro lugar, uma clara preocupação, ausente nos cientistas da religião, de distinguir entre sincretismo correto e sincretismo falso. Além disso, pode ser observado que a argumentação em torno do fenômeno do sincretismo não só faz referências constantes à Bíblia, mas também se apresenta como teológica, sem contudo se opor às explicações anteriores das ciências da religião, mas, de certo modo, assumindo-as e integrando-as numa síntese superior. Estes dois pontos serão agora objeto de nossa reflexão.

A preocupação com o sincretismo “verdadeiro”[16] (talvez o termo mais exato fosse “legítimo”) traz à tona a questão de salvaguardar a identidade cristã em meio às incorporações de elementos alheios, acontecidas durante o processo. Iremos examinar este ponto na terceira parte, mas já percebemos ser o enfoque teológico diverso do enfoque fenomenológico. Pois, para a teologia, o que há de mais fundamental na religião é Aquele que atua na história e na humanidade, levando os seres humanos a reagirem e constituírem o fenômeno religião. Reconhecer a ação específica, determinada, qualificante de Deus é confessar não só uma identidade de uma configuração religiosa, mas sobretudo sua verdade.

Nenhum adepto de uma religião, desde que esteja em são juízo, irá se comprometer com uma realidade que poderia ser falsa ou simplesmente uma ilusão. Pressuposto básico de sua adesão religiosa é a verdade e a consistência daquilo no qual ele crê. Reconhecer Deus como agente primeiro do fenômeno religioso nos possibilita chegar a uma definição substantiva de religião. Cortado o elo entre Deus e a religião, cria-se então o espaço para as múltiplas tentativas de defini-la, todas insuficientes por permanecerem no nível antropológico: dimensão permanente da vida humana, sua última dimensão, sua presença nas culturas, etc. Tentativas insuficientes, embora não falsas, como não o são as leituras funcionalistas do fenômeno religioso: domínio da contingência, consciência de um sentido totalizante da realidade etc.

Já Schleiermacher observara que a religião não é algo acrescentado à realidade humana e ao seu mundo, e sim uma concepção mais profunda e mais consciente desta mesma realidade. Deste modo, a consciência “profana” (ou “secularizada”) da realidade está sustentada, fundamentada, carregada por Deus do mesmo modo que a assim chamada consciência “religiosa”. O que as distingue é que a primeira não cai na conta de que também é constituída por uma realidade transcendente, que a segunda chama Deus. Importante é que a passagem de uma para outra resulta da ação do próprio Deus, que não pode portanto estar ausente de uma definição de religião.[17]

Portanto, a preocupação teológica com a identidade ou a verdade de uma religião provém desta presença de Deus, sempre atuante na condição humana e em sua história, e evocada consciente e explicitamente na religião. Caso contrário esta poderia ser um mero produto humano, uma ilusão criada pelo próprio homem para minorar seus sofrimentos e suas aporias. É o fenômeno religioso uma mera fachada do tipo usado nos estúdios cinematográficos ou de fato expressão de uma realidade consistente? O discurso das ciências da religião é pertinente e importante para a teologia,[18] mas não significa de modo algum a última palavra sobre a questão. O desrespeito epistemológico a este fato pode levar a afirmações errôneas ou parciais.

As religiões, enquanto representam o lado humano desta atuação transcendente, contêm em si mesmas todos os complexos e numerosos componentes da realidade do homem. Inseridas numa história concreta, num determinado contexto cultural, numa certa organização social, afetadas pelas condições econômicas vigentes, herdeiras de tradições religiosas anteriores e conduzidas por personalidades com psicologias específicas, manifestam as religiões, fenomenologicamente consideradas, características próprias ao procurarem traduzir em nossa linguagem o intraduzível.

Pelo fato de que suas expressões brotam da percepção desta Realidade Última em meio à vida e aos acontecimentos, com todos os condicionamentos acima mencionados, as religiões refletem e denunciam o solo de onde brotaram e são, como tais, históricas, contextualizadas, parciais. Tal fato, em geral, só emerge à consciência humana como resultando do confronto com outras situações existenciais, com outros contextos culturais, com outras tradições religiosas.

