Emanuela Cristo  Quaresma

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Parte VII – “Deus enviou seu filho ao mundo para que o mundo seja salvo por ele” (cf. Jo 3,17).

Situando-nos 

Aceitamos a Quaresma como o preço de entrada para a Páscoa ou, na melhor das hipóteses, como uma árdua preparação espiritual para a alegria da Páscoa. Neste caso, este Domingo da Alegria –Lætare – seria um tipo de oásis: “Coragem! Mais três semanas e termina a Quaresma, e poderemos cantar de novo o Aleluia”.

Mas, a relação entre a Quaresma e a Páscoa é muito mais profunda. De fato, a Quaresma é a Páscoa, vivida nas condições deste mundo.

O evangelho do 1º Domingo da Quaresma apresenta a tentação de Jesus no deserto. Ele foi tentado e nós o somos também. Mas, o sentido interior desse texto não consiste no mero fato da tentação, e sim na fidelidade de Jesus em meio à tentação. Assim, o 1º Domingo da Quaresma já significa uma “pascalização”, porque proclama a vitória de Cristo sobre o demônio e o mal, que está no coração mesmo do anúncio pascal.

              O evangelho do 2º Domingo narra a transfiguração do Senhor. Podemos considerar a transfiguração, como o faziam vários Padres da Igreja, como um consolo e fortalecimento dos discípulos, antes da crucifixão. Mais: a transfiguração é a declaração de Jesus como Filho eterno da parte do Pai. ”Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz”. E o que é a ressurreição, senão exatamente a proclamação do Pai de que este Jesus, que foi crucificado, é e será para sempre o seu Filho amado?

No 3º Domingo, escutamos o evangelho da purificação do templo. Vemos nesse acontecimento a provocação que Jesus faz aos líderes que o hostilizam, e que vai culminar em sua morte. E aquele evangelho revela, ao mesmo tempo, que Jesus, o corpo de Jesus é o novo templo, do qual flui toda graça e santidade. Não é esta a alegria da Páscoa, que do lado traspassado de Jesus jorram as águas da salvação, o Batismo e a Eucaristia?

Hoje, no 4º Domingo, escutamos o evangelho da entrega: “Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu próprio Filho” (cf Jo 3,16). Nesta afirmação central do Segundo Testamento, a palavra principal não é dar, e sim, amar. O mais importante não é a morte sacrificial de Jesus, mas o amor do qual a morte foi a expressão. A morte de Jesus, finalmente, conseguiu dar o recado de que Deus nos ama, mas a mensagem é amor e não sofrimento. A mensagem não é “Deus sofreu tanto por mim”, mas sim, Deus me ama tanto e não deixa que nada impeça a chegada deste amor até mim. Não será este um anúncio pascal?

O percurso por estes quatro domingos da Quaresma nos dá a certeza de que nesta vida presente, já vivemos a Páscoa. Está velada, está talvez disfarçada, mas toda a vida cristã é Páscoa. O 4º Domingo da Quaresma é uma Páscoa antecipada.

Por isso este Domingo Lætare não é um consolo. É uma antecipação. E um lembrete. É uma ordem: PÁSCOA JÁ! “Alegra-te, Jerusalém!” (primeiras palavras da antífona de entrada).

Pondo-nos em sintonia com a CF 2015, alegramo-nos com a iniciativa da Igreja do Brasil que se dispõe a identificar os fatores que constroem a paz e bem comum, para superar a relações desumanas e violentas[1].

Ó Pai, Alegria e Esperança de vosso povo,
conduzis a Igreja, servidora da vida.
nos caminhos da história.

A exemplo de Cristo e ouvindo sua Palavra
que chama à conversão,
seja testemunha viva de fraternidade
e de liberdade, de justiça e de paz.

