A arte deve a própria existência à capacidade que tem o homem de abstrair. Em nada senão nela, na abstração, é que encontramos a mãe de toda manifestação sublime do ser humano: arte, poesia, filosofia, etc. No caso da primeira, é fato que nenhum outro produto de nossos ancestrais marcou com mais ênfase a abstração do que a sua produção artística, de forma que, certamente, a invenção da abstração se consolidou pela invenção da arte.
Apesar de pensarmos ser bastante plausível que certos hominídeos no paleolítico inferior se tenham debruçado sobre produções artisticamente relevantes (possivelmente por meio de danças e de sons articulados), nada tem sido descoberto que possa comprovar tal hipótese. Apenas no paleolítico superior, graças ao material probatório levantado pelos arqueólogos, é que podemos garantir que a arte tomou conta de parte do tempo disponível dos hominídeos e, talvez, tenha sido ali, no advento da ociosidade, que se deu o caminho para o estabelecimento relativamente definitivo da abstração como um dos elementos centrais e mais importantes do pensamento.
Entender as razões que justificam o fato de nossos ancestrais haverem tido a possibilidade de desfrutar de tempo livre, contudo, necessita de algumas breves considerações. O hominídeo descobre a ociosidade como fruto da crescente complexidade presente em suas relações interpessoais, da descoberta de como manipular o fogo e também do aprimoramento da linguagem. Nossa espécie aumentou gradativamente a sua capacidade de caçar, pois a linguagem lhe possibilitou ataques em grupo mais estruturados contra grandes mamíferos; elaborou, estruturou e conceituou o lugar para onde voltavam depois da atividade laboriosa, que é o que hoje chamamos de lar; e, por fim, viu que seria viável a tarefa de administrar melhor a carne, produto da caça, guardando parte do alimento para consumo posterior. Tudo isso, de forma diversa, porém complementar, contribuiu para o advento do tempo livre, ou seja, da ociosidade e, subseqüentemente, da abstração.
A aprendizagem das técnicas de como manipular do fogo, sem dúvidas, também trouxe enormes mudanças e contribuiu sobremaneira para que tivéssemos o tempo livre necessário para abstrair. Entre tais mudanças, podemos destacar a de que pela primeira vez os hominídeos detiveram maior controle sobre a manutenção da própria segurança, em face do medo que os demais animais nutriam das labaredas. Ademais, o fogo lhe possibilitou algo inimaginável até aquele momento: tornar a noite clara, quebrando, assim, os até então conceitos mais ou menos rígidos de dia e de noite, de forma que, possivelmente, apareceram naquela conjuntura os primeiros notívagos.
Com toda essa otimização da atividade, o ser humano experimentou o tempo livre e pôde naturalmente reelaborar a gama de estímulos que lhe causavam prazer. O ócio, na situação em que ele não mais representava a imanência da morte, seja pelo perigo ou pela fome, trouxe-lhe a capacidade de pensar o inútil, trouxe-lhe a capacidade de, usando-se da linguagem, elaborar os primeiros conceitos abstratos. Ora, não podemos esquecer que nada senão a linguagem é que tornou possível para o homem refletir sobre a própria experiência e, em tal reflexão, é que está o germe da abstração.
Hoje, ao que parece, o homem cada vez mais perde a oportunidade de experimentar a abstração como elemento central do pensamento. Cada vez mais, as pessoas não têm tempo, correm de um lado para outro com o intuito de resolver questões sempre superficiais. Por isso, se não tivermos cuidado, mergulharemos em um retrocesso histórico de tamanha natureza que, no campo da abstração, as gerações do futuro nos compararão aos irmãos que viveram antes do paleolítico superior: apenas pensando o real, o imediato, o palpável, assim como fazem as vacas, as ovelhas e as guinés, que não produzem arte.