“Faça para nós deuses que caminhem a nossa frente, porque não sabemos o que aconteceu com esse Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito” (Ex 32, 1)

 Primeira Parte: Ateísmo científico?

dom seb ateismo e fe biblica

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Comecemos por fazer alusão a uma forma de ateísmo que foi muito debatida no século XX e até hoje ainda exerce forte influência sobre muitas pessoas e grupos, refiro-me ao ateísmo marxista. A imagem mais convencional, segundo a qual se pretende apresentar o que seja o Marxismo, é de uma teoria que estabelece explicação da realidade social, para a qual é essencial o “materialismo”, que implicaria na negação do “espírito” e na negação de Deus, da fé e da religião, fundamento de uma prática política de marginalização e até de perseguição aos crentes. Será essa imagem realmente correta? Será o Marxismo uma “teoria” atéia da religião? Terá sido Marx realmente ateu? Será correto falar, no horizonte marxista, de “ateísmo científico”? A teoria atéia, que passa como sendo marxista, é expressão fiel do pensamento do próprio Marx? A prática antireligiosa de estados socialistas decorria necessariamente  do Marxismo como tomada de posição teórica e revolucionária? São muitas as perguntas em torno das quais se têm travado acirradas discussões…

É lamentável que, frequentemente, essas discussões não cheguem a maior clareza por força de preconceitos, ressentimentos, interesses políticos e econômicos de classe, atitudes estas que em nada facilitam o exercício da inteligência. Para muita gente, especialmente em ambientes religiosos como os nossos, o Marxismo não é algo a enfrentar com a serenidade que convém à inteligência em busca da verdade onde quer que se encontre; para muitas pessoas, trata-se de um fantasma que amedronta, fogem como o diabo da cruz, como as crianças com medo do “papa-figo”… Não refletem, antes, têm medo. Em vez de confronto racional, distintivo de pessoas adultas, deixam-se dominar por sentimentos primários de rejeição, atitude emocional que em nada facilita discernir entre verdade e erro. Daí decorrem muitos equívocos… Com o passar do tempo já se chegou a assimilar a Sociologia, como perspectiva legítima de abordagem da realidade, apesar de seu fundador, Augusto Comte, ter sido um racionalista, positivista. Entre crentes já se tem como legítimo fazer apelo à Psicologia e até à Psicanálise, mesmo sabendo que Freud foi ateu e que vários psicanalistas se dizem ateus. O Marxismo tem fornecido importantes categorias de análise a qualquer Sociologia que pretenda ultrapassar o Funcionalismo e adote perspectiva crítica em face dos fenômenos sociais. Ora, a Sociologia Crítica já não é mais apanágio dos marxistas confessos, integra o patrimônio científico e até mesmo cultural da humanidade atual. Inclusive o próprio Magistério da Igreja Católica Romana tem utilizado categorias da Sociologia Crítica em seus documentos, em particular a partir das encíclicas de João XXIII, “Mater et Magistra” e “Pacem in Terris”, e de Paulo VI, “Populorum Progressio”, assim como de documentos como os da Conferência de Medellín e da Conferência de Puebla, do Episcopado de nossa Afroameríndia. É necessário, portanto, enfrentar a questão com serenidade e honestidade intelectual. E com prudência e os cuidados necessários como convém a questões delicadas e tão envoltas em nuvens de equívocos, como nos recomendava o Papa Paulo VI, em documento memorável (1).

Nem de longe é minha pretensão responder às perguntas levantadas acima. Até o momento, os especialistas, fora e dentro do próprio movimento marxista, discutem sem ter chegado  a acordo definitivo. Faltar-me-ia a competência para fazê-lo. Quem sabe, minha contribuição poderia ser útil no sentido de indicar alguma pista no que tange a uma questão prévia, que diz respeito também ao Marxismo, mas que a ele não se restringe, a saber, “Ateísmo e Fé Bíblica”. De qualquer maneira, não faz mal começar fazendo referência a Marx.