As religiões, portanto, enquanto buscam balbuciar o Indizível e soletrar o Mistério, são sempre inadequadas em suas expressões, ou seja, em suas formulações doutrinais, cúlticas ou éticas. Ao se defrontarem com novas realidades, que significam desafios inéditos, devem elas cobrir tais realidades com o manto explicativo e unificador de suas expressões religiosas. Se não conseguem, poderão ser assimiladas por outras religiões com maior potencial de compreensão, como se deu com muitas religiões tribais, que satisfaziam plenamente dentro de um contexto sociocultural limitado, mas que desapareceram quando confrontadas com outro mais vasto e mais problemático.

Resta ainda a possibilidade de reinterpretar suas próprias expressões para adequá-las às novas realidades, tornando-se assim uma religião mais ampla e universal. Sobretudo se consegue libertar-se da cultura local, seu berço de nascimento, terá ela maior chance de ser acolhida por outras culturas e por outros povos. A dispensa da circuncisão para os cristãos vindos de fora da Palestina foi, sem dúvida, decisiva para a propagação do cristianismo nascente. E ainda pode se dar que elementos das outras religiões sejam assumidos, para cobrir lacunas e completar insuficiências. A rejeição de outros componentes religiosos “de fora”, como ameaças à identidade de uma tradição religiosa, também pertence ao processo.

A história das religiões nos ensina que tais possibilidades realmente aconteceram. Algumas religiões menores desapareceram, outras se universalizaram, constituindo o que hoje conhecemos como as grandes religiões. Quanto mais uma religião penetra com sua luz toda a extensão da realidade, mesmo em suas áreas mais recônditas, mais ela traduz a verdade de que o Transcendente atinge, fundamenta e dá vida a tudo, nada escapando à sua presença e atuação. Neste sentido as religiões que remontam a mitos de origem terão maior dificuldade em reinterpretar e alargar seus fundamentos ou mesmo em assimilar novos elementos, sem ameaçarem ou suprimirem a si próprias.

Naturalmente a releitura feita pelas religiões não pode prescindir dos fatores políticos e econômicos, que certamente as afetam. Podem eles até ter sido a ocasião destas novas interpretações, já que trouxeram situações inéditas que deveriam ser iluminadas pelas crenças religiosas. Mas querer vê-las como funções de mudanças políticas ou econômicas, em que povos vencidos devem também ver seus deuses desaparecerem, não recebe confirmação da história das religiões.[19] Por vezes, as divindades dos povos vencidos conseguem não só sobreviver, mas ainda se impor aos povos vencedores, como aconteceu no caso de Marduc, divindade dos babilônios vencidos que acabou conquistando os assírios vencedores. A Bíblia nos relata também como a fé em Javé não desaparece com a derrota do povo e o exílio na Babilônia, porque os profetas foram capazes de oferecer uma interpretação que sustentou a fé do povo em Javé.

Estas novas interpretações ao longo da história alcançam resultados limitados, que poderão ser desmentidos, suplantados ou confirmados por novas leituras, ocasionadas por situações contingentes ou eventos históricos. Aqui se manifesta não somente a historicidade do ser humano e de seu conhecimento, mas também a verdade mais fundamental de que qualquer expressão humana é inadequada e incapaz de exprimir a infinitude de Deus. Embora apontando para a Realidade Última que a sustém, a consciência religiosa caminha passo a passo, sabendo que cada um deles é finito e deve estar aberto para uma maior plenitude.

Já o fechamento de uma cultura em si mesma contradiz o dinamismo do espírito humano, que sempre tende para além do finito. Daí serem elas grandezas porosas, podendo crescer e sofrer transformações. As religiões, enquanto voltadas direta e explicitamente para o Fundamento Último de tudo, também das culturas, o qual é infinito, com mais razão devem se mostrar abertas a uma maior plenitude e universalização. O tempo é então a condição do Infinito se manifestar no finito e do Transcendente, que une e ilumina toda a realidade, aparecer na história. Ele é sempre captado inadequada e historicamente pela religião. Caso contrário, Deus não seria infinito, não seria Deus. A história recebe então uma conotação teológica: é a história da manifestação do Mistério Divino para o qual está voltado e pelo qual se constitui o espírito humano. É na história que se revelam sua realidade e sua especificidade.

