dom Seb crianças tragedias

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1. “De lágrimas consomem-se meus olhos (…) enquanto pelas ruas da cidade desfalecem crianças e lactentes” (Lm 2, 12)

Sabemos que Lamentações surgiram de cerimônias de lamento que se davam nas ruínas do grandioso templo de Jerusalém. São poemas de dor e luto pelo desastre da nação, reduzida a serva do império babilônico e em seguida persa. Devem datar da época do século VI antes de Cristo, tempo que corresponde ao exílio de hebreus em Babilônia. A Bíblia grega, Septuaginta (dos Setenta sábios), liga esses cânticos fúnebres ao profeta Jeremias. Os especialistas, porém, descartam essa autoria. Talvez a atribuição ao profeta venha da leitura de 2Cr 35, 25. Além disso, a figura de Jeremias se tornara simbólica e emblemática, tinha sido o profeta da destruição de Jerusalém  e do templo (cf. Jr 7) e a situação a que se alude nos poemas tem tudo a ver com o que presenciara naquele trágico momento de desgraça nacional (cf. Jr 29, 15-23; 39, 4-10; 52, 4-11). Também pode ter contribuído a memória das “confissões” de Jeremias, que foram redigidas em tom de lamentação (cf. 8, 18-23; 9, 9-21; 10, 17-25; 15, 1-21; 20, 7-18). Algum grande poeta anônimo buscara interpretar os acontecimentos e os sentimentos do povo, interessado por manter-lhe acesas a fé e a esperança.

Ao retomar  esses poemas, surpreendemo-nos com sua tremenda atualidade. Há, semelhante ao de antes, um império que se gloria de seus feitos memoráveis. Só que hoje em dia o império se torna realmente mundial, global. Do mesmo modo, a “grande Babilônia” se acha embriagada (cf. Ap 17, 2-7; 18, 3.6). Assombroso progresso científico e tecnológico, e consumo sem limites a embriagam de poder quase divino (cf. Is 47). Mas sobre ela já se pode ouvir o ruído dos cânticos de lamento (cf. Ap 18, 9-24; Is 13,1- 14,23; 21, 1-10; 47). É que a morte ronda a nossa volta e até o planeta está sob ameaça de perecer.

A tragédia é que todo esse progresso que parece “limpo” e “civilizado”, na verdade, é como vendaval arrasador. Só se sustenta sobre incontáveis vítimas das guerras. Pensemos nas guerras atuais, assentadas sobre poços de petróleo a preço de vidas humanas, ou  na exploração de minérios preciosos, particularmente da África; pensemos nas vítimas da escassez de água, resultado de desmatamento irracional, da poluição por tantas causas, e do envenenamento do solo; pensemos nas vítimas da fome quando tem gente que até chega a morrer por excessivamente saciada; pensemos nas quase vinte e cinco mil pessoas que, diariamente, morrem de fome ou de suas conseqüências, em diversas partes do planeta, e muitas dessas, naturalmente, são crianças; pensemos em enfermidades já vencidas em países ricos e que, no entanto, continuam a matar milhões, mundo afora; pensemos em tanta gente a cada dia assassinada em meio ao tráfego de veículos, particularmente nos chamados “países emergentes” (“emergentes” a quê?); pensemos na grande massa de jovens a sucumbir sob o peso das drogas e à freqüente violência que as segue, em nossas cidades “inchadas”… Povos inteiros se sentem exilados em seus próprios países.

