Patricia foto tam.bom

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“Não escuta esse terrível pranto ao seu redor? Esse pranto que os homens chamam silêncio?”
(WERNER HERZOG, 1974)

Um homem-menino trancado em uma alta torre desde o nascimento, não conhece outros homens nem seus hábitos, costumes. Ele e seu brinquedo de madeira, um cavalo que para ele não é um animal, é um joguete-espelho onde reflete o seu próprio ser, na necessidade de vesti-lo, na necessidade de fazê-lo imagem e semelhança sua. Veste-o com trapos, tal se veste de trapos. Não sabe o que é um sonho. É preso por uma corrente ao chão: não eleva-se, não anda, não sabe da sua natureza humana. Pronuncia gemidos, grunhidos. Não sabe o nome das coisas. Não sabe ao menos o que significa um nome. Desconhece a existência da Palavra.

“Em sentido estrito, a linguagem é, em sua essência, discursiva. Ela possui unidades de significado permanentes que podem ser ligados a outras unidades de significado ainda maiores. Ela contém equivalências fixas, que tornam definições e traduções possíveis. Suas conotações são de caráter geral, de forma que atos não-verbais, como apontar, olhar, modificar a voz, são necessários para que denotações específicas sejam atribuídas a suas expressões. Todas estas características ressaltadas a distinguem do simbolismo “sem palavras”, que não é discursivo nem traduzível, não permite nenhuma definição dentro de seu próprio sistema e não é capaz de transmitir o geral diretamente. Os significados transmitidos pela língua são entendidos um após o outro e, então, resumidos em um todo por um processo conhecido como discurso. Os significados de todos os outros elementos simbólicos que formam juntos um símbolo maior e articulado somente são entendidos através do significado do todo, através de suas relações na estrutura holística. O fato de que eles, de algum modo, funcionem como símbolos é explicado por eles pertencerem todos a uma apresentação simultânea e integral. Chamaremos esse tipo de semântica de “simbolismo apresentativo” a fim de caracterizar a diferença da sua essência da do simbolismo discursivo, isto é, da “linguagem” real.” (LANGER in SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 44);

É com a palavra que é libertado por seu “pai”. “Se escrever bonito ganha um cavalinho”. O homem-menino aprende a duras penas a escrever. Tem sentido? Não para ele, talvez para o seu “pai”. Talvez para os homens que vem a conhecer quando é deixado na praça pública da cidade, diante de uma árvore com uma vaca amarrada, vaca tão parecida com ele preso no interior de si mesmo.

“Piaget (1964: 97) define a imagem interior como “esquema representativo” de um acontecimento externo e vê nela uma “imitação interiorizada” e uma transformação de tal acontecimento.(…) A imagem mental é, assim, um veículo do signo que representa o objeto de referência externo.” (SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 30);

O silêncio a que se coloca diante dos “gritos” alheios, “gritos” ao que não estava acostumado na alta torre. A imagem que faz de si é toda coerente, que, ao se transformar em “ser de cultura”, lhe cobra um retorno a sua própria essência, o “tecedor” de roupas (para si mesmo?), a pele que precisa construir para se proteger da violência civilizatória.

“Mãe, estou tão longe de tudo!” (WERNER HERZOG, 1974)

Não tem medo do perigo. Nem das interferências no seu pensar. Descobre que o pensamento é maior do que o que vê. “As pessoas são como lobos para mim.” Está em contato direto com o mundo, e o mundo não lhe absorve.

“Os signos e, entre eles, as imagens são mediações entre o homem e o mundo. Devido à sua natureza de ser simbólico, ser de linguagem, ser falante, ao homem não é nunca facultado um acesso direto e imediato ao mundo. Tal acesso é inelutavelmente mediado por signos.” (SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 131);

Ao tocar o fogo, o bebê em seu colo, o faz como um ser integrado, não como uma parte, porque sente tudo de maneira imediata. A Palavra revela a fenda de acesso ao mundo, mas, de algum modo, Kaspar Hauser aceita esta dor do nome, aceita revelar-se, entregar-se a esse contato, a deixar a alma transbordar através das lágrimas, tão próximas de si quanto as palavras que escreve, quanto o seu nome na relva.

“Há alguns dias peguei umas sementes de agrião e plantei-as com meu nome. E ficou muito bonito. Fez-me tão feliz que quase não podia falar.” (WERNER HERZOG, 1974)

Percebe que seu nome está ligado à vida, e ao ser “apagado da relva” deixa de existir como escrita, como cultura, como ser que se expressa.

Kasper induz respostas, com a lógica que não é a do mundo (“o mundo não lhe absorve”), mas a do sentimento. O afeto foi constituinte do seu novo ser. O afeto em comunhão com a Palavra.

“(…) as imagens atuam mais fortemente de maneira afetivo-relacional, enquanto a linguagem apresenta mais fortemente efeitos cognitivos-conceituais. (…) Imagens fomentam atenção e motivação, são mais apropriadas à apresentação de informação especial e facilitam, em certo grau, determinados processos de aprendizagem. (…) A eficácia emocional das imagens cresce com o grau de sua iconicidade.” (SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 44);

O aprendizado do menino-homem vai se dando em saltos, não percebidos, não assimilados por si. Ele se sente sempre aquém da sociedade. A sociedade que por sua vez o exclui ao tomá-lo como “excêntrico”, “um peso” e ao mesmo tempo “um bom selvagem”. Um experimento para tentar entender a origem da própria espécime, sem lembrar das particularidades de um ser que cresceu num ambiente sem nenhumas das condições básicas para ser humano.

“(…) as próprias mudanças materiais ou instrumentais são provocadas por necessidades que nem sempre são materiais, especialmente quando se trata de um processo de produção de linguagem, seja esta verbal, visual ou sonora. Neste caso, há uma espécie de força interior ao signo para produzir determinações no seu processo evolutivo, em uma espécie de tentativa ininterrupta e inatingível de toda e qualquer linguagem para superar seus limites.” (SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 158);

É pela própria superação que Kasper Hauser se atinge. Passa de “experimento” dos outros a “experimento” de si mesmo. Desvenda a partir da sua própria biografia que escreve, no ato da escrita, o que aos outros não pode ser revelado, pois misterioso, e parte invisível do ser.

“Senhor, não há nada dentro de mim exceto minha vida!” (WERNER HERZOG, 1974)

“(…) o verdadeiro conteúdo do real se encontra menos na aparência do mundo externo do que na representação fortemente sentida que aquela desperta no artista.” (SANTAELLA e NÖTH, 2010, p. 178);

httpv://www.youtube.com/watch?v=nRWtvT7vzFc

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Referências Bibliográficas
 [1] SANTAELLA, Lucia e NÖTH,Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2010.

Referências Cinematográficas
 [1] O enigma de Kaspar Hauser. Alemanha Ocidental, 1974. 110 minutos. De Werner Herzog. Com Helmut Döring, Bruno S., Walter Ladengast, Brigitte Mira, Willy Semmelrogge, Michael Kroecher, Hans Musaeus e Volker Prechtel.

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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