A Bíblia confirma nossa reflexão. Já a noção de Javé para Israel, para oferecer um exemplo de peso, resultou da síntese de diversas tradições religiosas. Aí se acham presentes o Deus cananeu do Sinai, do Êxodo, do céu (com o atributo de criador). A exclusividade da fé em Javé proibia uma pluralidade de divindades; daí a assimilação de outros deuses ou também a forte rejeição a Baal, embora com a apropriação de algumas suas características. Assim, a figura de Javé confirma o que alguns chamam de um “processo sincretista”.[20] Fica naturalmente a questão do critério utilizado para o acolhimento do Deus celeste EL e a recusa do Deus da fertilidade BAAL. Isto deverá ser examinado posteriormente.

Outra confirmação importante do que foi dito diz respeito à abertura para o futuro que caracteriza a fé de Israel. A dura experiência da perda da terra prometida e do reinado davídico em Sion lançou seu olhar, guiado pelos profetas, para uma salvação futura e definitiva de Javé. Deste modo, o Deus da salvação escatológica se demonstra Senhor do presente. A partir daqui a tentação de Israel irá consistir em querer fundamentar sua fé em acontecimentos do passado, como a entrega da Lei no monte Sinai.

Jesus aprofunda e radicaliza a linha profética, negando ser o Reino de Deus a realização das normas do passado. Este significa a vinda futura de Deus, dotada de consistência própria e não dependente de tradições religiosas de um povo, mas fundamentando a vida presente como uma vida no amor. O Deus de Jesus Cristo, o Deus do reino vindouro, manifesta assim a inesgotabilidade de seu mistério, confirmada ao longo da história por novas configurações sempre inadequadas e abertas. Toda a pessoa de Jesus Cristo remete a este Reino futuro, a este Deus infinito.[21]

Aqui podemos introduzir, à guisa de exemplo, a expressão “Deus semper maior”, expressando que nosso saber (e nosso agir) sobre Deus não se identificam com Ele, mas são por Ele determinados no processo imprevisível da história.[22] Sem dúvida alguma, Jesus Cristo, por suas palavras e por suas ações, mesmo respeitando a divindade de Deus, revelou este Deus, inesgotável e imune a qualquer manipulação, como um Deus que traz vida ao pecador e ao pobre, aos marginalizados sociais de seu tempo. Voltar-se para estes últimos impede que nos fixemos em representações idolátricas de Deus, ao mesmo tempo em que nos lança no oceano desconhecido de seu mistério, cujas águas suplantam nossas rotas familiares e fornecem experiências inéditas que nos estimulam à conversão e à adoração obediente.[23]

Podemos também evocar o tema do “Deus absconditus” que atravessa o Antigo Testamento até chegar a São Paulo (1Cor 13,12: “vemos como num espelho”) e a São João (Jo 16,12s: o Espírito vos revelará toda a verdade”), à tradição da teologia negativa e mística, à reserva escatológica (“já e ainda não”), ou à característica inerente às afirmações doutrinais cristãs de poderem ser aperfeiçoadas.[24]

O documento Diálogo e Anúncio é claro neste ponto: “a plenitude da verdade recebida em Jesus Cristo não dá aos cristãos individualmente a garantia de terem assimilado de modo pleno essa verdade. Em última análise, a verdade não é algo que possuímos, mas uma pessoa por quem nos devemos deixar possuir. Trata-se, portanto, de um processo sem fim” (DA 49). Poderíamos acrescentar:[25] nem individual, nem coletivamente; fundamentando-nos no Vaticano II: a compreensão das coisas e das palavras recebidas cresce de tal modo que a Igreja “tende continuamente à plenitude da revelação divina” (DV 8).

Poderíamos concluir esta parte afirmando a abertura ao universal como característica própria das culturas e das religiões, enquanto configurações históricas, embora diversas, do espírito humano sempre voltado para o Infinito e Transcendente, numa palavra, para Aquele que questiona todo conceito ou discurso sobre sua realidade.[26]

Toda cultura é uma totalidade sensata, mas não uma grandeza fechada e intocável. A mudança do contexto com seus desafios ou o contato com outras culturas podem levá-la a transformações, acarretando aprofundamento ou enriquecimento de suas características próprias. Toda religião não é absoluta, mas remete ao Absoluto. Sua configuração é necessariamente histórica e, diante do Absoluto, sempre inadequada e aberta a aperfeiçoamentos. Também o cristianismo. Este pode receber de outras culturas e de outras religiões elementos que iluminem sua própria identidade. Portanto, o sincretismo, com valoração neutra, enquanto um fenômeno estudado pelas ciências da religião, só irá receber uma conotação positiva ou negativa através de uma avaliação estritamente teológica, como iremos ver em seguida.