É até difícil avaliar a profundidade que atinge esse sentimento de exílio e desenraizamento. Baste pensar no que tem ocorrido nos países da Ásia, da África e de nossa Afroameríndia. Em cinqüenta anos fomos levados(as) a fazer o processo que a Europa levou séculos para percorrer, a saber, passar de países rurais a prevalentemente urbanos. Não se pode nem imaginar a dimensão da crise social e cultural que se tem abatido sobre nossos povos. Quebram-se todos os paradigmas e padrões tradicionais. Dissolvem-se laços de relações sociais, de família, de vizinhança, de região e até de povo e país. Despedaçam-se valores que dirigiam e ordenavam a vida, de ordem religiosa, de moral, de instituições e de costumes. As pessoas perdem o rumo, tem-se a impressão de que já não há direção a seguir, já não se sabe o que vale e o que não vale, o que é bom e o que é mau. Daí decorrem inúmeras situações, pessoais e coletivas, de depressão, de sentimento de “anomia” (ausência de lei), de falta de sentido da vida, tudo se torna superficial nas relações entre as pessoas (individualismo) e com as coisas (consumo desbragado). Já não há valores éticos, objetivos finais, só se valorizam instrumentos e meios (tecnologia) sem saber bem a que servem (finalidades). Não é de estranhar que esse afrouxamento de vínculos sociais e culturais desencadeie espantosas patologias, o lado sombrio das pessoas vem à tona e manifestam-se sem freios taras, ânsia por droga, agressão, violência, imposição do próprio poder, redes de criminalidade…

As imagens bíblicas para caracterizar a marcha de exércitos antigos continuam plenamente atuais (cf. Jl 2, 1-9).Só mudaram em aparência. Agora aviões e mísseis nos dispensam de dizer que foram nossas mãos que trucidaram o inimigo, trata-se apenas de “sucesso da operação”. A morte se reduz quase a “efeito secundário”, nossas mãos se sujam sempre menos de sangue. Cada vez é maior e mais precisa a capacidade técnica de atingir o alvo que quase nos esquecemos de que o alvo é matar e matar seres humanos, sobretudo pobres.

Na destruição da cidade santa (santas são todas as cidades, mulheres e homens não somos todos imagem e templo de Deus?) era especialmente dilacerador constatar a sorte das crianças, como nos referem Lamentações:

“De lágrimas consomem-se meus olhos, de tremor minhas entranhas, por terra derrama-se meu fígado por causa da ruína da filha de meu povo, enquanto pelas ruas da cidade desfalecem crianças e lactentes. Perguntam  a suas mães: “Onde tem pão?” enquanto como feridos desfalecem pelas ruas da Cidade, exalando sua vida no regaço de sua mãe” (2,11-12).

“Levanta-te, grita de noite, no começo das vigílias; derrama teu coração como água diante da face do Senhor; eleva a Ele tuas mãos pela vida de teus filhinhos que desfalecem de fome na entrada de todas as ruas. Vê, Senhor, e considera: a quem trataste assim? Irão as mulheres comer o seu fruto, os filhinhos que elas mimam? Acaso se matará no santuário do Senhor sacerdote e profeta? Jazem por terra nas ruas jovens e velhos, minhas virgens e meus jovens caíram sob a espada; tu os mataste no dia de tua ira, sem piedade os imolaste” (2, 19-21).

“Como se escureceu o ouro, alterou-se o mais puro ouro! As pedras sagradas foram espalhadas pela esquina de todas as ruas. Os mais preciosos filhos de Sião, avaliados a preço de ouro fino, são reputados como vasos de argila, obra das mãos de oleiro! Até os chacais dão o peito, amamentam suas crias. A filha de meu povo tornou-se cruel como os avestruzes do deserto. A língua do lactente colou-se de sede ao seu palato, as criancinhas pedem pão, ninguém que lho reparta. Os que comiam iguarias desfalecem pelas ruas; os que se criaram na púrpura apertam-se no lixo“(4, 1-5).

“Mais felizes foram as vítimas da espada do que as da fome, que sucumbem esgotadas por falta dos frutos do campo. As mãos de mulheres bondosas fazem cozer seus filhos, eles serviram-lhes de alimento na ruína da filha de meu povo” (4, 9-10).

Será difícil perceber nesses textos algo como um espelho do que está a acontecer hoje entre nós: crianças nas ruas, sem lar e sem pão, a desfalecer no regaço de suas mães? E pensar que inumeráveis delas não têm nem mesmo esse colo materno onde morrer. A extrema carência das famílias e a precária condição de vida levam as crianças a perambular pelas ruas das cidades e  desfalecer de fome, pior ainda, é como se a fome as devorasse. Hoje já há milhares de lares chefiados por crianças entre dez e doze anos. O que seria o mais precioso para o futuro do povo vão vale mais que simples vasos de barro. Mulheres esgotadas são como fontes que se tornaram secas, de peitos caídos, já não têm como amamentar. A língua das crianças cola-se ao paladar, só se acha alimento no lixo.

