deborah 01

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“Yolanda, não mexa nisso aí!” Era esta a expressão mais bem dita por Ana Maria, a ponto do papagaio, “Coca”, dizê-las adicionalmente com a finalidade de tornar tudo um pouco mais cansativo. Cansativo é a palavra que descreveria a semana de Ana Maria, pois nem no domingo, após eternas horas de trabalho, Yolanda lhe sucedia qualquer descanso. Certa vez, no mercado, ao selecionar as três melhores maças das quais exatamente constatava os seus últimos 25 centavos, um senhor, de mais ou menos 60 anos e, sentado, lhe puxava a camiseta, olhando-a de baixo para cima: “Você quer comprar?” ele apontava para alguns dos hamsters que estavam ao seu lado, dentro de uma caixinha de papelão, pequeninos e de cor acinzentada, não eram daqueles que pareciam ratos (o rabo rosado e extenso lhe apavorava) não, esses eram diferentes. Ana, subitamente, imaginou sua vida depois de entregar um destes hamsters a Yolanda… Sossego. Sim, é verdade. Ela iria dar toda a atenção ao bichinho, tratá-lo como o seu próprio filho e… Bom, se nada der certo, o hamster vai acabar fugindo da gaiola e ter tomado, acidentalmente, um banho de sol efervescente. Docemente, Ana Maria revigorou esperanças da qual não fosse preciso chegar à situação B. Entregou-lhe os seus últimos 25 centavos e, por ora, se sentiu aliviada por não ter lanchado àquela tarde.

“Cassandra! Ela se chamará Cassandra, mamãe.” “Ótimo, como quiser.” “Obrigada, eu amei.” Yolanda sempre se mostrou deveras criativa, ao imaginar, realizava representações com o maior orgulho, dizia até mesmo que quando crescesse se tornaria professora de teatro. É claro que Ana Maria desencorajava essa ideia. “Onde já se viu? Professora de teatro! Morrerás de fome!” Yolanda, em silêncio, concordava, mas algumas vezes se castigava por retomar esses desejos em sua mente. Embora permanecesse sem a precisão de compartilhar este pensamento, ela sentia que estava mentindo para si mesma. Pobre Yolanda: desperdiçando vocação artística, em plena extinção…

Durante todo o dia brincava com o seu hamster, cuidava dele, trocava diversas vezes a água, despejava diariamente os pozinhos de sais para o banho… “Viva! Dedicação integral! A melhor ideia que eu já tive”, dizia Ana Maria. Com o tempo, Yolanda tornou a perceber que um hamster não tem muitas distrações: ou brincando naquela rodinha roda-gigante, ou entrando numa casinha minúscula, ou… Só. Iria para os seus braços, andava um pouco fora da gaiola, mas só. “Que vida chata!”, contestava Yolanda. “Ela não pode fazer nada, nem jogar vídeo game, deve sofrer tanto a coitada…” Então ela pensou, pensou e logo se deu ao encontro de mais uma de suas fabulosas invenções.

Enquanto Ana Maria lavava a louça, percebia que Yolanda saía correndo do quarto: para a varanda, do quarto para a varanda, e, por vezes segurando uma cartolina, outras alguns hidrocores, lápis de cor. “Mãe, cadê aquela caixinha sua que você guarda na gavetinha? Comé, Rivotril?” “Qué isso menina! Pra que você quer o meu remédio para dormir?” “Não mãe, quero só a caixa!” “ah, sim… não tenho nada não! Ora” Então ela prosseguiu à rotina, com mais algumas caixas vazias de remédio.

Yolanda teria construído o que ela chamava da Cidade de Cassandra. Explica-lhe da seguinte forma: “É fácil, mamãe, eu estendi a cartolina branca, prendendo com alguns pesinhos, certo? Desenhei essa estrada aqui ó, tá vendo só? Pintando as riscas de amarelo… Criei buraquinhos na caixinha de remédio, para que, claro…Como a senhora esperava que Cassandra iria entrar nas Lojas Americanas? Então, eu escrevi para que ela soubesse onde estava indo: o shopping, o bompreço, a farmácia (caso sentisse dor de cabeça), banheiro (nesse aqui eu coloquei um pouquinho da areia dela, mas estava limpinha, viu?) e aí eu escrevi aqui, vê só, o Atacado dos presentes e… Enfim, colei as caixinhas em pé e ela poderá visitar cada uma delas. Podendo ir ao shopping sempre, Cassandra fica mais feliz, né mamãe? Que nem a senhora quando volta de lá” Ana, impressionada com tudo, acariciou os cabelos de sua filha e, com um terno sorriso, disse “Está lindo, filha”. Logo então, saiu, deixando que Yolanda brincasse um pouco mais.

Era tarde, pouco antes da hora de dormir, deveria acordar cedo. Tanto trabalho logo cedo! “Yolanda, volte já, vamos dormir. Dê boa noite à Cassandra” “Certo, mamãe.”.

“Boa noite, filha” Despedia-se, logo após dar-lhe um abraço e cobri-la. “Mãe?” “Sim?” “Por que Cassandra gosta mais de ir ao supermercado que ao shopping? Diversas vezes tentei colocá-la no shopping e ela não entra” Ana Maria sorriu, é claro que não iria conseguir entrar naquele buraquinho minúsculo da caixinha que ela havia o feito. “Ah, Yolanda… Vai ver ela não achou o que procurava lá” “E encontrou no supermercado?” “Sim” “É… Faz sentido”. Ana Maria então lhe deu um beijo e forte abraço, desligou as luzes e foi direto para o seu quarto dormir. Dessa vez, dessa vez ela dormiu, tão logo pôs a cabeça no travesseiro.

 Obs: Autora do livro “23 horas e 03 minutos” – Editora Confraria do Vento.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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