3. Fé cristã e sincretismo religioso

Do que vimos até aqui, o sincretismo, considerado como um fenômeno estudado pelas ciências da religião, aparece muito próximo de outro processo conhecido como inculturação. Daí seu uso indiscriminado por parte de alguns teólogos, embora outros alertem para a possibilidade de um sincretismo errôneo, e, portanto, distinto da inculturação da fé.

Do ponto de vista teológico, ao contrário da perspectiva fenomenológica, é fundamental que a identidade da fé seja salvaguardada, para que possamos falar de novas e adequadas expressões da mesma realidade salvífica. Falhando este ponto, teríamos não uma inculturação da fé, mas simplesmente outra fé! Para a teologia, portanto, pode acontecer um sincretismo errôneo, que deturpa o sentido que gerações anteriores davam à fé. Esta conotação negativa e pejorativa do termo é a mais comum no interior do cristianismo. Sendo assim, parece que deveríamos banir para sempre este conceito do mundo teológico, pois um sincretismo correto e ortodoxo recebe hoje a denominação de inculturação, que não vem carregada por leituras negativas do passado como se dá com o termo sincretismo.

Mas o sincretismo pode ser considerado não só como um produto final, que mostraria então sua concordância ou discordância com uma determinada tradição religiosa, tal como vimos até aqui. Pois o sincretismo é também um processo,[27] podendo, assim, ser um fenômeno temporário e não permanente,[28] cujo epílogo permanece ainda uma questão aberta. Enquanto tal, ele poderia ser considerado como uma etapa prévia e bastante comum na inculturação da fé, já que este fenômeno é complexo, difícil e longo, como reconhece o próprio magistério da Igreja (RMi 52). Uma comparação pode nos ajudar aqui. Os alimentos que ingerimos permanecem em nós por certo tempo de um modo “sincretista” antes de se tornarem nós mesmos pela assimilação realizada (metabolismo).

Poderíamos fundamentar teologicamente esta afirmação, relembrando alguns pontos já estudados. Em primeiro lugar, não existe fé desencarnada ou desinculturada. A fé sempre se encontra numa religião. O encontro com outra cultura, marcada por características de cunho religioso, acarreta que todo contato da fé com outra cultura é também um confronto com outra religião. A tal ponto que dificilmente se poderia conceber uma inculturação, ou um enraizamento da fé nesta cultura, prescindindo-se de sua respectiva visão religiosa, com seus componentes doutrinais, cúlticos e éticos.

A possibilidade de assumir tais elementos provenientes “de fora” reside, em última instância, na inadequação fundamental e intransponível entre a ação do Transcendente ou da Realidade Última e suas expressões finitas, históricas, imperfeitas. Podem refletir não só a limitação do espírito humano, mas também o pecado que deforma. Como tais, podem elas sempre ser enriquecidas, aprofundadas e corrigidas. Pois a intencionalidade da fé tende para o Transcendente, que se situa para além do enunciado, como já observara Santo Tomás.

Toda religião deve suportar esta tensão sem procurar escamoteá-la. Tentação permanente aqui seria identificar a mediação com a Meta, o institucional com o Salvífico, a manifestação com a Realidade, o histórico com o Eterno, a expressão inadequada com a Verdade Plena.

Para o cristianismo, o Transcendente irrompe na história em vista da salvação do homem e da mulher. A “economia” salvífica funda a teo-logia, o discurso sobre Deus. É a Trindade econômica (salvífica) que nos possibilita chegar à Trindade em si. Portanto, a experiência do ser humano com Deus é sempre uma experiência salvífica, uma experiência de plenitude, de sentido, de paz, de realização, de purificação, de maior autenticidade, de verdade, de felicidade.

Esta experiência salvífica foi constitutiva para a fé de Israel, foi central para sua reflexão sobre os feitos de Deus na história, foi decisiva para o desenvolvimento progressivo de sua representação do Transcendente, sem omitir seu papel de instância indiscutível na correção dos desvios doutrinais e éticos, como nos atestam os profetas. Também no Novo Testamento a experiência salvífica feita com a pessoa de Jesus Cristo, embora bastante diversamente expressa,[29] constituiu o núcleo estruturante do cristianismo primitivo. A perspectiva salvífica foi determinante na elaboração da cristo-logia, da teo-logia, da escato-logia, da eclesio-logia, da sacramento-logia e da deonto-logia cristãs.

