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A primeira Carta Encíclica de Bento XVI é um texto que esboça já um programa de pontificado, como já acontecera com seus predecessores. Deus é amor reflete não só a personalidade deste papa, como ainda seu profundo conhecimento da fé cristã e da atual situação do mundo. Bento XVI possui uma vasta cultura teológica, bem comprovada por muitos anos de magistério, pela sua atuação no Concílio Vaticano II e pelos livros e artigos publicados e traduzidos em várias línguas. Diante deste pano de fundo as primeiras palavras desta Encíclica adquirem uma importância especial. “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4,16). “Essas palavras da 1ª. Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a conseqüente imagem do ser humano e do seu caminho”.

De fato, como nos expõe Bento XVI, a novidade da fé bíblica está não só na revelação de um único Deus, criador do céu e da terra, mas na sua pessoa como um Deus que ama o ser humano e que faz de Israel o seu povo, perdoando-lhe sempre sua infidelidade e seu pecado. Um Deus realmente apaixonado pelo seu povo, pelo ser humano. Nesta revelação de Deus acontece também a revelação do próprio ser humano, cuja realização existencial última é corresponder a este Deus que o ama infinitamente amando também o seu semelhante.

Esta revelação do Antigo Testamento atingirá sua plenitude no Novo Testamento através da pessoa de Jesus Cristo, que manifesta com suas ações e com suas palavras este Deus amor. Toda a sua vida foi viver para os outros, amando-os e diminuindo seus sofrimentos. Uma entrega de sua própria vida pelos pobres e pecadores que acabará dramaticamente na morte de cruz. O crucificado, o trespassado, é para nós cristãos a prova contundente da seriedade do amor de Deus por nós. Entregou seu próprio Filho por nossos pecados (1Jo 4,10). Esta existência para o outro até o sacrifício da própria vida será celebrada pelo próprio Jesus Cristo com seus apóstolos na Última Ceia. Na celebração da Eucaristia esta existência singular continua presente através dos séculos, fazendo dos que dela participam na comunhão um só corpo, o Corpo de Cristo.

A Encíclica insiste na centralidade do amor fraterno, mediação indispensável do amor a Deus, núcleo da nossa fé, do nosso culto e da nossa vida. Deste modo emerge claramente o que nos define como cristãos, como seguidores de Jesus Cristo, como filhos do mesmo Pai, como eleitos de Deus. Deste modo aparece também como a caridade não consiste num mandamento, mas numa vida que irrompe de dentro de nós provocada pelo próprio amor de Deus em nós, pela ação de seu Espírito Santo. É a dimensão mística da nossa fé que implica experimentarmos Deus agindo em nós. É a possibilidade de nos encontrarmos com o Deus inacessível, visível e presente no próximo necessitado (Mt 25, 31-46). Toda a vida do cristão deveria consistir em crescer neste amor oblativo por seu semelhante. Quanto maior sua caridade, maior sua semelhança a Jesus Cristo, maior sua experiência de Deus.

Como somos seres frágeis e carentes não conseguimos realizar em nós o ideal cristão. De fato, só Deus pode nos possibilitar correspondermos à sua vontade e sensibilizarmo-nos com nosso próximo em dificuldade. Daí a importância da oração na vida do cristão. Quanto mais compromissos e atividades mais contato com Deus, pois só em Deus haurimos forças para prosseguir sem desfalecer na aventura que é seguir Jesus Cristo. Assiduidade na oração e amor à eucaristia, eis duas constantes presentes nas vidas dos santos. Eles bem sabiam que seu amor fraterno era apenas o transbordamento do amor de Deus neles atuante. O amor de Deus é sempre primeiro e fonte da nossa caridade.

Toda a ação de Deus para nos salvar revela o seu amor por nós, e também o próprio Deus vindo ao nosso encontro na pessoa do Filho e do Espírito Santo. Daí a bela afirmação de S. Agostinho: “Se vês a caridade, vês a Trindade”. Aqueles que procuram viver este amor incondicionado pelo Pai e por seus semelhantes, que participam do mesmo Corpo de Cristo na Eucaristia, constituem a Igreja. Daí a Encíclica poder afirmar: “Toda a atividade da Igreja é manifestação de um amor que procura o bem integral do ser humano”. A própria história da Igreja comprova esta afirmação pela instituição do diaconato já em seus primeiros anos, pela assistência aos mais pobres e excluídos da sociedade, pelas inúmeras obras assistenciais e educacionais criadas para socorrer os mais carentes. Poderíamos mesmo acrescentar o trabalho eclesial com os aidéticos, com os drogados, com os migrantes em nossos dias.

Realmente é no exercício da caridade que a Igreja revela a si própria como o sacramento da salvação de Deus para a humanidade. Ela deve testemunhar em sua ação caritativa o amor gratuito de Deus e deixar transparecer para a sociedade o Deus em quem acreditamos e por quem somos impelidos a amar. Toda a evangelização, a administração dos sacramentos, os grupos apostólicos, as estruturas institucionais, ganham sentido quando contribuem para uma maior vivência do amor fraterno. Não bastam, contudo a organização e a competência profissional. Faz-se mister dar amor, pois o ser humano quer ser reconhecido em sua dignidade, ele precisa do que a Encíclica caracteriza como a “atenção do coração”, insistindo que os agentes assistenciais se preocupem com a “formação do coração”.

A Encíclica aborda ainda a relação entre a caridade e a justiça. Naturalmente não compete à Igreja implantar a justiça na sociedade, função do Estado, já que é uma tarefa política. Mas a longa seqüência de documentos, que constitui a Doutrina Social da Igreja, demonstra sua responsabilidade em orientar a razão humana e formar a consciência moral dos cidadãos. Pois a razão deve ser purificada devido à cegueira ética provinda do interesse e do poder que a deslumbram, para usar termos da própria Encíclica.

A Encíclica Deus é amor cai como uma chuva abençoada numa terra seca e dura. A sociedade onde hoje vivemos se caracteriza pela descrença nos sonhos que acalentaram nossos antepassados, pelo ceticismo diante dos objetivos humanitários globais, por uma cultura que privilegia o individualismo e o egoísmo, o consumismo e o materialismo. Como conseqüências aí estão as gritantes desigualdades sociais, as injustiças contra os mais fracos, os ressentimentos raciais, as violências de todo tipo, a insegurança generalizada, o terrorismo. Não é de admirar que o medo domine hoje a humanidade e que o futuro seja pressentido ameaçante por nossos contemporâneos. Como ganhar razões que nos estimulem a melhorar o mundo? Como recuperar o comprometimento otimista do passado? Como justificar as micro-atividades na impotência de uma macro-solução? Como continuar a fazer o bem num contexto onde reina o egoísmo?

Todas estas questões encontram resposta nesta Encíclica. O atual pontífice revela, como dizíamos no início, não só profundo conhecimento da fé cristã, mas ainda acurada sensibilidade pela perplexidade geral que hoje experimentamos. A Encíclica termina de modo muito feliz apresentando a Virgem Maria como modelo autêntico de vida cristã pela sua união com Deus, pela obediência a sua Palavra e pela caridade fraterna que caracterizam sua existência. Naturalmente este breve resumo não reflete toda a riqueza deste documento que só se desvelará aos que o lerem e meditarem em seus corações.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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