“Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, refutar, corrigir, educar na justiça, a fim de que quem é de Deus seja aperfeiçoado, preparado para toda boa obra” (2Tm 3, 16)

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Em muitas comunidades cristãs, Setembro é o mês da Bíblia, que se conclui com a festa de São Jerônimo, memória da vida de um grande santo e sábio, dedicado à tradução das Escrituras para a língua do povo de sua época, o latim. Em termos de hoje, diríamos que a sensibilidade do papa da época e o trabalho efetivo de Jerônimo foram importante serviço para que o povo tivesse acesso ao testemunho bíblico da Palavra de Deus em sua própria língua. As Igrejas marcadas pela Reforma Protestante, têm, no Brasil, o Dia da Bíblia em domingo de Dezembro.

É interessante lembrar que São Jerônimo já havia avançado ao propor a distinção entre “livros canônicos” e “livros deuterocanônicos”, ou canônicos de segunda lista (1 e 2Macabeus, Judite, Tobias, Eclesiástico, Baruc, Sabedoria – conhecidos,  não em hebraico, mas só em grego). Justamente a discussão que volta na época da Reforma Protestante, criando-se a diferença entre a chamada “Bíblia Católica” e a “Bíblia Protestante”, a qual não reconhece a mesma autoridade doutrinal aos sete livros deuterocanônicos, que chama simplesmente de “apócrifos”, mesmo termo usado para designar escritos extrabíblicos. Seria muito melhor, causaria menos confusão ao povo, que se fizesse a distinção entre “deuterocanônicos” (“canônicos de segunda lista”) e “apócrifos (que estão completamente fora da Bíblia). É bom lembrar que Lutero recomendava a leitura daqueles livros, como úteis para alimentar a piedade e fonte de informação sobre a caminhada do povo de Deus. O Anglicanismo se aproxima mais da posição de São Jerônimo, ao adotar os deuterocanônicos para a leitura devocional e também litúrgica, embora, por respeito à tradição protestante, não os utilize para fundamentar doutrina.

É claro que a Bíblia tem lugar central no dia a dia da Igreja de Cristo. Por que? Simplesmente porque Jesus só se compreendeu a partir das antigas Escrituras do povo hebreu, onde estava contido o ideal libertário, cuja fonte, de acordo com a fé dos antepassados(as), era o próprio Deus. E Apóstolos, discípulos e discípulas da primeira geração cristã voltaram continuamente à Bíblia para perceber  melhor e formular o mistério que haviam contemplado na vida e no ministério de Jesus. Sem a leitura, a meditação e o estudo da Bíblia, não conseguimos captar adequadamente o que se passou na caminhada de Jesus. Permanecemos na superfície dos acontecimentos, como quem olha só de fora, sem penetrar Seu espaço, sem participar de Seus propósitos, sem compreender profundamente Seus ideais e opções de vida. Portanto, ler o Novo Testamento sem conhecer as Escrituras antigas, o chamado “Antigo  (ou Primeiro)Testamento”, pode ser uma fonte de incompreensões e graves equívocos

As pessoas que se aproximaram mais de Jesus, reconheceram n’Ele um Profeta enviado por Deus, para provocar entre o povo um movimento de renovação e de transformação das pessoas, das relações  e das estruturas da sociedade. O poder religioso e o poder político, muito logo, o condenaram à pena de morte como perigoso subversivo das instituições estabelecidas. Com a morte, o grupo que O havia seguido foi, aos poucos, percebendo o sentido de Sua vida e chegou à convicção de que Deus o aprovara, Ele era efetivamente o Messias esperado. Chegaram a mais: convenceram-se de que já não se podia falar de morte para Ele, pois, na verdade, morrer, entregar a própria vida por amor, tinha sido seu extremo gesto de vida e a indicação do Caminho para qualquer pessoa que se decida a segui-Lo. Deus o havia levantado da morte e o exaltara a Sua direita. Para compreender melhor essa inédita novidade, e para poder comunicá-la, foram reler a Bíblia que para eles e elas era o testemunho clássico da experiência histórica da Palavra de Deus (cf.  Fl 2, 1-11)

Começaram justamente pelas Profecias, a corrente bíblica com a qual Jesus mesmo se havia mais identificado. Eis por que, no Primeiro Testamento, são os textos proféticos os que mais nos podem ajudar a compreender o que se narra e se sugere nos Evangelhos. São Jerônimo chegava a dizer que o profeta Isaías é “o evangelista ates do Evangelho”. E tinha toda razão. Entre os escritos proféticos, é sobretudo Isaías o que mais nos oferece pistas para compreender o pensamento dos evangelistas, a partir do próprio vocábulo “evangelho” ou “evangelizar” (anunciar a boa notícia da vitória de Deus que se manifesta na  libertação do povo) (cf. Is 40, 9-11; 52, 7-10). Quando olhamos bem, percebemos logo que os textos estão pensados sob a inspiração dos famosos  “Cânticos do servo Oprimido e Vitorioso”, presentes na segunda parte do livro profético (cf. Is 42; 49; 50; 42-53), além de outras referências  ao longo do livro.