À guisa de introdução, tomaria a liberdade de lembrar alguns fatos que nos podem fazer refletir serenamente:

1. É o marxismo necessariamente ateu? Tanto do lado cristão, como do lado marxista, as respostas são bem divergentes. Há marxistas para os quais o ateísmo é essencial ao sistema e deve ser proclamado como algo definitivo, estabelecido pela Ciência. Falam, então, de “ateísmo científico”. Entre os cristãos, há pessoas que também definem o Marxismo como essencialmente ateu e, por isso, a ser rejeitado em bloco, irremediavelmente. Mas há também marxistas que não veem incompatibilidade entrematerialismo histórico e fé bíblica, antes, há quem tenha chegado a dizer que a esperança revolucionária só encontra seu fundamento definitivo na fé na ressurreição dos mortos, como foi o caso do marxista francês Roger Garaudy (2). Em sua famosa  conferência de Chicago sobre “Santo Tomás e Marx”,  Dom Helder Camara salientava o parentesco de Marx com os profetas bíblicos e sugeria a possibilidade de uma nova síntese entre Cristianismo e Materialismo Histórico, de modo semelhante ao que na Idade Média fizera Santo Tomás com o sistema de Aristóteles, aliás, considerado, naquele tempo, pelos cristãos, como “o materialista”. Fora esse o caminho de Tomás de Aquino para ajudar a Cristandade a superar o Idealismo platônico. Aliás, aqui mesmo no Recife, muitos anos antes, e muita gente se admirará ao ouvir seu nome, Gilberto Freyre, em conferência no Instituto Geográfico de Pernambuco, antevia o futuro como um tempo de síntese entre Personalismo e Coletivismo, Espiritualismo e Materialismo, Socialismo e Liberalismo, Cristianismo e Marxismo…  Há marxistas que se surpreendem ao ver crentes com uma postura científica e revolucionária em face da realidade da opressão, e, inspirando-se na Bíblia, partem para a crítica  radical ao capitalismo e se mostram capazes de entregar a própria vida pela libertação histórica de seus semelhantes.

Na verdade, para quem vive a fé cristã bíblica (baste conferir a profecia de Isaías), a libertação histórica é sempre evento de salvação e, como tal, fenômeno expressivo e revelador do processo que envolve e sustenta a história humana, em seu nível mais profundo,o processo da Criação do universo, da Encarnação de Deus e da Ressurreição de Cristo.  Aprofundar a crítica à sociedade, a suas relações, estruturas e cultura, e engajar-se nos movimentos de transformação social é, para a fé cristã, exercício concreto de escuta da Palavra de Deus e de resposta a sua (con)vocação: é  diálogo com Deus, é ato radicalmente espiritual de realização de Sua vontade. O(a) crente revolucionário(a) pode estar até equivocado(a), mas só pode ser acusado(a) de não ter fé se seu engajamento não é vivido como exercício de espiritualidade, isto é, de vida movida pelo Espírito de Deus (cf. Jo 3, 5-8), e essa moção do Espírito pode ser bem mais profunda do que a capacidade de formulá-la mentalmente ou com palavras (cf. Mt 25, 34-40). Há pessoas de fé cristã profunda que chegam mesmo a dizer-se marxistas, como é o caso do respeitável e estimado monge nicaraguense Ernesto Cardenal. De gente de seu quilate alguém pode até discordar, mas não lhe pode negar o respeito adquirido a preço de arriscar a própria vida. José Comblin, em sua obra, em dois volumes, “Théologie de la Révolution”, chega a afirmar que a Revolução – hoje dizemos transformação radical da sociedade – é, por si mesma, um fato teológico, e argumenta mostrando que só tem havido revoluções no Ocidente, no Oriente só “revoltas”, justamente por causa da herança bíblica, segundo a qual o povo (outro conceito teológico, para ele) pode projetar a criação de algo completamente novo na história e lutar por isso. O profetismo seria a grande testemunha dessa fé na possibilidade de ruptura histórica radical e, assim, a matriz da perspectiva revolucionária.