Enviai o Espírito de verdade
para que toda a sociedade,
iluminada pelo Ressuscitado,
se abra à aurora de um mundo justo e solidário,
sinal do Reino que há de vir.
Por Cristo, nosso Senhor.
Amém.
Oração da Campanha da Fraternidade 2015 

Recordando a Palavra 

O livro das Crônicas, posteriormente separado em dois, faz uma releitura teológica da história do Reino de Judá. Pode-se dizer que os dois são uma grande história do templo de Jerusalém, tão importante na vida do povo, por ser o lugar escolhido por Deus para a sua morada. Crônicas foi escrito em Jerusalém por volta dos 340-300 a.C. O livro é bastante sucinto na descrição da tragédia que culminou com o exílio do povo. Não interessa aos cronistas narrar a derrota da Casa de Davi, com a destruição da cidade e do templo. Após rápidos registros inspirados em 2 Rs 23-31-25,30, sobre os últimos reis de Judá, os cronistas narram a chegada de Ciro ao trono da Pérsia. Concluem a narrativa transcrevendo o conhecido decreto real, que permitiu a volta dos exilados para Judá.

Os cronistas encerram o livro (2 Cr 36,22-23) com o decreto de Ciro (Esd 1,1-3). O livro de Crônicas se dirige à comunidade dos judeus que voltaram do exílio, após setenta anos, e estão empenhados na reconstrução de Judá. Após todos os erros dos seus reis, o povo conseguiu retornar por bênção e graça de Javé. Dessa forma, a história precisa ser lida de maneira positiva: Javé é o Senhor da história. Nada acontecerá ao povo, enquanto o culto a Javé, celebrado no templo de Jerusalém, continuar a existir. Preservar a nação e o culto se tornará  a grande tarefa histórica do povo, liderado pelos sacerdotes e levitas. É preciso, pois, uma nova capacidade de escuta para compreender os caminhos com que o Senhor executa seu plano. O povo infiel viu no retorno à sua terra e na reconstrução do templo a salvação e a misericórdia de Deus.

O Sl 136 (137), que é um lamento dos exilados na Babilônia, nos põe em sintonia com todos os escravizados e exilados do mundo e nos faz recordar o lamento dos cativos, que apesar do sofrimento, demonstram grande resistência espiritual.

Na segunda leitura (Ef 2,4-10), encontramos os atributos de Deus, provindos do Primeiro Testamento: rico em misericórdia, amor, favor e bondade. Por sua iniciativa e por causa de sua misericórdia, Deus fez todos passarem da morte para a vida, do pecado para a graça, e permitiu que todos participassem antecipadamente, da vida divina, por meio da ressurreição de Jesus (vv 4-7). Tudo isso é dom maravilhoso da graça de Deus, em vista das boas obras a serem praticadas (vv 8-10).

O evangelho deste domingo é o encontro de Jesus com Nicodemos (Jo 3,14-21). Este fariseu e membro do sinédrio percebe que a exigência de Jesus está na transformação, no novo nascimento – mas não entende de que maneira possa realizar-se tal mudança. Esta é possível somente no impulso do Espírito, que leva a uma aceitação da proposta de Jesus – “quem nele crê não é condenado” (3,18) – e então, a uma prática segundo a verdade, realizando as obras de Deus (3,21).

O batismo é o sinal – sacramento – dessa transformação radical, que provoca um agir na verdade e na luz.

Essa transformação que permite entrar na novidade do Reino, realiza-se plenamente na cruz de Jesus: “como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (3,14-15).

Não há como entrar nessa perspectiva nova do Reino sem passar pela noite da cruz – que é morte a todo um mundo de falsidade e opressão, e assim ressurgir para uma novidade de vida.

A experiência de morte e vida feliz ou salvação, feita pelo povo de Israel, prefigura a experiência de toda a humanidade. Longe de Deus ela se encontra na desgraça. Acolhendo a Deus, a manifestação de sua misericórdia em Cristo Jesus, ela vive. Para toda a humanidade Deus manifestou sua misericórdia em Cristo Jesus, seu Filho. Como a serpente no deserto, também ele é elevado da terra num gesto de amor ao Pai e à humanidade toda, entregando sua vida pela salvação do mundo. Assim, o templo de Deus no mundo faz com que todo o mundo possa transformar-se em templo de Deus.

Dessa forma, Jesus Cristo torna-se luz do mundo. Todo ser humano que nele crê não anda nas trevas. Também ele se torna luz. E luz é símbolo de alegria, de felicidade, de salvação.