À medida que lemos os livros proféticos, porém, vamos percebendo sua íntima relação com a espiritualidade que se faz presente nos Salmos. Ou seja, enquanto meditamos as profecias, vamos aprendendo a orar do jeito como rezaram as pessoas que tiveram inspiração para compor aqueles poemas tão bonitos e significativos, tão profundos que ainda hoje são contemporâneos e expõem diante de Deus nossas alegrias e dores, a adoração, o louvor, a gratidão, nossos gritos e intercessão.

Profecias e Salmos mostram com suficiente evidência, que toda a caminhada do Povo de Deus teve início com Moisés, líder do povo nos eventos fundadores de libertação da opressão no Egito. Mostram também como, durante muitos anos,  se buscou construir um sistema de vida em sociedade que fosse de liberdade e igualdade, o sistema tribal hebreu, em torno da aliança com o  único Deus que a todos unifica num só povo em aliança fraterna. A aliança com o único Deus faz surgir um povo só, para o qual a diferença de classes e, particularmente a escravidão, não podem ser instituições desejáveis. Não queriam recair sob o jugo da dominação de um monarca, alguém que  estivesse por sobre o povo, como era costume no império egípcio e entre os povos vizinhos da Terra de Canaã (cf. Jz 8, 22-23; 9, 7-15). Desejavam, antes de tudo, ser povo livre, porque haviam compreendido que Deus é, antes de tudo, “o que livra da casa da servidão” (cf. Dt 5, 6). Sua convicção profunda era de que Deus Se manifestava como chama inapagável (cf. Ex 3, 1-10), que nos torna pessoas autônomas, nos reúne em comunidade de iguais e nos impele a participar, em aliança, da tarefa divina de recriar o mundo, mediante uma convivência social fundada na justiça e na paz, a saber, no “xalôm” que é experiência de plena felicidade. Para isso era preciso livrar-se do poder opressivo de Faraó, símbolo das potestades inimigas de Deus e de seus desígnios. É isto o   que vamos achar nos primeiros cinco livros da Bíblia, o conjunto chamado de Pentateuco ou Lei de Moisés, onde se referem muitas histórias e leis, particularmente o livro Deuteronômio (segunda ou nova  versão da Lei), tão próximo dos profetas e de Jesus mesmo. E continua  nos livros de Josué e de Juízes.

Finalmente, a Bíblia tem outras narrações acerca da continuidade da caminhada, com vitórias e fracassos, fidelidade e infidelidade, como nos livros de Samuel e deReis, de Crônicas, de Esdras, de Neemias e de Macabeus. Tem também meditações sobre a vida na literatura sapiencial, como Provérbios, Jó, Eclesiastes Eclesiástico, Baruc e Sabedoria. Tem “novelas” heróicas, como Rute, Ester, Jonas, Tobias, Judite. E tem poemas de amor, como oCântico dos Cânticos, ou Cantar dos Cantares,  ou de dor, como Lamentações. Todos esses são escritos que falam do dia a dia e buscam achar o caminho por entre o intrincado matagal da existência humana.

Sem conhecer o Primeiro Testamento, perderemos de compreender devidamente pelo menos mais de 60% do que nos diz o Novo Testamento. Quanto mais conhecermos e meditarmos profundamente esses escritos do Primeiro Testamento, tanto mais perceberemos o caminho no qual Jesus nos convoca a segui-Lo, comprometidos(as), como Ele, com os desafios da história de nosso povo. Sem o Primeiro Testamento, corremos o risco de formar comunidades à margem da história, “grupinhos de paz e amor” sem relação profunda com a marcha do povo e até impondo aos textos nossos pensamentos, sem ter presente que vêm de uma longa tradição do povo hebreu, que começou com a peregrinação de Patriarcas e Mães (mais de quinze séculos antes de Jesus) e com a libertação da servidão, liderada por Moisés, treze séculos antes de Cristo. Longe de reduzir-se a “um livro de religião” ou de ensinamentos doutrinais, a Bíblia é história da marcha de Deus com Seu povo em vista daliberdade e da posse da terra já nesta vida e da alegria de viver neste mundo, “xalôm” quer dizer felicidade, bem estar, “bem viver”, desde ter o alimento, ter harmoniosas relações com as pessoas e entre os povos (paz), ter poder para controlar os governos e os poderosos, ter liberdade para louvor a Deus… com quem finalmente viveremos para sempre, voltando à Fonte que nos criou, nos redimiu, nos santifica e nos glorificará pela irradiação de Sua própria glória.

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

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