A maneira como tratamos crianças e pessoas idosas, os dois elos mais frágeis da cadeia, diz bem de nossa qualidade humana e julga qualquer civilização. Já não parece haver lugar para crianças e pessoas anciãs, já não se tem tempo para cuidar e atendê-las, os espaços residenciais se estreitam e não as cabem mais. Tão diferente do jeito de Deus de quem se diz que cuida de nós com o carinho com que se deve cuidar de crianças, como se fala belamente no Salmo 131 e em Oséias 11, 1-4.

2. “Deus ouviu os gritos do menino, do lugar onde ele está” (Gn 21, 17)

A crueldade do poder, expressa na Bíblia na matança das crianças por ordem do Faraó (cf. Ex 1, 15-22) e de Herodes (cf. Mt 2, 13-23) é emblemática. Não é por acaso que a trajetória histórica do Povo de Deus  comece justamente com a luta para salvar a vida das crianças. Quatro mulheres se destacam e seus nomes foram lembrados para sempre: as parteiras, a mãe e a irmã de Moisés no Egito (cf. Ex 1, 8 – 2, 10). Genesis nos fala de Agar no esforço  desesperado de salvar a vida de seu filho Ismael (cf. Gn 21, 1-21). Finalmente é a vida de Isaque, ameaçada até pela religião, que é poupada por Deus (cf. Gn 22, 1-14). Nos textos proféticos adquirem particular relevância episódios de redenção da vida de crianças, como se pode ver com os profetas Elias e Eliseu, figuras de Cristo (cf. 1Rs 17; 2Rs 4). O mesmo se vê, com ainda mais  ênfase, nos relatos evangélicos: Jesus levanta a filhinha de Jairo (cf. Mc 5, 35-43), liberta a vida da filha da mulher fenícia (cf. Mc 7, 24-30), livra do poder diabólico e levanta o menino que lhe é trazido pelo pai em desespero e “jaz como morto” (cf. Mc 9, 14-29), arranca da morte o filho único de uma viúva (cf. Lc 7, 11-17).

As crianças órfãs são particularmente vulneráveis, junto com suas mães viúvas. A Lei busca protegê-las mediante a assistência do clã (cf. Ex 22, 21; Dt 14, 29; 16, 11.14; 24, 19-21; 26, 12s; 27, 19; Pr 23, 10). A insistência da legislação denota uma situação real: o estabelecimento da monarquia, a concentração de terras e a busca de maior produtividade pelo uso do boi na aragem do solo, deve ter provocado crise social generalizada, com o enfraquecimento das estruturas do clã e o aparecimento de indigentes e até escravos (cf. Ex 21). Após o exílio, o Livro de Jó nos fala da terrível situação dos  órfãos: abandono e exploração (cf. 29, 12; 31, 16-21; tomada de seus bens (cf. 24, 2.9), levados a leilão (6, 27).

É nesse contexto que se deve compreender a insistência dos escritos proféticos em sua defesa como um dos critérios fundamentais de fidelidade a Deus: é bastante consultar os profetas Isaías (1, 17.23; 10, 1-2) e Jeremias (5, 26-29; 7, 5-6; 22, 3.15-17). Nos salmos, Deus é “o socorro dos órfãos” (10,14), mais ainda, é “o pai dos órfãos” (68, 6), a Ele se invoca sua proteção (82, 3), são designados como “herança de Deus” humilhada e massacrada (94, 5-6). Ao descrever o rosto do verdadeiro Deus, o Salmo 146 declara que o sustento de órfãos e viúvas é um de seus traços característicos (cf. v.9).

