ZeCarlos2

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Estava deitado num quarto solitário, banhado em suor. Diante de mim desfilavam todas as histórias vividas, felizes ou infelizes. O mais impressionante era que todos os personagens possuíam as mesmas feições, as mesmas características, as mesmas marcas. Em minha solidão e desespero, constatava que sem aprender nada, me envolvia com pessoas iguais às anteriores. E percebia, entre lágrimas doloridas, que àquela altura, não cabiam arrependimentos. A vida estava presa a mim por um tênue fio, fácil de romper-se a qualquer brisa. A solidão machucava minha alma.

Ninguém ao meu lado, disposto a segurar minha mão naquele momento difícil. Nenhum olhar bondoso pousado em meus olhos úmidos com compaixão; uma mão que secasse as lágrimas que deixavam seu rastro em meu rosto pálido e sofrido. Sentia-me só e, tomando consciência disso, uma calma submissa ia se apossando do meu coração atormentado, dando-me alento naquele momento especial. Eu sabia claramente o que me aguardava. Sabia, sem nenhuma dúvida, qual era o momento pelo qual passava. E o medo inicial, transformado em dor e solidão, sofreu nova alteração, desta vez um sentimento de resignada aceitação.

Uma leve brisa entrou pela pequena janela fazendo as cortinas se agitarem. A princípio nada vi, sentindo apenas o frescor da aragem que aplacava um pouco a minha febre. Meus olhos, ainda úmidos, já estavam quase fechados, sem forças para olharem em volta, observarem o quarto e os poucos móveis que o compunham. As fortes luzes eternas da UTI os ofuscavam.

Pouco a pouco, meu corpo frágil começou a sentir uma presença diferente no acanhado quarto que lhe cabia em seus últimos momentos. Abrindo com esforço os olhos e passeando-os em volta, senti, a princípio, alguma dificuldade em distinguir alguém mais ao meu lado. Pouco a pouco, uma figura imponente foi tomando forma. Era jovem e de grande beleza. Suas vestes eram claras e leves e, formando uma figura extraordinária; enorme par de asas saía de suas costas, agitando-se levemente vez ou outra. Não ouvia sua voz, mas seus olhos meigos e carinhosos, fixos nos meus, transmitiam coragem, força, enorme bem estar. Minhas dores físicas haviam sumido e as dores da alma estavam aplacadas, embora fosse reconhecendo naquele belo rosto as mesmas feições de todas as pessoas que passaram pela minha vida.

A cada quase imperceptível movimento de suas enormes asas, leve brisa aplacava o calor que antes me banhava em suor. Suas mãos, agitando-se suavemente ao meu redor, sem tocar meu corpo, traziam alívio às dores que me corroíam até tão poucos minutos. E a cada movimento seu, doce e suave perfume difundia-se ao meu redor, dando-me incompreensível tranqüilidade. Em sua companhia a recente solidão parecia coisa de antigos pesadelos. Uma tranqüilidade incomum foi tomando conta de mim e me sentia cada vez mais disposto a levantar-me daquela cama e segui-lo para onde pretendesse levar-me.

Lentamente ele foi baixando seu rosto em direção ao meu, seus lábios rubros cada vez mais próximos. Não sabia se iria sussurrar-me algo ou presentear-me com um beijo. Quando seus lábios tocaram os meus, uma breve sensação de frio percorreu meu corpo como um arrepio. Seus braços enlaçaram-me e, com enorme facilidade, ergueram-me daquele leito de passagem. Senti-me flutuando, porém seguro pelos seus braços que transmitiam proteção e seu beijo terno, que transmitia amor. Arrisquei um olhar para baixo e vi, quase assustado, o meu próprio corpo marcado pelas doenças, inerte naquela cama solitária. Ainda sem entender muito bem o que acontecia, tomei consciência do meu corpo, enlaçado pelos firmes braços do anjo, revigorado e em todo o esplendor de sua juventude. Meus cabelos esvoaçavam suaves, minha pele tinha a textura de um pêssego e meu corpo perfeito, pairava livre, pelo espaço. O único elo com aquele passado tão recente era o anjo que, pouco a pouco foi deixando que meu corpo se soltasse e minha boca se abrisse em um sorriso feliz, talvez o primeiro dos últimos anos.

Ele olhou-me profundamente, sorriu pérolas e fez um suave gesto, convidando-me a segui-lo pelo espaço cravejado de estrelas. Sentia-me tão seguro que nem me passou pela cabeça a menor dúvida. Seguiria com ele para qualquer lugar.

E seguimos, lado a lado, flutuando pelo espaço enquanto percebia surpreso, o nascimento de asas em minhas costas.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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