2. Marx era de família judia. Seu avô e um tio paterno tinham sido rabinos da sinagoga de Tréveris na Alemanha. Os pais foram compelidos, por razões políticas e de trabalho, a batizar-se na Igreja Luterana. Seus primeiros trabalhos intelectuais, para o bacharelado, versavam sobre fé e religião, mais concretamente, sobre o Evangelho de São João. Caberia perguntar se a tradição hebraica familiar e a formação religiosa não terão influído decisivamente na subjetividade de Marx, o qual até mesmo no Capital ainda emprega imagens da linguagem bíblica, como, por exemplo, a referência à Besta do Apocalipse, e não acha  uma maneira mais adequada  para caracterizar a mercadoria que com a categoria de fetiche, ou seja, ídolo (cf. Is 44, 9-20). Sua análise científica parece basear-se sobre pressupostos anteriores, que não decorrem necessariamente dessa análise, antes a antecedem e estimulam. Seria descabido perguntar se esses pressupostos  não têm a ver com  sua formação religiosa da infância e da mocidade? Para ele o ponto focal da realidade humana não é o indivíduo, mas a “pessoa”, categoria criada pelo Cristianismo, quando das discussões trinitárias e cristológicas do século IV.  E a pessoa só se torna capaz de realizar-se em comunhão com as outras pessoas, na relação de amor, a única relação humanizadora. Sua exigência radical de justiça não tem profundo parentesco com a perspectiva bíblica da igualdade e do respeito até pelo que materialmente toca as outras pessoas: “não roubarás”, não é o mandamento?  Para ele,entregar-se ao bem de toda a humanidade é o único caminho para achar a própria perfeição pessoal. Não estamos aqui muito perto do 4º Evangelho e das exigências radicais de Jesus a seus discípulos(as) (cf. Mc 8, 34-38)? Sua insistência no trabalho como fundamento da convivência social – o que aliás nos veio recordar recentemente o Papa João Paulo II na carta encíclica  “Laborem Exercens” – buscando superar o dualismo racionalista e classista do Idealismo ocidental, com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, não nos leva muito perto das primeiras páginas da Bíblia onde a humanidade é-nos apresentada como imagem  de Deus justamente porque, pelo trabalho, pode participar da obra da criação?  É a humanidade obreira, operária, a imagem do Deus que  elege o mundo como Sua própria obra…

3. Há um teólogo indiano, padre católico romano, Raimundo Pannikar, que fez a seguinte afirmação: “O Marxismo que, no Ocidente significa uma apostasia do Cristianismo, no Oriente não passa de uma heresia cristã”. É que, por meio do Marxismo, têm chegado ao Oriente intuições bíblicas fundamentais, que nem as missões das Igrejas cristãs foram capazes de comunicar: numa sociedade de castas e radicais divisões, proclama-se a igualdade de todos os seres humanos; numa sociedade submetida ao destino, proclama-se que a pessoa humana é responsável pela história, e o futuro pode ser construído por nossas mãos e pode ser algo radicalmente novo; proclama-se a liberdade e a solidariedade coletiva na obra de construção do mundo…

4. Normalmente, a tradição marxista é enfática em afirmar ser a religião projeção desviada do ser humano oprimido, reflexo necessário de sua condição alienada, “suspiro dos oprimidos”, “de um mundo sem coração”. Ou seja, a religião seria necessariamente e sempre ópio para o povo, a legitimação suprema da realidade da opressão. E tem havido Estados para por em prática uma política antireligiosa decorrente desse que deveria ser considerado um dogma definitivamente estabelecido. Aqui, devemos considerar dois aspectos:

1.a) Há estudiosos do Marxismo que dizem não ser possível, nem legítimo, extrair do pensamento de Marx uma teoria atéia da religião, mas somente uma crítica da religião, uma crítica política e uma crítica econômica. Crítica de certos aspectos, ou de certo funcionamento da religião, não uma teoria completa acerca do fenômeno religioso (3);

