Emanuela Cristo  Quaresma

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 Parte VIII – se o grão de trigo cair na terra e morrer, produzirá muito fruto (cf Jo 12, 24)

Situando-nos

O nosso retiro de quarenta dias está chegando ao fim. Neste domingo, ouvimos o evangelho do grão de trigo que cai na terra e morre. Morre e produz frutos infinitos. Nessa mensagem do evangelho de João, proclama-se a vida eterna, proclama-se a produtividade ilimitada do amor. Onde alguém vive por amor, o mundo se torna uma colheita abundante; uma semente de amor, uma lavoura cheia de trigo. E quanto mais quando este alguém é o Verbo feito carne! Quando o Deus feito homem vive e morre por amor, todos nós brotamos como tantas espigas de trigo, douradas, saudáveis e eternas.

Deste modo, o 5º Domingo da Quaresma nos coloca nos átrios da glorificação de Jesus. Ele mostra qual o seu caminho para a glória dos que desejam vê-lo (cf Jo 12,20-33): é o caminho da cruz, o caminho da semente lançada à terra, que não fica só, mas, morrendo, produz muito fruto. É chegada a hora de Jesus. Trata-se de sua paixão e ressurreição, pela qual ele se lança totalmente no plano do Pai e realiza de modo pleno sua vontade.

Jesus prometeu aos que desejam vê-lo: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Acrescenta o evangelista: “Assim falava para indicar de que morte deveria morrer” (Jo 12,33).

Na próxima quarta-feira, celebraremos a Anunciação do Senhor. Podemos descobrir uma relação entre esta celebração e a Quaresma que estamos vivendo: ao entrar no mundo, Jesus faz a vontade do Pai e torna-se Senhor na ordem da Redenção, vencendo a morte e o pecado, constituindo-se, assim, em Senhor da vida.

Recordando a Palavra

Na primeira leitura (Jr 31,31-34), texto relevante do Primeiro Testamento, que se encontra no “Livro da Consolação de Israel” (Jr 30-31), Deus sela a reconciliação estabelecendo uma nova Aliança. A Aliança do Sinai, que Javé concluiu com o povo, quando o tirou da escravidão do Egito (vv.31-32), não teve êxito. Esta exigia adesão exclusiva ao Senhor, traduzida no cumprimento integral da lei, a qual era formulada com toda a clareza e respaldada por bênçãos e maldições. Mas, era externa, gravada em uma pedra, com a qual as pessoas não sintonizavam. A nova Aliança inscreverá a lei no fundo do ser e no coração, de modo que se converta no impulso ou dinamismo da conduta; o coração estará regenerado, convertido pela marca viva da lei. “Imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33).

Assim, se restabelecem as relações pessoais, substância autêntica da aliança. O conhecimento e reconhecimento do Senhor se traduzem em compromisso.

Um “perdão” total, sem reservas, é o primeiro ato da reconciliação, no qual se manifesta o “amor eterno” do Senhor. Vale notar que Jeremias 31,31-34 é amplamente citado no Segundo Testamento (cf Rm 11,27; Hb 8,8-12; 10,16-17).

Em termos de aliança, o Senhor é o soberano que cumpriu seus compromissos; em termos de matrimônio, o Senhor é o marido ao qual a esposa – o povo – foi infiel.

Na verdade, já não necessitamos mediações exteriores (sacrifícios, ritos legais, tábuas de pedra), pois o Senhor fez conosco uma aliança definitiva, gravada em nosso coração, escrita em nosso peito, pois somos o novo povo de Deus. Esta nova Aliança nos dá a esperança e a certeza de pertencermos a uma nova humanidade reconciliada.

O Salmo 50(51) pede que, com sua graça, Deus crie em nós um coração puro e confirme em nosso interior um espírito novo, contrito e simples. Ao arrepender-nos de nossa infidelidade, reconhecemos que somente Deus é fiel. O perdão divino é a oportunidade que temos de retomar a proposta da Aliança.

A segunda leitura (Hb 5,7-9) mostra que o caminho da salvação passa pela obediência e fidelidade: ”Embora fosse Filho aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento; e, levado à perfeição, se tornou para todos os que lhe obedecem, fonte de salvação eterna” (vv.8-9).

Em Cristo Jesus, a nova Aliança é concluída; morrendo por nós, ele se torna princípio de salvação eterna. No exercício do seu sacerdócio, Jesus se apresenta perfeitamente humano (cf Hb 5,1), semelhante a nós em tudo, menos no pecado. Em sua vida terrestre, experimenta o sofrimento e dirige-se ao Pai, que era capaz de salvá-lo da morte, com forte clamor e lágrimas. É um Deus que se aproxima do ser humano, de cada um de nós, em tudo, particularmente na experiência da dor, do sofrimento.