Mas esta experiência salvífica necessariamente acontecia no interior de um contexto sociocultural determinado, com situações existenciais bem concretas. Portanto, era captada, vivida e tematizada num momento histórico bem determinado. Sua expressão era válida como expressão correta da experiência vivida, mas, como já dissemos, inadequada, porque inevitavelmente contextualizada. Novos contextos vitais, novos desafios existenciais, novas problemáticas teóricas não impedirão a ação de Deus e as decorrentes experiências salvíficas. Mas, certamente exigirão serem reinterpretadas, reformuladas, reexpressas, para serem realmente vividas como experiências salvíficas!

A tendência na linha da tematização é para uma maior universalização, como já foi observado na gênese da representação de Javé. E o encontro com o helenismo foi, sem dúvida alguma, importantíssimo para o futuro do cristianismo. Sua influência já aparece com os “helenistas”, presentes na comunidade de Jerusalém, e pressionando para liberar a experiência salvífica cristã da lei e do templo. É confirmada por noções neotestamentárias não hebraicas e fortemente atuantes nos escritos pós-apostólicos e apologéticos.[30]

Importante é sublinhar aqui que a inculturação da fé cristã no âmbito cultural helenista, que terá suas expressões mais elevadas nas formulações trinitárias e cristológicas, acontece para salvaguardar a experiência salvífica cristã num quadro interpretativo mais amplo e, portanto, mais desafiante, que certamente oferece luzes e sombras, mas que se impôs como necessário.[31] Além disso o encontro com o helenismo provocou também uma cristianização da cultura ocidental, como nos atestam as noções modernas de pessoa, liberdade, igualdade, direitos universais do homem etc.

A história deste período do cristianismo demonstra sobejamente quão difícil e penosa é a tarefa da inculturação da fé. Trata-se realmente de um processo no qual a vitória surgiu depois de muitas batalhas, sendo que nem todas foram vitoriosas. Pois se requer tempo para que os novos elementos introduzidos na visão cristã sofram transformações semânticas,[32] que justifiquem serem assimilados e empregados para mediatizarem a experiência cristã. Chega-se assim à mesma verdade, mas diversamente expressa. Naturalmente o novo insight repercute na autocompreensão global da fé, iluminando-a mais e também pondo-lhe novos desafios.

Portanto, sem renunciar à preocupação teológica com a identidade da experiência salvífica cristã, podemos ver o sincretismo como parte do processo de inculturação da fé. Ele próprio é aqui considerado como um processo que desaparece ao ser integrado na inteligibilidade e na expressão da fé ou ao se tornar o resultante de uma mistura incompatível com a fé. Só aí receberia então a conotação negativa e pejorativa que habitualmente lhe atribuem.

4. Conseqüências para a pastoral

Não é nada fácil avaliarmos o que nos é apresentado concretamente como “sincretismo religioso”. Pois a assimilação, por parte de uma religião determinada, de elementos “de fora”, tem sua gênese, motivações e história bem determinadas, constituindo-se numa realidade única e irrepetível. A história das religiões nos apresenta um farto material concernente às transformações que estas sofrem quando confrontadas com outras tradições religiosas ou com desafios de novos contextos. Mas o nosso juízo sobre realidades passadas ganha mais facilmente foros de objetividade porque é proclamado no final do processo, quando então as mudanças já se encontram assimiladas, ou enriquecendo a identidade de uma das religiões (ou das duas), ou mesmo dando lugar a uma terceira realidade, distinta das anteriores. Este processo de sedimentação e de avaliação requer tempo; daí a nossa perplexidade diante de realidades em mutação. Além disso, representa este dado apenas um aspecto da problemática.

Pois, quem crê é o sujeito, quem desencadeia o processo de inculturação da fé é o sujeito, quem assimila elementos religiosos presentes numa cultura é o mesmo sujeito. E sempre que vamos fazer um juízo sobre pessoas com suas respectivas crenças, utilizamos, imperceptivelmente, nossas categorias, que nem sempre respondem às categorias do sujeito que pretendemos conhecer. Partimos naturalmente de chaves de compreensão cristãs e ocidentais, que podem ser, conforme o caso, inadequadas e mesmo deformativas.