1.b) Em segundo lugar, Marx não pretendia estabelecer uma nova metafísica, o Materialismo Dialético, dizem, teria de ser atribuído sobretudo a Engels. O que pretende fundar é umanova Ciência da História, “Materialismo Histórico”. Ora, no nível da Ciência da História não é possível decidir pela afirmação ou pela negação de Deus, pois já estaríamos além da ciência, a saber, no nível das interrogações globais e totalizantes próprias da Filosofia. À ciência só é possível captar o fenômeno religioso enquanto fenômeno sócio-histórico, não o seu fundamento último. Só é possível perceber como Deus tem funcionado na vida humana, que papel a fé religiosa tem exercido nas sociedades. Ficará sempre aberta a questão: terá de ser necessariamente assim, em todos os casos, em todas as épocas e em todas as sociedades?  Por fidelidade a seu próprio método, a ciência tem de deixar em aberto a resposta a esta pergunta. Deve permanecer em seu ateísmo metodológico, isto é, no plano da ciência empírica, Deus não é hipótese de explicação de fenômenos intramundanos. Além disso, já não se trataria de ciência, seria necessariamente metafísica.

É precisamente essa correta atitude científica, gerada pela prática revolucionária, que encontramos em duas importantes declarações de marxistas desta nossa Afroameríndia:

Declaração do 2º. Congresso do Partido Comunista Cubano:  (1980)

“O significativo processo de incorporação massiva e ativa de grupos e organizações cristãs, incluindo elementos do clero católico e outras denominações, na luta de libertação nacional e pela justiça social dos povos da América Latina, como na Nicarágua, El Salvador e outros, e o surgimento de instituições e de centros ecumênicos que desenvolvem atividades decididamente progressistas e promovem o compromisso político e a união combativa de cristãos revolucionários e marxistas a favor de profundas mudanças sociais no Continente, demonstram a conveniência de continuar contribuindo para a consolidação sucessiva da frente comum em prol das indispensáveis transformações estruturais em nosso hemisfério e em nosso mundo”.

Declaração da Frente Sandinista de Libertação Nacional: (Nicarágua, 1980)

“Alguns autores afirmam que a religião é um mecanismo de alienação dos homens, que serve para justificar a exploração de uma classe sobre a outra. Esta afirmação, sem dúvida, tem um valor histórico, na medida em que, em diferentes épocas históricas, a religião serviu de suporte teórico à dominação política. Basta recordar o papel desempenhado pelos missionários no processo de dominação e de colonização dos indígenas de nosso país. Entretanto, os sandinistas afirmamos que nossa experiência demonstra que quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes de responder às necessidades do povo e da história, suas mesmas crenças os levam à militância revolucionária. Nossa experiência demonstra que se pode ser crente e, ao mesmo tempo, revolucionário conseqüente e que não há contradição   insolúvel  entre ambas as coisas”.

Lembro-me, ainda, de longa e significativa entrevista de Fidel Castro, há uns quarenta anos atrás. Lamentava que os cristãos não conseguissem entender os objetivos da “revolução”. E dizia mais ou menos estas palavras: “Se os cristãos de nossa América chegassem a compreender e assumir a causa da revolução, esta seria invencível”. E acrescentava as seguintes considerações. Quem sabe, (naquele tempo ainda era possível levantar a hipótese) nalgum país da América Latina um grupo de comunistas pode até tomar o poder. Mas ainda não se terá feito a revolução, pois essa não é apenas a tomada do poder. A revolução (hoje, já não é mais de moda falar de “revolução”, nós diríamos “transformação profunda da sociedade”), na verdade, é a mudança profunda das pessoas e de seus critérios de vida. É que, para ser pessoa nova, é preciso mudar radicalmente hábitos seculares e até combater os próprios instintos. E comunista não está treinado para operar essa mudança. Quem teria essa tarefa na sociedade seria a Igreja Cristã, pois a Igreja é que está treinada, por séculos, para mexer com as consciências humanas. Ora, se reparamos bem, fala, com todas as letras, de “conversão” (cf. Rm 12, 1-2). E atribui à Igreja a tarefa de provocar as pessoas a essa conversão radical. Quem não se lembra do corajoso e generoso Ernesto Che Guevara, com suas lindas reflexões sobre o renascimento da pessoa pelo processo revolucionário para se tornar “nova criatura”, a ponto de que, mesmo que seja “preciso endurecer” não se deve “perder a ternura jamais”. Pensamentos tão próximos dos do Apóstolo São Paulo, ao falar da “nova criatura” e do “novo nascimento”, e do Apóstolo São João, o mestre do Amor.