Atualizando a Palavra

Continuando a recordar a Palavra proclamada neste 4º Domingo da Quaresma, tentemos atualizá-la. A ideia central do final de 2 Crônicas é, por um lado, destacar a infidelidade do povo e das lideranças de Israel ao projeto de Javé: ou seja, o desprezo pelos profetas, a profanação do templo e as consequências deste pecado com o exílio do povo para a Babilônia. Por outro lado, o texto destaca a fidelidade de Javé que não abandona seu povo, mas, por meio de Ciro, rei da Pérsia, permite a repatriação, a volta do povo cativo à sua terra: nos desígnios de Deus, Ciro se torna um colaborador de Javé. O povo pode ter novamente liberdade, esperança e vida porque Deus não o abandona, não o condena.

É verdade que o povo permaneceu exilado na Babilônia durante setenta longos anos, tornando-se escravo do rei Nabucodonosor. Esta situação é devida, como vimos, ao abandono do projeto de Deus e o consequente desprezo dos mensageiros (profetas), que denunciavam os desmandos dos dirigentes do povo.

O texto de Crônicas nos ajuda a ler a história do povo de Deus e a nossa história. Israel faz a experiência da escravidão por causa da avareza dos líderes políticos e religiosos. Como é, hoje, a história? Acontece algo semelhante no mundo atual, em nosso país, em nossa região? De onde surge esperança? Há expectativa para os excluídos? Quais são as vozes proféticas que surgem em favor da dignidade humana e contra todas as formas de exclusão?

A carta aos Efésios destaca a vida nova trazida ao novo povo de Deus das primeiras comunidades cristãs pela morte e ressurreição de Jesus. “Quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo” (Ef 2,5). A comunidade cristã é o lugar da realização do projeto de Deus, lugar do testemunho de um mundo novo.

A marca do texto paulino é a novidade de Deus trazida por Jesus, que é fruto do Deus rico em misericórdia (v.4a), amoroso, gratuito e doador da graça. E a fé é o compromisso que brota espontâneo em quem se descobre salvo e glorificado: “Mediante a fé somos salvos” (cf v.8a). A fé é nossa resposta ao amor misericordioso de Deus, e esta gera novas relações entre as pessoas: relações de vida nova e de esperança renovada. Como concretizar isso em nossa vida diária, em nossa caminhada?

O texto do evangelho de hoje (Jo 3, 14-21) traz uma bonita e ao mesmo tempo controversa frase: “Deus amou tanto o mundo de tal maneira que entregou seu Filho único para que todo aquele que crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Tamanho foi o amor de Deus, que nos deu seu único filho! Mas, por que o mesmo Deus que proibiu o sacrifício de Isaac (Gn 22) entregaria seu próprio filho? Queria o Pai que seu Filho fosse morto por nós? Se não queria, por que permitiu isso? Era necessário que o Filho do Homem fosse levantado no madeiro (Jo 3,14)?

O termo mundo é utilizado pelo quarto evangelho para designar tudo o que se opõe ao Reino, ao projeto de Jesus. Por isso, diante de Pilatos, Jesus afirma categoricamente: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 19,26). O mundo de Pilatos era o mundo do Império Romano: ocupação militar, exploração dos pobres, violência contra as mulheres e crianças. Jesus denuncia publicamente essa farsa e por isso é levantado no madeiro (Jo 3,14). O império o condena. É elevado ao trono, mas sua glória é a cruz.

Entretanto, mesmo denunciando esse mundo e por ele condenado, não quer a sua condenação. A condenação e o assassinato de Jesus são atitudes e escolha do “mundo” e não o desejo de Deus. Temos que assumir que é nossa a culpa pela morte de tanta gente inocente. A comunidade joanina, ao refazer a releitura de Gn 22 (a preservação da vida, o não-sacrifício de Isaac), quer ressaltar o quanto Deus ama esse mundo e como deseja a conversão e a mudança de comportamento.

Outra expressão que parece contraditória: “Quem não crer, de antemão já está condenado” (Jo 3,18). No conjunto, insiste na salvação do mundo: aqui explicita a condenação. Uma tradução melhor seria: “julgado”, em lugar de condenado.