Assim, a idéia que temos de incoerência por parte daqueles que assumem componentes de outras religiões, para nós díspares ou mesmo contraditórios, não existe de fato para estas pessoas que dispõem apenas de fragmentos, e não da totalidade, da religião à qual pertencem e à qual dão sua adesão.[33] Deste modo, podem justapor estes elementos, sem que possam ser repreendidas como incoerentes ou insinceras. Naturalmente, não o fazem arbitrariamente, mas são movidas por uma intencionalidade bem determinada. Vejamos.

Já a distância que necessariamente vigora entre um sistema religioso e o que realmente crê o sujeito, abre a possibilidade de assimilações parciais e de leituras pessoais, que resultam ser terreno fértil para o nascimento e desenvolvimento de certo sincretismo. No caso do catolicismo em nosso país, este fato vai ser fortemente agravado por uma insuficiente evangelização, que não se limita apenas às classes populares, mas que atravessa todos os segmentos da sociedade.

Mais importante, porém, nos parece outro fator. Ele concerne à estrutura mental[34] dos que crêem. Esta pode ser de tal modo constituída, que desorienta e invalida nossa percepção e conseqüente avaliação. Vejamos o caso do imaginário religioso encontrado nos adeptos das religiões afro-brasileiras. Partem do pressuposto de que as religiões não são produção humana, mas resultam da ação de Deus, sendo, portanto, todas elas verdadeiras. Buscam nelas não só uma visão global que lhes traga luz e sentido, mas, sobretudo, uma ajuda para suas necessidades e seus sofrimentos. Daí nenhum escrúpulo experimentarem no recurso a entidades de outras religiões, já que tendem espontaneamente à inclusão e não à exclusão das mesmas. Mesmo que o ato religioso subjetivo não se conserve perfeitamente imune a certa mistura religiosa, não se pode falar de um sincretismo propriamente dito. É, portanto, fundamental estar atentos a estes “modos periféricos de crença”, autênticas percepções do campo religioso distintas da nossa.[35]

As religiões afro-brasileiras, nas quais pensamos ao evocar o termo sincretismo, representam algo bem mais complexo do que aparentam à primeira vista. Cada configuração concreta pede um estudo e exige uma avaliação própria. Há um consenso no que diz respeito à umbanda como uma religião verdadeiramente sincretista,[36] processo este também dinamizado pela preocupação de ser aceita na sociedade.[37] Esta afirmação não pode ser igualmente estendida ao candomblé.

Pois esta religião logrou manter sua identidade. Se no passado influiu na salvaguarda da etnia negra, o mesmo não mais afirmam os estudiosos em nossos dias, desvinculando-a de grupos étnicos ou de classes sociais.[38] O candomblé sobreviveu por si mesmo, de tal modo que não podemos considerá-lo propriamente um caso de sincretismo. Tratou-se antes de uma apropriação de elementos do catolicismo dominante, com o intuito de sobreviver numa sociedade dominante que o proibia.

Deste modo, contra as aparências, os elementos “católicos” encontrados no candomblé não chegam a merecer a denominação de sincretismo, embora recebam tais elementos uma interpretação diversa daquela da Igreja Católica, como acontece, por exemplo, no caso do batismo, visto não como entrada na Igreja, mas como uma possibilidade de poder participar do candomblé, enquanto representa o reconhecimento de sua qualidade de pessoa, já que no tempo da escravidão era o que distinguia o escravo do animal.[39] Poderíamos citar ainda a metamorfose dos orixás em santos da Igreja Católica, obedecendo à mesma lógica, bem como o culto a Maria-Iemanjá,[40] com naturais repercussões na representação da própria Iemanjá.

Pois, mesmo reconhecendo a autonomia do candomblé como religião, com profundas diferenças do cristianismo,[41] e mesmo negando uma dupla pertença propriamente dita por parte de seus adeptos, já que é o candomblé que realmente “estrutura” a existência do fiel (o “catolicismo” recebe dele uma outra leitura), não se vê como ambas as religiões permaneçam imunes a uma mútua influência na mente do sujeito. É a parcela de certo sincretismo subjetivo, muito generalizada numa sociedade religiosamente pluralista como a nossa.

Neste sentido, até o exercício do diálogo inter-religioso acaba por repercutir na mentalidade de seus participantes, porque só o ouvir o outro a partir dele já nos obriga não só a considerá-los na perspectiva dele, mas também a nos olhar de outro ponto de vista, provocando em nós um “diálogo intra-religioso”,[42] um questionamento a nós mesmos a partir do prisma alheio.

