Emanuela Cristo  Quaresma

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Parte VI – “destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2,19)

Situando-nos

Chegamos ao terceiro domingo da Quaresma, o domingo da expulsão dos vendilhões do templo. Somos convidados a viver o mistério da restauração do ser humano em Cristo a partir do símbolo do templo (cf Jo 2,13-25). Também para Jesus, como bom judeu, o templo de Jerusalém constituía um lugar sagrado, devotado a Deus. Desrespeitá-lo significava desrespeitar o próprio Deus, pois templo significa a presença de Deus entre os seres humanos, lugar onde habita Deus.

Comparando com os outros evangelistas (Mt 21,12-17; Mc 11,15-17; Lc 19,45-46), percebemos que João dá um sentido diferente à purificação do templo antecipando-a e carregando-a de sentido simbólico referindo-o à morte e ressurreição de Jesus.

Jesus se escandaliza com a decadência do culto e mostra que a verdadeira habitação de Deus entre os seres humanos é ele mesmo, o seu corpo ressuscitado, que é o novo templo. Assim, quem desrespeita o templo está desrespeitando a sua pessoa, o próprio Deus e toda pessoa humana chamada a ser templo de Deus (cf 1 Cor 6,19). Doravante, o culto estará ligado a Jesus, o verdadeiro templo (Jo 1,14; 1,51; 4,20-24). Jesus profetiza sobre uma prática religiosa ligada à justiça e à realização plena do seu Reino, e anuncia a sua ressurreição.

Conforme a tradição dos profetas (cf Zc 14,21), a prática da religião, o culto só são verdadeiros se promoverem a vida e a liberdade de cada uma e de todas as pessoas. Com o gesto da expulsão dos vendilhões do templo, Jesus inaugura o tempo messiânico, no qual o culto estará plenamente isento da exploração do povo. Ele toca o sistema econômico do templo, com seu enorme afluxo de dinheiro, no qual havia a exploração dos ricos sobre os empobrecidos.

 A Igreja do Brasil almeja com a Campanha da Fraternidade 2015, expressão social de sua caminhada espiritual durante o período quaresmal, iluminar as condições do povo brasileiro, constituído por diversos vínculos culturais, políticos e étnicos, a fim de que este, fiel a sua vocação, alcance sua realização como sociedade firmada nos valores universais éticos do bem comum, da justiça e fraternidade[1]. Tais valores coincidem com os valores do Reino e se opõem a qualquer tipo de exploração.

Recordando a Palavra

O texto do livro do Êxodo 20,1-17, proclamado neste terceiro domingo da Quaresma, se enquadra no contexto da Aliança que Deus sela com seu povo. O grande gesto de salvação de Deus é a libertação do povo da escravidão. Mas, para ser um povo verdadeiramente livre e feliz, Deus lhe dá os mandamentos, que não são um peso, não cerceiam a liberdade, mas dão segurança e garantem a felicidade. A Aliança é um pacto: por parte de Deus, a libertação da escravidão do Egito; por parte do povo, a lei de Deus.

 No centro do decálogo (dez palavras) está a defesa da vida. O espírito sagrado dos mandamentos está no versículo 2: devem possibilitar a experiência de Deus como presença libertadora e protetora da vida. A lei dos dez mandamentos indica o caminho que o povo deve percorrer desde a “casa da escravidão” até à plena liberdade junto a Deus.

Os dez preceitos são breves e gerais, repartidos em deveres para com Deus e para com o próximo, em forma negativa e positiva. Embora breve e seletiva, a série abrange um campo amplíssimo de conduta. Deus exige do ser humano que este o respeite e ao próximo.

 Os mandamentos se contrapõem às opressões sofridas pelo povo no Egito, onde em nome do deus do faraó se justificava todo tipo de opressão.

