Luiz Carlos Andrade 15 de agosto de 2015

Foi presente de um senhor acostumado com o trabalho grosseiro do campo. Tinha aprendido apenas a roçar mato com foice, plantar e colher milho, feijão, mandioca e cuidar de gado. Descanso, somente aos domingos, com as romarias para assistir à missa e procissão de Santo Antônio, no dia 13 de junho para pedir boa safra.

Sua mulher não atiçava seu corpo há mais de 2 anos. Ficou doente depois de um abortamento muito complicado. Sentia fadiga, pressão baixa, perdia peso, tinha pouca fome e quase nenhuma disposição. Tinha perdido toda sua forma, seu reboliço e sua graça. Fora invadida pela crença supersticiosa de que o abortamento era um aviso divino: Deus não lhe permitia ser mãe.

Uma fagulha de enxerimento para sibiteza não nascia de seus olhos, um beijo não saía de seus lábios e nem um carinho de suas mãos. Seu esposo tinha jurado fidelidade na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Entretanto, não estava feliz com o quarto de amor transformado em altar e ter que rezar em terço todas as noites e depois, apenas dormir.

Podia tornar-se vulnerável a um relacionamento extraconjugal, mas, para esfriar seus ardentes desejos perturbadores, em sua consciência estavam acesos compromissos que serviam de argumentos moderadores. Adultério era pecado. A solução era procurar um médico.

Depois de avaliação clínica e de alguns exames, foi feito o diagnóstico de insuficiência adrenal secundária. O espetacular sucesso das intervenções terapêuticas ficou logo evidente e bem visível. Sua esposa renasceu das cinzas. Passou a perfumar o corpo e os cabelos após o banho e seu aroma afrodisíaco enchia todo o quarto. Na hora de deitar vestia roupas atrevidas que partiam dos quadris indo apenas até as virilhas. Voltou a encantar, seduzir, ser buliçosa e fonte de fantasias associadas a intensos orgasmos.

A recompensa dada ao médico foi um peru cevado, esbelto, com plumagem marrom-escura de reflexos verdes-brilhantes. O peru foi preparado para ser servido como se costuma fazer na noite de Natal.

A mesa farta foi arrumada: a estética da arrumação tinha como inspiração as festas de fim de ano. Na hora da ceia, a casa estava calada e nenhum sussurro se ouvia. As cadeiras em volta da mesa permaneciam vazias, já fazia alguns meses. Percorri os quartos, um a um. As camas bem forradas, sem marca de corpo e em disposição bem ordenada, os lençóis, cobertores e travesseiros. O silêncio era quebrado apenas pelo pisar leve dos meus passos. Percebi que estava privado, por algum tempo ou para sempre, de todos aqueles que compõem uma família. Retirei da mesa o peru, o vinho, o salpicão, a farofa e a bandeja de frutas. Enfim, tudo o que sobre ela havia posto para a refeição de Natal.

Deduzi que, quando jovem, sonhara demais.
A noite caía depressa. Apaguei a luz e deitei. Era preciso dormir.
(Aracaju, 26/12/2014)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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