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Os orvalhos do sertão são, de fato, as lágrimas da natureza. Eles não nascem, contudo, de sua tristeza, como às vezes nascem das dos homens o pranto consolador. No mundo dos mitos e dos falsos deuses das fábulas, não seria de todo desarrazoada a idéia de que o orvalho do sertão, que se vê ao nascer do dia, ainda naquela luminosidade vermelho-tímido, é o choro de alegria que promove o mundo na aurora e — agora sim, mitologicamente — por Aurora.

Explico: Na Guerra de Tróia — de acordo com o Etiopida, com as Ilias Parua, e, principalmente, com o poema Pólemoz de Hyogrucylos —, o filho de Aurora com Titono, chamado Mémnon, matou Antíloco, filho de Tétis. Antíloco, que entrara na batalha para salvar a vida do pai, Nestor, poderia ter, no futuro, a morte vingada… Não foi o que passou pelas noções de Mémnon naquele momento; sentiu-se — pode-se até dizer — não menos seguro que feliz: havia, enfim, matado o inimigo.

Mas, é fato que há os que, como Mémnon, pensam que a morte inibe a vingança do defunto, que desacreditam em quaisquer represálias de cadáveres, que gritam que os corpos inertes não causam mais problemas. É bem verdade que mortui non mordent — os mortos não mordem —, mas, por outro lado, outros podem morder em nome deles. Eis o que pode haver de mais sincero no homem: a manutenção da fidelidade e amizade a outro mesmo depois da morte deste. É isso: nada mais sincero do que ser fiel a um morto.

Informo-te, prezado amante das mitologias, que foi o que aconteceu. A morte de Antíloco despertou em seu fiel amigo, Aquiles, a vontade de vingança; haveria de acabar com aquele que destruiu a vida do amigo; o projeto, enfim, foi levado adiante. Aquiles encontra Mémnon no campo de batalha e assim se dá o confronto entre os filhos das falsas deusas. Elas, Tétis e Aurora, em desespero, vão a Zeus, no intuito preservar a vida dos filhos. Triste façanha de todos os acasos: neste ínterim, Aquiles vence a luta; Mémnon está morto… Morto como a metafísica; morto como uma pedra; morto, enfim, como Antíloco.

Ah, triste Aurora… O filho, que era vida e amor, agora queria apenas se putrefazer… Mater dolorosa — mãe que sofre —, que desanima, fica triste, mas não desiste. A esperança de uma mãe é o que há de mais forte no mundo. Aurora haveria de fazer algo. Desta feita, ela reuniu em um só pacote todas as esperanças maternas e foi implorar a Zeus pelo filho já morto. Ele, Zeus, resolve pesar as almas e os destinos dos que há pouco combatiam. Aurora vê, quase que imperceptivelmente, um quê de brilho nos olhos de Zeus. Há esperança! É o que não deixava de pensar. Mantinha-se ansiosa…

Zeus, enfim, conclui que a alma de Mémnon é mais valiosa… Haveria, portanto, de fazer algo pelo filho de Aurora. E, de fato, fê-lo: prometeu à deusa a imortalidade do seu filho. Aurora transborda-se; não cabe mais em si; é pura alegria, emoção. Seu filho reviverá. Sai, desta feita, em busca do cadáver de Mémnon e, ao chorar de emoção durante o caminho, suas lágrimas caem no campo e se tornam o orvalho que se vê nas oiticicas, pelas manhãs. É isso! O orvalho, que passa por tantos de maneira tão despercebida, tem uma grande história, mesmo que fictícia. Ele é formado pelas lágrimas de Aurora que são quotidianamente derramadas nas plantas do sertão, na aurora.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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