QUESTÕES PARA REFLETIR E COMPARTILHAR

1. Que sabemos da situação de nossas crianças, nas cidades e nos campos do país? Que tal fazermos uma pesquisa para tomar conhecimento das estatísticas atuais a respeito da condição das crianças em nosso país e no mundo?

2. Será que ainda nos vem o pensamento de que tem de ser assim mesmo, que é porque Deus o quer, ou porque se trata da necessária condição para o progresso da humanidade?

3. Com estatísticas e notícias em mãos, não seria mais fácil perceber como a causa da situação está no sistema da economia, na situação social, nos projetos políticos e na cultura da sociedade mundial? Podemos fazer um esforço e identificar essas causas?

4. O que temos feito de ações concretas para, com a força de Deus (oração) e da comunidade (solidariedade e organização do povo) mudar essa situação?

3. “Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele” (Mc 10, 15)

Para Jesus, as crianças ocupam o centro do Reino, e fala disso de maneira muito radical. Acolher as crianças, preocupar-se com elas, é receber a Ele mesmo e, assim, receber o próprio Deus (cf. Mc 9, 36-37). É do mesmo jeito que fala do julgamento final, quando se identifica com pobres e excluídos, os “mais pequeninos” (cf. Mt 25, 31-46). Sabemos como as crianças eram consideradas sem valor na época de Jesus, e até portadoras de certa impureza legal, por sua incapacidade de conhecer a Torah (Lei).

Jesus, porém, dá um passo adiante, ainda mais radical. Não basta receber a Deus nas crianças que se acolhem. É preciso mais: só recebe o Reino de Deus e nele entra quem se torna como as crianças, isto é, “o menor de todos” (cf. Mc 10, 13-16; Mt 18, 1-4; Lc 9, 46-48). Muda-se completamente o ponto de referência. Nós, as pessoas adultas, é que temos de aprender a ser como as crianças e imitá-las. Por isso, a relação com as crianças, “os pequeninos” – de acolhida e de aprendizagem —  é o critério supremo de julgamento  da autenticidade da fé no Cristo. Escandalizá-las, isto é, opor-lhes obstáculos no caminho, é tornar-se réu do pior castigo (cf. Mc 9, 42-50; Mt 18, 5-11). Doutro lado, qualquer gesto de alívio e proteção aos pequeninos, nem que seja um simples copo d’água, não ficará sem resposta de Deus (cf. Mc 9, 41; Mt 10, 42).

Ao propor como ideal o modelo tribal igualitário onde não deve haver indigentes nem pessoas ao abandono, o Primeiro Testamento associa frequentemente, como leitmotiv, o órfão, a viúva, o estrangeiro e o levita, gente sem terra e sem proteção. Todo o clã devia assumir a responsabilidade por sua defesa e manutenção. Nos evangelhos, as crianças estão associadas às categorias desprezíveis e “menores”: as mulheres (cf. Mc 9, 33—10, 16); os servos (cf.Mc 9, 33-37; 10, 35-45; Mt 18, 1-4; Lc 9, 46-48), os pobres e excluídos (cf. Mc 10, 13-31).

QUESTÕES PARA REFLETIR E COMPARTILHAR

1. Como temos tratado as crianças, como as incluímos e admitimos a participar?

2. Dedicamos tempo, temos paciência de escutá-las e com elas dialogar?

3. Que quer dizer para nós “educar” crianças, guiá-las a viver autenticamente a liberdade, ou simplesmente impor-lhes nossos critérios e hábitos?

4. Temos tido abertura para aprender com elas?

4. “Uma criança os guiará” (Is 11,6)

Finalmente, no conjunto da Bíblia, a solução para os problemas da convivência humana vem das crianças e do chamado que nos fazem para nos tornarmos como elas.

O profeta Isaías viveu intensamente, no século VIII antes de Cristo, o grave momento político de ameaça do império assírio sobre o país. O rei Acaz punha toda a sua confiança no dispositivo militar. O profeta, ao contrário, certamente com os olhos voltados para muito além de seu tempo, estava convencido de que a salvação do povo não vem do militarismo. Não são armas mais potentes que anulam a força de outras armas para, assim, estabelecer a paz. Só haverá paz – “xalôm”, felicidade, harmonia universal — quando formos como crianças. Essa, a definitiva revolução.