Com certeza, quem nos condena não é Deus. Tamanho é o seu amor por nós que nos enviou seu próprio Filho!  Nós mesmos fazemos a escolha; a opção é nossa. Estamos “no mundo”, mas podemos deixar de viver “conforme o mundo”.

Mas, a que podemos nos condenar? Condena-se a si mesmo quem decide pelo projeto do “mundo”. Neste sentido, “crer” é aderir, aceitar, entregar-se, integrar-se em outro projeto, o do Reino.

Não é bom que corramos o risco de nos condenar à tristeza e à frustração de quem não consegue crer que Deus nos ama e que “outro mundo é possível”. Não podemos nos condenar ao individualismo e ao isolamento apregoados pela sociedade atual. O caminho é a solidariedade, a partilha e o compromisso com quem sofre injustiças.

Ligando a Palavra com a ação eucarística

Cada domingo, participamos da eucaristia, mistério da fé, mistério da salvação. O crescimento na fé se dá quando vamos adentrando, compreendendo este mistério por meio dos ritos, das preces, dos cantos, dos gestos, do estarmos reunidos e unidos em comunidade.

A ação ritual é mistagógica, isto é, introduz no mistério, não por uma explicação dos ritos e símbolos, mas por uma experiência, que se aprofunda sempre mais.

Nossa eucaristia é memória do amor do Filho do Homem que foi levantado na cruz, para que todos os que nele crerem, tenham a vida eterna.

Como ligar a Palavra escutada neste domingo e a eucaristia que celebramos? Unimo-nos à oferta de Cristo, que atualiza a sua entrega no madeiro da cruz, prova maior do amor do Pai, que deu seu Filho único, nos propondo a continuar a nossa caminhada de conversão – não viver conforme o “mundo” – que nos aproxima da Luz e nos compromete na construção de um mundo fraterno e solidário, verdadeiramente feliz.

Sugestões para a celebração

 1. Preparar o espaço da celebração com sinais de alegria: flores e a cor rosa, substituindo o roxo. Os instrumentos musicais podem dar um toque de festa à celebração, Páscoa antecipada.

2. Fazer entrada solene da cruz acompanhada de velas e algum símbolo ligado à CF. Colocar a cruz em lugar de destaque.

3. O ato penitencial seja inspirando na Palavra proclamada neste domingo; criar um clima que ajude a comunidade a tomar uma sincera atitude interior, que reconhece diante de Deus sua pobreza e fraqueza, e apela para o amor misericordioso do Cristo, que a todos dá a vida eterna.

4. Durante a proclamação do evangelho, erguer a cruz diante da comunidade. A cruz é exaltada como sinal que manifesta, para sempre e para todos, o amor de Deus pela humanidade.

5. Fazer a profissão de fé e as preces dos fiéis diante da cruz erguida, se for possível, com velas acesas.

6. Usar a Oração Eucarística da Reconciliação I, muito indicada para este domingo.

Se o amas, segue-o! ”Eu o amo, dizes tu, mas por onde o seguirei?” Se o Senhor te houvesse dito: “Eu sou a verdade e a vida”, tu que desejas verdade e aspiras à vida, certamente procurarias o caminho para alcançá-la e dirias a ti mesmo: “Grande coisa é a verdade, grande coisa é a vida! Ah se fosse possível à minha alma encontrar o caminho para lá chegar!”

Queres conhecer o caminho? Ouve o que o Senhor diz em primeiro lugar: Eu sou o caminho. Antes de dizer aonde deves ir, mostrou por onde deves seguir. Eu sou, diz ele, o caminho. O caminho para onde? A verdade e a vida. Disse primeiro por onde deves seguir e logo depois indicou para onde deves ir. Eu sou o caminho, eu sou a verdade, eu sou a vida. Permanecendo junto do Pai, é verdade e vida; revestindo-se de nossa carne, tornou-se caminho.

Dos Tratados sobre o Evangelho de São João, de Santo Agostinho, bispo

Tract. 34,8-9: CCL 36,315-316

Obs: a) publicado pela CNBB nacional.
b) Com autorização da autora, alguns subtítulos foram alterados para a postagem.
c) imagem enviada pela autora (retirada da internet)

 

 

[1] Texto base da CF 2015 – 8º Objetivo específico.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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