O Sl 18 (19) canta a perfeição da Palavra criadora. Assim como existe ordem natural na criação, também deverá existir harmonia na ordem humana, o que acontecerá pela observância dos preceitos de Deus, que escutamos na primeira leitura.

Na segunda leitura (1 Cor 1,22-25), o sinal da Aliança não é mais o sangue dos cordeiros (Êx 24), mas o sangue de Cristo, que sela a nova Aliança entre Deus e a humanidade. No anúncio cristão, o evento pascal não é mais a libertação do Egito, mas o Cristo crucificado. A salvação é agora obtida mediante a fé no acontecimento da cruz, poder e sabedoria de Deus, porque capaz de dar a salvação. De fato, a cruz, cerne da pregação de Paulo, parece uma verdadeira loucura, sinal de fraqueza e caminho de perdição. Mas Deus a transformou em sabedoria, sinal de força e caminho de salvação porque alicerçada no amor.

  No evangelho (Jo 2,13-25), lemos que Jesus expulsou os comerciantes do templo e derrubou a mesa dos cambistas. Observando a composição do evangelho de João, não se pode omitir uma referência ao lugar que nele ocupam as festas judaicas. Em torno destas festas se cristalizam certos conjuntos. O ponto de vista do evangelista é mostrar que todas as festas do templo encontram sua plenitude no Cristo, cujo corpo é doravante o único templo (2,21). Não se pode colocar remendo novo em pano velho (cf Mc 2,21).

Isso é evidente desde a primeira subida de Jesus a Jerusalém nas proximidades da Páscoa (2,13). Jesus expulsa não só (como nos sinóticos) os cambistas e os vendedores de pombas, mas também bois e ovelhas (2,14). Ora, bois e ovelhas eram vítimas pascais (Dt 16,2). A insistência do evangelista, que repete no v.15: “com suas ovelhas e seus bois”, deseja sublinhar que as vítimas destinadas à Páscoa foram expulsas. É sinal de que virtualmente a Páscoa judaica fica abolida.

Vale notar que a expulsão dos vendilhões do templo, que em João situa-se no início do ministério público de Jesus (próxima a uma festa de Páscoa), é colocada pelos sinóticos após a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém. Segundo João, a ruptura com as autoridades do templo tem lugar no começo de sua vida pública. Nos sinóticos, este gesto, no final do seu ministério, faria transbordar um cálice já cheio: a hostilidade dos chefes judeus contra Jesus.

 Voltemos à questão do templo. Trata-se do conflito entre o templo antigo, feito de pedra com seus muitos sacrifícios de animais, e o templo novo que é Jesus, presente nas comunidades. O templo antigo ficava em Jerusalém. Era um só para todos! Deus ficava longe. Mas o povo fazia romarias para visitá-lo e sentir a sua presença. Jesus, o novo templo, está presente em cada comunidade, em toda parte. Ele faz Deus ficar bem perto de nós.

 Jesus vai ao templo para encontrar o Pai, e encontra o comércio. Encontramos aqui um contraste entre o antigo templo, que se transformou em casa de comércio, e o novo templo que é Jesus.

 Observando o que se passava no templo, Jesus faz um chicote de cordas e de lá expulsa os vendedores com seus animais. Derruba as mesas dos cambistas, joga o dinheiro no chão e diz aos vendedores de pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio” (Jo 2,16). O gesto e as palavras de Jesus lembram várias profecias; a casa de Deus não pode ser transformada em covil de ladrões (Jr 7,11); no futuro não haverá mais vendedor na casa de Deus (Zc 14,21); a casa de Deus deve ser uma casa de oração para todos os povos (Is 56,7).

 Vendo o gesto de Jesus, os discípulos foram lembrando outras frases e fatos do Primeiro Testamento: “O zelo de tua casa me devora” (Sl 68,10), e o profeta Elias que dizia: ”Eu me consumo de zelo pela causa de Deus” (1Rs 19,9. 14).