Já o profeta Amós havia analisado a situação dos países em torno de Israel e no próprio Israel  e em Judá. O sistema das cidades-estado, chefiado pelos príncipes, fundado no tributo de camponeses e pastores, e garantido pelo dispositivo militar concentrado nas fortalezas, só resultava no incêndio constante de toda a região (cf. Am 1-2). Só haveria paz com a destruição do aparato militar, é o que se nos diz expressamente em cap. 2, 13-16. É o que vão dizer vários profetas depois dele (cf. Os 2, 20; Is 2, 1-5: Mq 4, 1-5; Zc 9, 9-10). E ainda continuamos longe do desarmamento…

Para alertar o rei Acaz e mostrar-lhe como é vão pôr a esperança no militarismo para salvar o povo, Isaías escreve o chamado “Livro do Emanuel”, nos capítulos de 6 a 12. Se os lemos com atenção, achamos a cada passo a menção da criança. A “semente santa” que garante a continuidade da nação é apenas como “um toco” de árvore derrubada (6, 13). O sinal a indicar o futuro é que  “uma jovem  concebeu e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel” (7, 14; cf. 7, 15-16). A profetisa, esposa do profeta, lhe dá um filho, cujo nome deverá ser “Rápido-Presa-Pressa-Saque” , sinal de invasão, dificuldade e ruína (8, 1.3.9-10.18). A grande esperança  é que “um menino nos nasceu, um filho nos foi dado”, com ele se pode estabelecer a paz (cf. 9, 1-6.16). Em meio ao desastre restará um menino para contar o que restar, ele é que será  a semente do “resto” que já não se apoiará em alianças militares imperialistas e ilusórias (“apoiar-se sobre aquele que o fere”) (cf. 10, 19-21). Finalmente, a fonte da paz é “um rebento que brotará das raízes” (o toco), a harmonia universal, sociopolítica e ecológica, será possível porque “uma criança os guiará” (cf. 11, 1-9).

Para Jeremias (cf. Jr 23, 1-6) e Ezequiel (cf. Ez 34, 23-31) a esperança é o “novo Davi” que já não é descrito como o grande representante da monarquia de Jerusalém, mas como pastor de Belém, filho das tribos, filho ainda criança de Jessé, imagem do “poder popular” (cf. 1Sm 17, 32-54) que suplanta a desastrada e opressora monarquia, criada por adultos e em proveito de grupos privilegiados entre eles, como se sugere em 1Sm 11 (cf. 1Sm 8; Jz 6, 15;  9, 7-15; 1Rs 3, 7). A mesma sugestão se acha no profeta Miqueias, cap. 5. O próprio Jeremias, ao sentir-se chamado a profetizar, em momento crucial da vida da nação, entre a ameaça do império assírio e do babilônico, sente que não passa de criança, mas é assim que será “cidade fortificada, coluna de ferro, muro de bronze” (cf. Jr 1, 6-7. 18). O apóstolo São Paulo, muito tempo depois, vai se definir como “o menor” (cf. 1Cor 15, 9; Ef 3,8). Jesus havia dito que “o menor no Reino de Deus será maior do que João Batista” (cf. Mt 11, 11). A comunidade a serviço do Reino se faz com o que no mundo é “vil e desprezível” (1Cor 1, 28) . É que tudo começa com “a menor de todas as sementes” (cf. Mc 4, 30-32; Mt 13, 32).

O precioso livrinho de Rute, escrito depois do exílio em Babilônia, se conclui com a         cena em que o povo transborda de alegria porque “nasceu um filho a Noemi, e chamaram-lhe Ebed. Ele foi o pai de Jessé, pai de Davi”. Um “Davi” que simboliza novos tempos por sintetizar em si a criança e o servo (ebed) (cf. Rt 4, 11-22).