Este é o domingo do grão caído na terra (Jo 12,20-33). Para falar de vida com V maiúsculo, João utiliza, no seu evangelho, a imagem do grão de trigo. Interessante! O semeador se faz semente: “Saiu o semeador a semear” (Mt 13,3). Como os evangelhos foram escritos após a Páscoa, esse semeador já é o Cristo Ressuscitado, saído de Deus para semear a semente do Reino, a semente do Reino do amor. Mas, esse semeador, o Verbo feito carne, em João, se fez semente, grão de trigo caído na terra para fecundar.

Eis a lógica do Amor: não pode fazer outra coisa senão dar a vida. Mas, para expressar-se em sua totalidade, ele deve ir até a morte: “Se o grão de trigo não cai na terra, e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24). Um grão de trigo, que é colocado na terra vai transformar-se para se converter em espiga com incontáveis grãos. Assim também acontece com aquele ou aquela que nós amamos. Mas por quê? Simplesmente porque o Amor, para existir ou subsistir, não pode fazer sofrer e morrer aquele ou aquela que deseja amar. Um dia ou outro, todos devemos nos ultrapassar a nós mesmos. Essa é a hora do Amor que vai exatamente até o final de nós mesmos, como a hora da mulher grávida, pois o Amor dá a vida: “Quando a mulher está para dar à luz, sente angústia, porque chegou a sua hora. Mas quando a criança nasce, ela nem se lembra mais da aflição, porque fica alegre por ter posto um homem no mundo” (Jo 16,21). Eis por que, para manifestar a totalidade do Amor, Jesus entregou a sua vida para que nós tivéssemos Vida: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo15,13).

Com o evangelho de hoje estamos, longe dos julgamentos, das condenações e das exclusões. Isso não nos conduz a lugar nenhum, mas, ao contrário, para bem longe do Deus de Jesus Cristo: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Morrendo numa cruz por amor, Cristo salva a todos sem exceção. É a hora de Jesus, que coincide com a sua exaltação, e que é, antes de tudo, elevação na cruz (vv.32-33). João coloca a morte de Jesus como glorificação, mas não esconde o drama humano da sua existência, o drama da obediência ao Pai.

Aproximando-nos da Páscoa, neste quino domingo da Quaresma, estamos face a face com o ponto central da nossa fé. Diante do Crucificado, cada um de nós se encontra sozinho: é o mistério da cruz que implica solidão.

O Cristo crucificado e ressuscitado, o Cristo da Páscoa realizou plenamente a Aliança nova anunciada pelo profeta Jeremias (1ª leitura de hoje). A Aliança nova, inscrita nos corações, torna-nos capazes de amar, e nos convida a libertar outras pessoas de tudo o que as impede de amar.

Atualizando a Palavra

Quando São Bento diz que toda a vida do monge deve ser uma Quaresma[1] não está falando antes de tudo de penitência. Ele está falando da Páscoa deste mundo, está insistindo que vivamos toda a nossa existência cristã iluminada pelos raios da ressurreição. A liturgia da Palavra de hoje cujo eixo é a imagem do grão de trigo, que cai na terra e produz fruto antecipa o sentido da Páscoa de Jesus e também da nossa.

Os gregos quiseram ver Jesus. Encontraram Filipe e André que os conduziram a ele. Tendo visto Jesus, tendo acreditado nele, Filipe e André guiam outras pessoas para verem e conhecerem Jesus. É a vocação de todos os que queiram seguir a Cristo. Tendo visto Jesus, tendo feito a experiência de Deus em nossa vida – “vinde e vede”… (Jo 1,39-40) – tendo aceitado transformar-nos em semente lançada a terra, somos chamados a conduzir outras pessoas a Jesus, para o verem, para o seguirem, para viverem a sua vida.

A Quaresma é tempo oportuno para nos perguntarmos: como cultivamos a graça e ao mesmo tempo o desafio do nosso discipulado de Jesus? Queremos ver Jesus de verdade? Temos os olhos fixos nele? Renovamos aquela aliança de amor com Cristo (lei gravada em nosso coração), iniciada no batismo?

Em Hebreus, vemos a semelhança de Jesus com cada um de nós: ele viveu o dia-a-dia do sofrimento humano. Ele experimentou a nossa condição humana, conheceu nossas fraquezas. Não é um sacerdote separado das pessoas pelas quais intercede e oferece sacrifícios. Não é um Deus distante, mas bem próximo. A sua obediência foi sendo construída, conquistada, aprendida pelo sofrimento. E, só quando consumado, perfeito, chegou a ser causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem. Jesus é o Messias, Servo humilde: ele assume as dores e esperanças de seu povo na contramão do poder dos reis deste mundo. Que sentido tem o sacerdócio para nós? Recorremos à oração quando não entendemos a vontade de Deus em nossa vida, como o fez Jesus?