 Tocando no templo, Jesus tocava no fundamento da religião do seu povo. Os judeus, isto é, os líderes, perceberam que ele tinha agido com grande autoridade. Por isso, pedem que apresente as credenciais: “Que sinal nos mostras para agir assim”? (Jo 2,18). Jesus responde: “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (2,19). Jesus falava do templo do seu corpo, que seria destruído pelos judeus e em três dias seria totalmente renovado por meio da ressurreição. Os judeus tomaram as palavras de Jesus ao pé da letra e zombaram dele: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” (2,20).

  Os discípulos também não entenderam o significado desta palavra de Jesus. Só depois da ressurreição foi que eles se deram conta de que ele estava falando do templo do seu corpo (2,22). A compreensão das coisas de Deus só acontece aos poucos, em etapas. A expulsão dos comerciantes tinha ajudado a entender as profecias do Primeiro Testamento. Agora, é a luz da ressurreição que ajuda a entender as palavras do próprio Jesus. O Ressuscitado é o novo templo onde Deus se faz presente no meio da comunidade.

 Naqueles dias da festa da Páscoa, estando Jesus em Jerusalém, muita gente começou a crer nele por causa dos sinais que ele fazia. João comenta que a fé da maioria destas pessoas era superficial e Jesus não lhes dava crédito, pois conhecia o ser humano por dentro (2,23-25).

Atualizando a Palavra 

O Código da Aliança (Êxodo 19-24) trata de leis. Nele estão os dez mandamentos. O que podemos aprender destas leis? Afinal, qual o ideal que o decálogo queria realizar? Qual a posição que ele tomava nos conflitos daquele tempo: defendia o interesse dos pequenos ou dos grandes? Como animava a fé do povo?

O Decálogo privilegia a vida, propondo-a como valor ímpar. Há estudiosos que apontam o quinto mandamento como o eixo das dez palavras; “não matarás” (20,12). Podemos, pois, concluir que o espírito sagrado dos mandamentos está no versículo 2: a experiência de Deus como presença libertadora e protetora da vida.

Por meio da Aliança expressa nos mandamentos, o povo prometera amar e servir a Deus. Mas caiu em um legalismo estéril. Jesus veio comunicar à humanidade o verdadeiro espírito da lei, uma lei que sustentasse a pessoa humana: é a lei do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Na vida prática de cada dia, o que fazer para que Deus ocupe, de fato, o primeiro lugar? Em que podemos contribuir para promover a vida do irmão, da irmã, especialmente dos excluídos?

A lei do amor passa pela loucura da cruz (segunda leitura). Os judeus exigiam uma religião de sinais prodigiosos para acreditar. Em outras palavras, uma religião sem riscos. Os gregos procuravam sabedoria (1 Cor 1,22), ou seja, uma religião que não se encarna jamais, puramente racional. Jesus escolheu o caminho da cruz, que é símbolo do fracasso, fraqueza, vergonha e maldição, mas ao mesmo tempo é símbolo da encarnação do Filho de Deus em nossa realidade mais concreta. Morrendo na cruz, Jesus nos libertou. Ele é a revelação máxima do projeto do amor de Deus. Paulo nos ajuda, pois, a descobrir a verdadeira religião. Como encarnar a religião, a nossa vida de discípulos de Cristo, na realidade concreta do povo pobre e crucificado?

 Relendo o evangelho deste domingo, concluímos, como as comunidades que viveram depois do ano 70 dC, quando o templo fora destruído, que o templo de Jerusalém estava ultrapassado. A glória de Deus não habitava mais aquele espaço. As comunidades de João foram as que mais avançaram nesta reflexão. Elas concluíram que em Jesus, Palavra de Deus feita carne, reside a glória de Deus (cf Jo 1,14). O corpo de Jesus, ou seja, a sua realidade humana, é o local em que habita a plenitude da divindade (Jo 2,21-22). O que o Pai quer são os verdadeiros adoradores, aquelas pessoas que manifestam Deus em suas vidas por meio do amor ao próximo. Estas são as que adoram “em espírito e verdade” (Jo 4,23). O verdadeiro templo de Deus é a comunidade, onde as pessoas são “as pedras vivas”, que continuamente oferecem a Deus o autêntico sacrifício espiritual (1Pd 2,4-5), que não consta de práticas a cumprir em determinados momentos. Percebemos a diferença entre o legalismo condenado por Jesus e a lei do amor que liberta?