A crítica à religião é legítimaLegítima em nome do próprio objeto das ciências humanas, que são os fenômenos da vida pessoal e coletiva, e a religião é um deles. Mesmo crente que ame sua religião, enquanto cientista, tem de enfrentar a tarefa de criticá-la impiedosamente, isto é, com o máximo de objetividade de que  for capaz. Legítima também em nome da própria fé: a religião é uma maneira humana, relativa e limitada, necessariamente condicionada, de viver a fé em determinada cultura e conjuntura histórica. A religião não é Deus, nem se identifica com Sua Palavra, nem equivale à fé. É maneira humana de expressar a fé e a relação com o Mistério insondável da vida. Já bem antes dos ateus modernos e de Marx, os profetas bíblicosergueram sua voz incansável contra a religião de seu tempo: “Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios? Quem vos pediu para virdes ao templo? Quando estendeis as vossas mãos desvio de vós os meus olhos… As vossas mãos estão cheias de sangue: Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, denunciai o opressor. Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!”  São palavras do profeta Isaías (4). “Quero solidariedade e não holocausto”, bradava o profeta Oséias – hoje certamente seria acusado de “horizontalismo” e de reduzir a fé à dimensão meramente social (5). Amós gritava pelas ruas daquela Samaria que o horrorizava, a ele que sentia na própria pele a exploração dos camponeses  pelos poderosos da cidade: “Não vão aos santuários. Procurem a Deus, isto é, procurem praticar o bem! O santuário não é a Casa de Deus, mas Casa de Ilusão, mascaramento do pecado… (6).  Os Atos dos Apóstolos nos dizem, seguindo Amós e Jeremias, que Deus se acha no meio do povo e não no templo. Como os ídolos, os templos são “obra feita por mão de homem”. Não é o ser humano que constrói  casas para Deus, é Deus quem constrói a casa do ser humano (7). No Cristianismo não há mais santuários, habitação de Deus.  O que há é “igreja”, termo que quer dizer “assembléia”, lugar de reunião da assembléia, esta, sim, o templo de Deus (8).  A verdadeira religião, diz-nos São  Tiago, é cuidar  dos órfãos e assumir a causa da viúva, isto é,  da gente  oprimida (9). E Jesus anuncia a destruição do templo e antevê o futuro como o momento em que “os verdadeiros adoradores não adorarão nem neste monte  nem em Jerusalém, mas em espírito e em verdade”, isto é, em completa liberdade e mediante a prática da vida, conforme o pensamento do IV Evangelho (10).

São os profetas bíblicos, e entre eles Jesus, os primeiros interessados em denunciar a alienação religiosa. Jesus, inclusive, chega a fazer uma denúncia que pode até surpreender-nos por sua radicalidade, diríamos hoje, de análise social: Cuidado com os escribas que preferem os primeiros lugares e vivem à cata de homenagens e de saudações pelas praças públicas – é o sistema de privilégios, hoje diríamos, o sistema de classes que tem no poder econômico e no poder político do Estado seu sustentáculo principal; mas devoram as casas das viúvas –  notemos a terminologia, “devoram”, avançam e arrebatam violentamente, como animais ferozes, os bens de quem é mais pobre entre pessoas e grupos explorados: é a exploração econômica, o defraudamento de quem é mais fraco, o mecanismo de produzir  empobrecidos; e simulam longas orações,  para encobrir o roubo, sobre o qual se assentam relações de privilégio, a religião, engano (“simulam”), ópio do povo e sistema ideológico de legitimação da opressão (11).  Na trilha de profetas e profetisas, com a mesma intuição, percebe Jesus claramente a articulação dos diversos níveis da sociedade, hoje diríamos, a articulação da infra-estrutura econômica de exploração com a estrutura sociopolítica de poder e  privilégios e a superestrutura ideológica da religião ópio. Haveria maneira mais clara de denunciar a alienação  religiosa e o papel ideológico legitimador da religião apropriada pelas classes dominantes?

