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A nossa memória olfativa é fantástica, os aromas nos levam aos mais distantes rincões.

Hoje, quando sinto o cheiro do milho cozinhando, volto no tempo. Lembranças agradabilíssimas vem à tona. Lembro do quanto papai gostava de milho cozido e de tomar o caldo.

Preparar as comidas de milho era e continua sendo um verdadeiro ritual. Pois congrega todos da família, são trabalhosas e tem que ser bem cozidas, para que atinjamos o  objetivo maior, a satisfação de todos que vão participar desse banquete típico das mesas nordestinas, nessa época tão pródiga, tão farta, o Santo Antonio, São João e São Pedro.

Comida forte, rica em carboidratos e que dá sustância. Trazida pelo nossos irmãos africanos. Saída da senzala para a mesa da casa grande.

Lá em casa quando éramos crianças e adolescentes, já amanhecíamos na véspera de São João cada um com a sua tarefa, de acordo com a idade.

Primeiro passo descascar o milho com cuidado para aproveitar as melhores palhas para fazer a pamonha. Isto requeria habilidade e experiência. Antes quando éramos menores só mamãe fazia. Depois tirar os cabelos do milho, tarefa dos menores. Cotar  o milho, ou seja tirar os grãos do sabugo, dos maiores. Em muitas casa o milho era ralado, na nossa não. Depois era passado na máquina manual. Aí era entregue a mamãe que ia peneirá-lo e separar a massa para fazer a pamonha, cujas palhas de milho já estavam sendo devidamente escaldadas, para em seguida serem colocadas para escorrer e esfriar.

 A massa para pamonha era mais grossa. A massa mais fina (líquida) que escorria máquina abaixo, aonde um recipiente já esperava este líquido, era reservado para fazer a canjica, que requeria um processo de cozimento que levava horas, para ficar bem cozida e não queimar no fundo da grande panela. Cada um de nós mexíamos por 30 minutos e assim íamos revezando. Quem estivesse em casa que tinha vindo passar o São João conosco, colegas de colégio, Yolanda a nossa amiga paraense, também ajudava a mexer, até os namorados que aparecessem naquele momento tinham também a sua meia hora de quentura no fogão.

Todo o sucesso das nossas comidas de milho se deviam a grande quituteira que mamãe era e é. Só ela é quem fazia e até hoje eu a consulto quando vou fazer canjica e pamonha de forno, pois nunca a fiz na palha, requer muita habilidade. Em umas casas as palhas são costuradas na máquina, aqui em casa não. Mamãe utiliza uma espiga de milho bem gordinha, para dar forma a pamonha. Envolve  as palhas no milho, amarra a extremidade inferior, tira o milho de dentro, fica tipo um copo, aí coloca o líquido mais grosso,  devidamente peneirado e saborosamente temperado, amarra a extremidade superior e vai colocando em um grande caldeirão, cuja água já está fervendo, é aquela que foi utilizada para escaldar as palhas do milho. A casa já começa a ser invadida por aquele adorável aroma.  Perfume este que nos estimulava a mexer a canjica com todo o cuidado, para podermos ser premiados com a panela para raspar o resíduo que ficou, depois da distribuição nas travessas apropriadas.

 Tínhamos também o milho cozido, cujo preparo é muito simples. Forra-se o funda da panela com as palhas do milho abertas. O milho é passado ligeiramente no ralo e vai sendo colocando na panela, por último coloca-se mais palha de milho, depois a tampa.

Outras delícias características daqui de casa, são os bolos feitos de massa de mandioca úmida. Na Bahia não se chama massa de mandioca e sim carimã. É costume de lá, nas ruas, nas festas de Igreja, nas feiras, venderem mingaus, de carimã, milho verde, tapioca, como chamam lá (goma) e às vezes de aveia. Estes mingaus, em especial o de milho verde e de carimã são deliciosos. São  servidos em copos com canela, para quem gosta. Tem sempre uma baiana vestida de branco, a mesa forrada com toalha branca, os caldeirões brilhando, cobertos com panos  branquinhos com bicos bordados. É um hábito de  manhã cedo. Quando vamos caminhar já levamos dinheiro, para tomar o mingau, já faz parte da caminhada. Depois da África Salvador é o local  onde existe mais afro-descentes, assim estes costumes são muito arraigados.

Tanto o bolo de massa de mandioca, como o pé de moleque de mamãe são únicos. Minha cunhada diz que não existe igual. O pé de moleque enfeitado com castanhas, previamente escolhidas, dão um visual lindo e apetitoso ao bolo.

Todas estas iguarias já citadas são temperadas com os mais genuínos ingredientes nordestinos: leite de coco tirado na hora, manteiga, açúcar, mascavo para o pé de moleque, que dá aquela cor escura, açúcar cristal para as demais iguarias e o sal, para dar o equilíbrio. Pois tanto nas comidas de milho, como nas de massa de mandioca, os sabores do açúcar e do sal tem que ser nítidos e equilibrados.

   Imaginem a mistura de todos esses aromas, há memória que possa esquecer. A memória visual não pode ser relegada. A mesa rica de tantas iguarias, fica bela, com aquela toalha junina. Não podemos esquecer aquele café quentinho para acompanhar tudo isso.

Às 18h é a hora de acender a fogueira, tarefa realizada normalmente pelo pai da casa, ficávamos junto de papai para vê-lo realizar a simbologia do nascimento de São João, conforme Santa Isabel combinou com Nossa Senhora quando o menino nascesse, São João. O fogo, fogueira,  significam, anúncio, aconchego.

 Depois da ceia, vinha a sessão dos fogos, normalmente soltados pelo adultos, era tarefa de papai. Para nós crianças, cabia apenas traque de massa, ou de sala, para os menores,  estrelinhas e cobrinhas para os maiores. Os fogos são sempre muito perigosos e requerem muito cuidado.

  E vamos à mesa, a festa culmina ao redor da mesa, como todos os eventos importantes da vida. A mesa fica servida para quem chegasse. Comer é um ato de comemoração e festa. (Junho de 2015)


Suely Telma Vieira Costa ( Lila Costa)   é Membro da Academia  Escadense de Letras – AELE e da Academia Morenense de Letras e Artes – AMLA.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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