Djanira Silva 1 de julho de 2015

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               Ainda hoje me arrependo da brincadeira que fiz quando Alzira, com um indisfarçável olhar de inveja, ao ver minha filha chegar à repartição e me beijar, disse: meus filhos são assim comigo. Adivinham meus pensamentos.

               Não me contive e escrevi na minha agenda: coitada, já sofreu tanto que deu pra mentir.

……….Deus que me perdoe pela irreverência.

             Durante muitos anos fui companheira de Alzira, funcionária exemplar que se destacava pela honestidade, pela abnegação e pelos cuidados que dispensava aos filhos. Nenhum deles jamais reconheceu o sacrifício que ela fizera para criá-los com o parco salário que recebia. Depois de crescidos lhe retribuíram com toda sorte de decepções.

               Para complementar seus rendimentos, vendia títulos de capitalização, bilhetes da loteria e algumas jóias que recebia em consignação.

………..Não era tão velha o quanto aparentava. Andava cabisbaixa, arrastando os pés. Parecia carregar o mundo nas costas. Toda aquela tristeza, sabia-se, era causada pela falta de caráter dos filhos, que, desonestos e irresponsáveis não correspondiam aos esforços que fizera para vê-los vencer na vida.

         Sua aparência era deplorável. Os cabelos ressecados, precocemente encanecidos, presos num coque mal arrumado. A pele seca, os lábios arroxeados. Não usava sequer um pó facial para disfarçar a palidez das faces enrugadas. Brincos, anéis, colares, recebidos de presente nos aniversários, passava-os adiante.

          Dela nunca ouvimos uma queixa por mais simples que fosse. Geralmente chegava feito uma sombra, assinava o ponto, ia para sua mesa, arrumava a papelada, preparava o livro do ponto para o dia seguinte, punha em ordem o fichário de endereços. Sempre achava em que se ocupar.

               Quando chegava, abria a gaveta e ficava olhando para dentro sem esboçar qualquer movimento, podíamos apostar, um dos filhos estava metido em encrenca.

…………Alzira procurava, por todos os meios, esconder as trapaças deles. Muitos de nós já havíamos sido vítimas de alguma trambicagem, porém, nunca permitimos que ela soubesse.

………..Perdeu totalmente a calma no dia em que um deles comprou um automóvel seminovo dando-a como fiadora.

……….Quando começaram a chegar as duplicatas protestadas, desabou num choro convulsivo. Na verdade, não tinha como pagá-las. A concessionária tomou o carro e o nome dela foi parar no SPC.

            Enquanto isso, o filho mais velho preparava outro golpe. Alegando que ia levar a mãe ao médico, pedia emprestado o carro de um colega. De posso do automóvel viajou para Sergipe, de onde telefonou dizendo que o carro havia sido roubado durante um assalto. A polícia não demorou para descobrir que tudo não passara de uma armação – o veículo fora vendido num desmanche clandestino.

          No dia seguinte, Alzira falou ao trabalho. Ficamos apreensivos. Tínhamos certeza de que algo muito sério havia acontecido. Ela costumava dizer que no trabalho se desligava dos problemas. Era melhor do que ficar em casa sozinha, sem ter com quem conversar. Pensei em ligar. Na verdade, era uma situação delicada. Decidi respeitar sua privacidade.

              Passados dois dias, a filha avisou: mamãe morreu, morreu dormindo.

………..Dormindo sim, depois de ingerir o conteúdo de um vidro de barbitúricos.

Obs: Texto do livro da autora – Doido é quem tem juízo –

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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