Além disso, a forte ligação afetiva do candomblé com a Igreja Católica recomenda, na opinião de B. Kloppenburg, uma pastoral que não cortasse este cordão umbilical, embora também ela apresente problemas.[43] A atração exercida pelas religiões e cultos afro sobre os católicos significa também um autêntico questionamento à Igreja, pois revela as lacunas ou mesmo as unilateralidades na maneira como se apresentam as configurações da fé católica em nosso país.[44]

A reflexão efetuada com relação às religiões africanas deveria ser completada com relação às culturas (e religiões) indígenas. Também neste caso, o inevitável contato inter-cultural e inter-religioso não deixará tais tradições intocadas. Do ponto de vista missionário, a inculturação da fé deverá saber incorporar não só componentes culturais, mas também saber chegar à estrutura mental religiosa própria dos indígenas. Só assim poderão captar, expressar e viver, como indígenas, a mesma fé cristã.

Uma palavra final sobre a questão terminológica. Com a aceitação cada vez mais geral da expressão “inculturação”, por parte dos teólogos e dos pronunciamentos eclesiásticos, nos parece que deveríamos evitar o termo “sincretismo” como seu eqüivalente, como ainda acontece em alguns países da Europa. Pelo menos na reflexão teológica. Pois a própria admissão de seu uso no processo de inculturação, tal como defendemos, se deveu a razões de ordem antropológico-cultural e não propriamente de cunho teológico.

NOTAS – LEGENDA:

[1] Ver A.T. QUEIRUGA, El diálogo de las religiones, Madrid 1992, 34-38.

[2] Como exemplo, W.A. VISSER’T HOOFT, Cristianismo e outras religiões. Um estudo sobre o sincretismo, Rio de Janeiro 1968.

[3] PLUTARCO, De fraterno amore 19: Moralia 490 B.

[4] J.C. MARALDO, art. “Syncretismus”, SM IV 795-800.

[5] Ver A. DROOGERS, Syncretism: The Problem of Definition, the Definition of the Problem, em: GORT-VROOM-FERNOUT-WESSELS, Dialogue and Syncretism. An Interdisciplinary Approach, Amsterdam 1989, 7-25, aqui 9-15.

[[6] S.F. FERRETTI, Repensando o sincretismo, S. Paulo 1995, 41-74.

[7] R.J. SCHREITER, Constructing Local Theologies, New York 1993, 152s. Nesta linha está P. SANCHIS, Pra não dizer que não falei de sincretismo, em: Comunicações do ISER 45 (1994) 5-11. Ele considera o sincretismo um processo “que consiste na percepção ou na construção coletiva de homologias de relações entre o universo próprio e o universo do outro em contato conosco, percepção que contribui para desencadear transformações no universo próprio” (7). O fenômeno não se restringiria ao campo da religião, mas se estenderia ao campo genérico da cultura.

[8] Ver FERRETTI, ob. cit., 91.

[9] Ver DROOGERS, art. cit., 16s.

[10] M.M. MARZAL, Sincretismo iberoamericano e inculturación, em: Medellín 15 (1989) 522-541, aqui 523.

[11] Sincretismo “puede definirse como un nuevo sistema religioso que es producto de la interacción dialéctica de los componentes (creencias, ritos, formas de organización y normas éticas) de dos sistemas religiosos en contacto, por cuya interacción algunos elementos de los dos sistemas persisten en el nuevo, otros desaparecen por completo, otros se identifican con los similares del outro sistema y otros, finalmente, son reinterpretados, recibiendo nuevas significaciones” (Ibid. 527).

[12] U. BERNER, Synkretismus und Inkulturation, em: H.P. SILLER (hrsg.), Suchbewegungen. Synkretismus-Kulturelle Identität und kirchliches Bekenntnis, Darmstadt 1991, 130-144, aqui 134s.

[13] P. SCHINELLER, Inculturation and Syncretism: What is the Real Issue?, em: International Bulletin of Missionary Research, abril 1992, 50-53, aqui 50.

[14] A questão é posta sem meias palavras por J. CARLSON, Syncretistic Religiosity: The Significance of this Tautology, em: Journal of Ecumenical Studies 29 (1992) 24-34.

[14] A questão é posta sem meias palavras por J. CARLSON, Syncretistic Religiosity: The Significance of this Tautology, em: Journal of Ecumenical Studies 29 (1992) 24-34.

