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Bem formulou Mia Couto, escritor moçambicano, no formidável livro “A chuva pasmada”, que há vezes em que ela (a chuva) teima em lançar-se abaixo. Parece perambular pelo espaço sideral com medo de cair. Não que seja malévolo o que esse “chuvilho” causa em quem o vê teimosinho, suspenso no ar, negando-se a despencar em fluxo contínuo. Como névoa em rabiscos, de rebuscada poesia, dá asas aos sentimentos dos enamorados de todas as idades. Foi assim que a vi por esses dias na pauliceia desvairada, outrora batizada como terra da garoa.
O que confere aflição, entretanto, é a chuva que se recusa a derramar-se solta e sem reservas no tempo certo e na hora necessária. Todas as gentes, mais dias menos dias, põem-se a reclamar de sua ausência vital. Uns comparecem com explicações consequentes de que as nuvens puseram-se a protestar, que o vento consentiu e, assim, pairou sobre a cidade a maldição da fumaça intragável. Então a mata esmaeceu em seu verdume, o ar deixou sua leveza pesar, o respirador pôs-se a arder, a torneira começou a ranger….
Não foi por ventura que tudo isso aconteceu. Bem que ensinou a professora, avisou o ambientalista e exprimiu em ação profética o catador de materiais recicláveis. Mas, nada, quase nada foi ouvido. A natureza enjeitou-se, encolheu-se, ficou amuada, deu provas mil de sua insustentabilidade, murchou, feneceu. E a geração que transita por agora sobre a terra julgou ser capaz de dar a volta por cima, com sua ciência e tecnologia.
O automóvel falou mais alto. A fábrica não quis parar, nem se reposicionar. De tudo, o mercado fez mercadoria. Afinal, os humanos viraram modernos. Ou melhor, uma grande parcela deles. Outros, até extrapolaram. Foram para as órbitas pós-modernas. Mas, em tempo, alto lá. Muitos ainda estão – porque assim os fizeram – “acondicionados” em ambientes pré-modernos, feitos seres de “não ser”. Esses figuram como um nada ou como um todo em estorvo aos olhares de quem passa acompanhado de suas modernas exibições e capitais intenções. Fronteiras que se tornaram muralhas dessa civilização.
Até onde e até quando iremos com esses abismos econômicos e sociais e com esses trejeitos antinaturais? Será que esses seres que se põe de humanos ainda o são? Ainda o somos? E para onde caminharemos com tamanha indiferença diante da vida, do outro, da natureza? E esses venenos que nos pomos a comer e beber todo santo dia? E essa frenética vida aqui, alhures e em todos os lugares? E essa vontade incontida e doentia de ter poder, de possuir os outros, de eliminar o diferente, de parecer melhor que todos?
Mas, e a chuva? Ah, quase ia me esquecendo dela, tal como se esqueceu de nós por ai. Caiu? Bem moderada, meio envergonhada parecia, em regime de plena economia. Talvez falte reza, sugeriu a senhorinha revestida de tradicional devoção. Lembrei-me dos tempos que há muito se foram. Fazíamos procissão em estrada empoeirada, ao sol escaldante, pedindo com respeito que ele desse espaço para a molhança da chuva. Às vezes ela se vinha logo, outras mais depois. Mas toda explicação ficava lá com o santo. Hoje, acontecem cousas que até os santos duvidam.
A chuva ora se vem brava e violenta, acompanhada de tormentas e tornados; ora se põe a grevar por tempo indeterminado. Nesses tempos modernos ou “pó-modernos”, ela não mais só passa pela nuvem e pela reza. A chuva que nos molha para a vida tem tido suas vontades contrariadas pelas sanhas das culturas destrutivas que nos habitam. E quando, pela presença exagerada da chuva ou pela falta dela e pela contaminação do ar, advêm dificuldades mil para poeticar, tem-se com inteligência e rapidez que pôr-se a politicar!(24.04.2015)
Obs: O autor é Doutor em Sociologia, pós-doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.