Ligando a Palavra com a ação eucarística

Cristo Jesus, fiel ao único mandamento de realizar a vontade do Pai, não se apegou ciosamente à sua vida, mas a deu em serviço de amor infinito a seus irmãos. Celebrando a Páscoa de Jesus na eucaristia nos dispomos a ligar fé e vida, culto e justiça, a lutar pela dignidade humana e a colaborar com a realização plena do Reino.

 O espaço da verdadeira adoração de Deus não será mais o templo de Jerusalém, comprometido com os poderes do mundo, mas o templo do corpo de Jesus martirizado e glorificado. Este corpo nos é sempre de novo entregue todas as vezes que comemos do pão e bebemos do cálice, anunciando a morte do Senhor até que ele venha (cf 1Cor 11,26). A eucaristia que celebramos é memória da morte de Jesus como dom de vida para a humanidade.

 Comungando o pão eucarístico, selamos nossa aliança pessoal com Deus, no corpo e sangue, no sacrifício de Jesus Cristo. Esse nosso pacto com Deus não pode ser um rito vazio; precisa comprometer toda a nossa vida, para que o sangue do Filho de Deus não seja derramado em vão. A nossa fé supõe a coragem de ser vivenciada integralmente na nossa vida, de se transformar em culto perfeito, agradável a Deus.

 Esforcemo-nos, em especial nesta Quaresma, para que a nossa prática religiosa seja baseada na justiça; que a liturgia que celebramos nos dê novo ânimo na construção da paz e de um mundo sem exclusões.

Sugestões para a celebração

1. A acolhida seja bem fraterna e pessoal, em especial para os que vêm pela primeira vez à comunidade, templo vivo de Deus.

2. No ato penitencial, a comunidade fará uma revisão de sua prática religiosa com relação à justiça, como observância dos preceitos (mandamentos) de Deus. Pode haver o rito de aspersão durante o qual se canta “Lavai-me, Senhor, lavai-me” ou outro refrão apropriado.

3. Quaresma é tempo de interiorização. Os momentos de silêncio precisam ser valorizados, em especial entre as leituras, após a homilia e a comunhão. “Quem não faz silêncio não sabe dialogar nem escutar, vive só”.

4. É importante estabelecer uma ligação entre as leituras proclamadas e a Campanha da Fraternidade, que neste ano, evidencia a relação Igreja e Sociedade. Os cristãos estão inseridos na realidade social. As realidades terrestres – o trabalho, a ciência, a política, a economia, as relações internacionais etc.- devem ser valorizadas no diálogo atento da Igreja com o mundo.

5. O jejum quaresmal transcorre no deserto, lugar de prova. É o lugar do sofrimento purificador e da reflexão; mas também é graça que não se pode rejeitar. É, pois, de suma importância voltar a refletir com a comunidade, durante este tempo de grande retiro, sobre a prática do jejum, sem restringi-lo apenas à Quarta-feira de Cinzas e à Sexta-feira Santa. Alguns grupos poderão combinar, por exemplo, a arrecadação de gêneros alimentícios para famílias necessitadas, resultado de sua renúncia às sextas-feiras.

Obs: a) publicado pela CNBB nacional.
b) Com autorização da autora, alguns subtítulos foram alterados para a postagem.
c) imagem enviada pela autora (retirada da internet)

 

[1] Texto base da CF 2015 – JULGAR n.40

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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