[15] W. PANNENBERG, Grundfragen Systematischer Theologie, Göttingen 1967, 268-272; M. SECKLER, Synodos der Religionen, em: ThQ 169 (1989) 11-14; L. BOFF, Igreja: Carisma e Poder, Petrópolis 1981; H.P. SILLER (hrsg.), Suchbewegungen, Darmstadt 1991; W. SPARN, Religionsmengerei? Überlegungen zu einem theologischen Synkretismusbegriff, em: V. DREHSEN-W.SPARN (hrsg.), Im Schmelztiegel der Religionen. Konturen des modernen Syncretismus, Gütersloh 1996, 255-284

[16] Ver BOFF, ob. cit., 160, que chega a estabelecer critérios que o distingam do falso (161-170); na mesma linha, SCHINELLER, art. cit., 52s.

[17] W. PANNENBERG, Systematische Theologie I, Göttingen 1988, 154-157.

[18] Ver o que já dissemos em Catolicismo em questão: abordagens a partir da teologia e das ciências sociais, em: MAGIS n. 16 (1996) 1-12.

[19] É curioso observar que Max Weber, que defende esta posição, a contradiz ao apontar o alcance da doutrina da predestinação de Calvino para o desenvolvimento da sociedade moderna.

[20] F.J. STENDEBACH, Zur Frage des Synkretismus im Alten Testament, em: Suchbewegungen 31-41, aqui 31-34.

[21] W. PANNENBERG, Grundfragen…, 291s.

[22] K. RAHNER, Vom offensein für den je grösseren Gott, em: Schriften zur Theologie VII, 32-53.

[23] J. SOBRINO, Resurrección de la verdadera Iglesia, Santander 1981, 162-166.

[24] A. GESCHÉ, Le christianisme et les autres religions, em: Revue Théologique de Louvain 19 (1988) 315-341.

[25] Para mais detalhes ver o que escrevemos em O cristianismo em face das religiões, S. Paulo 1998, 123-125.

[26] J. RATZINGER, Christ, Faith and the Challenge of Cultures, em: Origins 23 (1995) 679-686.

[27] P.V.D. VEER, Syncretism, multiculturalism and the discourse of tolerance em: STEWART-SHAW (eds.), Syncretism/Anti-Syncretism. The Politics of Religious Synthesis, London 1994, 196-211.

[28] DROOGERS, art. cit., 13.

[29] Ver E. SCHILLEBEECKX, Christ. The experience of Jesus as Lord, New York 1993.

[30] Sobre a complexa problemática decorrente desta simbiose, ver P. STOCKMEIER, art. Hellenismus und Christentum, em: SM II, 665-676.

[31] Como afirma J. MOINGT, L’homme qui venait de Dieu, Paris 1993, 96: “La foi au Christ a pu s’exprimer dans du croyable païen et dans des conceptions théologiques qui avaient cours dans les écoles philosophiques du monde grec aussi légitimement qu’elle a eu recours à du croyable hébraïque et à des catégories de pensée élaborées dans des écoles rabbiniques; il était impossible qu’elle devienne foi de païens et de Grecs au Christ, sans retenir quelque chose du croyable païen et du pensable grec qu’elle devait traverser pour parvenir au fond de leur esprit”.

[32] Exemplo mais típico deste fato foi a problemática em torno do conceito de “hipóstase” na elaboração do dogma trinitário. Ver H. DIEPEN, art. Hypostase, em: LThK V, 577-579.

[39] Ver F. DE L’ESPINAY, Igreja e religião africana do candomblé no Brasil, em: REB 47 (1987) 860-890, aqui 887.

[40] I. IWASHITA, Maria e Iemanjá. Ensaio de método para uma análise religiosa e psicológica do feminino, em: PT 55 (1989) 317-331; C. BOFF, O sincretismo Maria-Iemanjá, em: M.F. DOS ANJOS, Teologia da inculturação e inculturação da Teologia, Petrópolis 1995, 91-111.

[41] As distinções aparecem claramente em F.C. REHBEIN, Candomblé e salvação, S. Paulo 1985.

[42] R. PANIKKAR, The Intra-Religious Dialogue, New York 1978, 40.

[43] Art. cit., 212.

[44] Ver G.J. NATALINO, Candomblé e Cristianismo: duas mistagogias em confronto (manusc.), PUC/RJ 1999.

Obs: Artigo publicado na REB (Revista Eclesiástica Brasileira 2011)

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