O Concílio Ecumênico Vaticano II, na Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”,  número 19, ao falar do ateísmo, chama a atenção do povo cristão para a necessidade da penitência, pois coloca entre as principais causas do ateísmo moderno o testemunho negativo dos(as) crentes, a nossa dificuldade de levar adiante fielmente o testemunho e a mensagem de Jesus. Daí, muitos se perguntarem: A crítica de Marx não estaria diretamente relacionada ao tipo de vivência cristã e religiosa que conheceu em sua sociedade? É claro que a embriaguez do racionalismo, que afogava o Ocidente a partir do século XVIII, terá tido decisiva influência sobre Marx e, talvez, mais ainda em seus continuadores. Mas não se pode excluir que pode ter tido peso decisivo o contratestemunho dos cristãos num homem que se confessava escandalizado com a gente que, tendo o Sermão da Montanha como norma básica de sua vida, vive fazendo leis para proteger a propriedade privada, homem em cujas veias corria o “sangue” da Bíblia hebraica..

Dois textos eloquentes

O amor identifica o ser humano com Deus e Deus com o ser humano, e assim une o ser humano entre si. A fé separa Deus do ser humano (no sentido de um ser diferente do ser humano, pessoal, transcendente), e assim também separa o ser humano do ser humano. Deus, com efeito, não é outra coisa senão o conceito genérico da humanidade, expresso em forma mística; por isso, a separação de Deus do ser humano é a separação do ser humano em relação a seu semelhante, a abolição do vínculo comum. Com a fé a religião se põe em contradição com a moral (…): com o amor, ao contrário, restabelece-se o acordo. A fé isola a Deus, faz dele um ser particular, um ser diverso; o amor generaliza, faz de Deus um ser universal, cujo amor se identifica com o amor pelo ser humano. A fé põe em íntima discórdia o ser humano consigo mesmo e, conseqüentemente, com os outros seres humanos; o amor, ao contrário, cura as feridas abertas pela fé no coração do ser humano”. (Ludwig FEUERBACH, em “A Essência do Cristianismo”)

“Posto que, para o ser humano socialista, a história do mundo não é senão a geração do ser humano pelo trabalho humano, o deve,nir da natureza para o ser humano, assim, ele tem a prova evidente, irresistível do seu nascimento a partir de si mesmo, do seu processo de origem. A partir do momento em que se torna prática, sensivelmente visível, a essencialidade do ser humano e da natureza e se tornam práticos, sensivelmente visíveis, o ser humano para o ser humano como existência da natureza e a natureza para o ser humano  como existência do ser humano, torna-se praticamente impossível pôr a questão de um ser estranho,  de um ser acima da natureza e do ser humano, questão que implica em admitir a inessencialidade da natureza do ser humano (…)” (Karl MARX, em “Manuscritos Econômico-Filosóficos”).

Tanto o texto de Feuerbach quanto o de Marx deixam entender claramente umaconcepção de fé como crença e concebem a Deus como “um ser particular acima da natureza e do ser humano”. É curioso como muitos crentes tenham a mesma concepção. A fé é sentida como mera crença em determinados enunciados acerca de entidades invisíveis e Deus é cultuado como um ser superior, acima da natureza e da humanidade.

Ora, essa maneira de ver não parece corresponder ao núcleo essencial da fé bíblica. A crítica de Feuerbach e a crítica de Marx não chegam a atingir o Deus da Bíblia. Supõem noção espontânea, ingênua e projetiva de Deus – antropomórfica, se diz, como se Deus fosse um ser a mais, passível de ser enumerado numa série de objetos. E, ainda, a concepção de fé é, quem sabe, tributária do racionalismo: Deus seria como um objeto representado pela idéia. Como desse objeto não se tem experiência imediata, como sobre ele a razão humana não tem possibilidade de exercer nenhum controle, nega-se simplesmente sua realidade. Não teria sentido pensar o que está fora do alcance da racionalidade. Infelizmente, muita gente religiosa, malgrado a intenção de combater o racionalismo, termina por cair em sua armadilha. Na verdade, o objeto da fé não cai sob a ótica da “racionalidade”, permanece, sim, na ótica da “razoabillidade”, não é “racional”, mas “razoável”, ou seja, não é sem sentido para a razão, embora não se possa controlar pela ciência. Os medievais distinguiam claramente entre “rationalitas” e “rationabilitas”.