O caminho de Jesus é o caminho da cruz que se faz luz, pois é caminho de vida. Ficamos parados ou bloqueados na Sexta-feira Santa? O que esperamos para fazer com que se levante o Sol da Páscoa em nossa vida? Ele é um ponto de referência em nossa noite? Seguir a cruz como coluna luminosa em meio ao deserto não significa contentar-nos com o sofrimento e a morte, mas é seguimento do Cristo vivo. O mais importante não é despender o tempo impondo-nos sacrifícios, privações e mortificações, mas seguir o mesmo itinerário de vida de Jesus. Este Amor que morre por amor a nós, esse amor crucificado já se transformou em luz que atravessa as trevas das nossas provas?

Como relacionar a liturgia da Palavra de hoje com a CF 2015? A Igreja deve ser atuante, participativa, consoladora, misericordiosa, samaritana e por isso não pode ficar voltada para si mesma. A Igreja precisa “sair”, como tem dito reiteradas vezes, o Papa Francisco, ser servidora, como Jesus, que aceitando ser grão de trigo caído na terra, dá-nos a vida. O diálogo e a recíproca colaboração entre a Igreja e a Sociedade é a concretização do “Eu vim para servir” (cf Mc 10,45) de Jesus, que deve ser também o nosso.

Ligando a Palavra com a ação eucarística

Cristo está sempre presente na Igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Está presente em especial nas espécies eucarísticas. Está presente em sua Palavra, pois é ele quem fala quando se lê a Escritura na Igreja. Cristo está presente na oração e no canto da comunidade reunida, pois prometeu “estar no meio de dois ou três que se reunissem em seu nome” (cf Mt 18,20) [2].

Portanto, podemos sempre ver e encontrar Jesus nas celebrações litúrgicas. Na Palavra, que é ele mesmo, entramos em contato com a sua sabedoria, que nos comunica vida. Na Eucaristia, nos alimentamos do Pão da Vida, nos unimos intimamente a Cristo, recebemos a força para a caminhada e renovamos a Aliança que ele nos oferece no seu sangue.

Que a comunhão no sacrifício de Jesus nos faça aceitar por amor as dificuldades, os sofrimentos, a cruz da nossa vida, como passagem (=páscoa) necessária para a salvação e a alegria perfeita.

Assim como Jesus, grão germinado na terra pela força do Espírito, já não morre, a morte já não tem poder sobre ele, também nós, que morremos com ele, brotamos quais espigas de trigo para uma vida que não tem fim.

Jesus, cuja memória, celebramos na Palavra e na Eucaristia, é o Deus que venceu a morte e fez brilhar a vida para sempre. Mesmo que o cenário sócio-político-econômico em que vivemos seja conflitivo, ainda que haja violência, mortes prematuras, injustiças contra os pobres, desigualdades sociais, doenças… nós temos a certeza de que da morte surge a vida, que do grão de trigo caído na terra surge vida nova e ressurreição.

O pão e o vinho da Eucaristia remetem à última ceia. Num gesto profético, anunciando a sua morte, Jesus partiu o pão e deu um pedaço a cada um de seus discípulos, significando que, comendo este pão, eles se tornariam companheiros e cúmplices na entrega da vida em favor do Reino. Eis o nosso compromisso com a causa do Reino, a causa de Jesus, nesta celebração já tão próxima da festa da Páscoa.

Sugestões para a celebração

1. Na procissão de entrada, levar a cruz, velas, vasilha com terra e alguns grãos de trigo e também espigas de trigo.

2. Após a saudação inicial, fazer a “recordação da vida”, para que a Palavra que será proclamada e escutada seja interpretada a partir dos acontecimentos da vida e do mistério celebrado. É importante partir do ‘hoje’ dos acontecimentos pessoais e comunitários, relacionando-os com o evangelho deste domingo. Quem preside à celebração poderia estimular a assembleia a recordar acontecimentos e ações que são sinais de vida e ressurreição. Ter presente a vida de tantos mártires e pessoas que sofrem que, semelhantes aos grãos triturados entregaram, como Jesus, a sua vida para que outros tivessem vida.

3. Dar novo destaque ao cartaz da CF 2015 no qual vemos o Papa Francisco repetindo o gesto de Jesus lavando os pés dos seus e deixando, como seu testamento em palavra e exemplo, o que nós devemos fazer como irmãos e irmãs. No cartaz está escrito: Eu vim para servir (cf Mc 10,45), que coincide com a entrega do Cristo Servo, do Cristo que sofre por amor e é glorificado pelo Pai.

4. Ao destacar o cartaz, lembrar a coleta da CF, que será realizada no próximo domingo.

Obs: a) publicado pela CNBB nacional.
b) Com autorização da autora, alguns subtítulos foram alterados para a postagem.
c) imagem enviada pela autora (retirada da internet)

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[1] Cf Regra Beneditina 49,1.

[2] Cf Sacrosanctum Concilium n.7.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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