5. “Um recém nascido envolto em trapos” (Lc 2, 12)

Os evangelhos de Mateus e de Lucas, nos capítulos 1 e 2, nos apresentam justamente isto: o nascimento da criança que cumpre toda a expectativa que o povo tem carregado por séculos, sobretudo a esperança dos pobres “que aguardavam a consolação de Israel”. Zacarias e Izabel, José e Maria, Simeão e Ana, pobres pastores e ilustres sábios de longe… são figuras representativas de quem se abre a acolher a criança como solução. Não esperam nem do rei Herodes, nem do César, imperador de Roma; “Senhor e Salvador” (títulos imperiais) é “uma criança envolta em trapos e deitada numa manjedoura”. Os cânticos de Zacarias, de Maria e de Simeão explicitam o sentido desse grande momento. A chegada da criança é o sinal maior daquilo que os profetas anunciavam: a libertação e o estabelecimento do xalôm (felicidade) só acontecerão quando o poder estiver nas mãos da criança, essa é que será o novo pastor do povo, o “novo Davi”, o menor dos filhos de Jessé, não o famoso rei de Jerusalém, mas o pastor de Belém, solidário com o projeto igualitário das tribos, ou seja, sinal do “poder popular”. É por isso que Jesus nasce em Belém, entre pobres pastores.

Finalmente em Apocalipse, temos a apoteose, a criança é a definitiva solução. A mulher, que representa o povo da luta e da resistência, dá à luz o filho que “regerá todas as nações”. A luta porém continua, ainda é preciso vencer o “deserto”e derrotar o “dragão”, mas seu trono divino já está garantido, mesmo que o dragão continue a perseguir o povo que  luta e “guarda o testemunho de Jesus” (cf. Ap 12). A consolação do povo é a certeza de vitória na fé.  A criança, na verdade, se identifica com a própria Palavra de Deus, criadora do mundo, o “filho“ vencedor de toda injustiça e entronizado para estabelecer nova ordem sobre as nações. Por isso, tem em sua boca a espada, capaz de operar na história humana o definitivo discernimento entre bem e mal, justiça e injustiça (cf. Ap 19, 11-21; Hb 4, 12-13).

Enfim, pode acontecer o que as profecias também anunciavam: a reviravolta da sorte das crianças, como o fim da mortalidade infantil, que é especial sinal da grande transformação messiânica, o futuro do povo está assegurado, “já não haverá criancinhas que vivam apenas alguns dias” (Is  65, 20). Anciãos e crianças de novo terão lugar em nossas cidades: “Velhos e velhas ainda se sentarão nas praças de Jerusalém  (cada uma de nossas praças é Jerusalém), cada qual com seu bastão na mão por causa da idade avançada. E as praças da cidade encher-se-ão de meninos e meninas que brincarão em suas praças” (Zc 8, 4-5). O poderoso Nome de Deus será proclamado pelas crianças, até pelos bebês, precioso louvor,  como firme fortaleza frente a adversários (cf. Sl 8, 3). Segundo o evangelho de Mateus, são as crianças que identificam Jesus como “Filho de Davi” (cf. Mt 21, 15-16; segundo Lucas são os discípulos que louvam a Jesus: quem sabe está subjacente aqui a relação apontada antes entre as crianças e os “pequeninos”, como se vê em Mc  9, 41ss) e assim incomodam  os chefes dos sacerdotes e os escribas, algo parecido com a célebre história do rei vestido de suposta túnica, que a todo o povo iludia, até que um menino é o único que tem a espontaneidade de gritar: “O rei está nu”, sem máscaras. Só a criança o percebe.

QUESTÕES PARA REFLETIR E COMPARTILHAR

1. Já tomamos consciência de que nossa relação com as crianças depende da visão que temos do lugar dos “pequeninos” na sociedade?

2. A visão bíblica é de que a solução para os problemas humanos vem das crianças, dos “pequeninos” e de nossas relações com eles. Como compreender isso hoje em nossa sociedade?

3. Que estamos fazendo de concreto para tornar realidade essa proposta que nos vem da experiência e do testemunho da Palavra de Deus?

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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