Há, na tradição bíblica, um dado fundamental: A Moisés Deus não revela Seu próprio nome, apenas lhe diz ser Aquele que está aí, ou seja, ser a experiência de uma presença de energia salvífica em meio à vida humana. YHWH, nome próprio de Deus,  quer dizer “Aquele que é”, não no sentido essencialista, mas no sentido ativo de “Aquele que esta aí”, que opera, está em ação (cf. Ex 3, 7-12). Qual o Seu nome, qual a Sua identidade? Responde-se com a indicação de uma experiência histórica, a experiência da libertação: “Eu sou YHWH, teu Deus, o que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 5, 6). Quais os traços de Seu “rosto”? Diz-nos a Escritura que, mesmo a Moisés e Elias, seus íntimos amigos, Ele não se deixava ver de frente, só a sombra ou a silhueta de Suas “costas” puderam ser rapidamente percebidas. É o que podemos ler em Êxodo 3,13-15; 33, 18-23;  e em  1Rs 19,13. E chega-se a uma afirmação radical: Habita luz inacessível, ninguém jamais O viu, como nos diz o Apóstolo João (cf. Jo  1,18;  6,46;  1 Jo   4,12). Dele não se pode fazer nenhuma  representação, pois qualquer imagem seria necessariamente projeção humana (cf. Dt 5, 7-11). O próprio Santo Tomás de Aquino chega a dizer que de Deus não sabemos o que seja. Por isso, a fé no Deus da Bíblia tem muito a ver com o ateísmo (cf. Summa Theologica  I, g.3 e 12).

Daí, ser a religião algo sublime e, ao mesmo tempo, tremendamente perigoso.  Um grande teólogo anglicano do século XIX, Frederico Maurice, costumava distinguir “Evangelho” e “religião”, e caracterizava esta última como “tentativa miserável” de buscar perceber e representar alguma coisa de Deus. Distinção semelhante faziam Carlos Barth e Dietrich Bonhoeffer quando falavam de “fé” e “religião”. A pessoa humana é estruturalmente simbólica, ou seja, experimenta a si mesma enquanto se manifesta, se faz corpo, se materializa em gestos expressivos de seu núcleo profundo. É de acordo com essa estrutura que experimenta a dimensão divina da existência. Sente, assim, necessidade de concretizar materialmente sua busca de Deus, imaginar e simbolizar o Mistério da vida. O grande perigo é a tentação de identificar a própria experiência religiosa com Deus, esvaziando sua transcendência e, em última análise, tentando manipulá-Lo em função dos próprios interesses. É o que caracteriza a religião idolátrica, em que Deus se degrada a projeção das aspirações humanas e compensação das frustrações da vida. Por outro lado, a religião é exercício necessário de simbolização da busca de Deus, mediante o qual o(a) crente como que antecipa, na celebração do desejo, o gozo do encontro. Sua legitimidade, porém, está em guardar sempre o caráter profético de anúncio do por-vir, d’Aquele que vem. Quer dizer, sua legitimidade vem-lhe de seu caráter escatológico, do qual retira energia até para criticar a si mesma, a partir da consciência de que Deus que se cultua é sempre maior do que todo culto. O ato religioso é sempre um ato humano diante de Deus, só a Palavra de Deus, que é sempre criadora de fatos e de coisas, e a fé tornam possível fazer, no ato religioso, a experiência do dom de Deus, de Sua graça, de Sua vinda. Assim Lutero falava dos sacramentos: “Junta-se a Palavra aos elementos e faz-se o sacramento”. Qualquer imagem tem de ser encarada como provisória e, na medida em que a construímos, devemos destruí-la, pois “Deus é sempre maior”. Com efeito, ao falar de Deus ou representá-Lo, estamos sobretudo a falar de nós, de nossos desejos e carências, mesmo quando fazemos a mais alta Teologia ou elaboramos elevadas doutrinas, ainda que sejam dogmáticas. Tudo é mera “imagem”, não passa de “tentativa miserável” a manter e a ultrapassar.continuamente. O grande e saudoso Rubem Alves pode ajudar-nos muito a refletir sobre isto.

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Obs: Imagem enviada pelo autor.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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