Parte III –“DEIXAI-VOS RECONCILIAR COM DEUS” (2 COR 5,20)
Situando-nos
Quarenta dias antes da Páscoa, a Igreja inaugura solenemente o tempo forte de conversão – a Quaresma – em preparação à celebração da Páscoa: é a Quarta feira de Cinzas.
Neste dia, após a Liturgia da Palavra, na qual se proclama, no Evangelho, a recomendação de Jesus sobre a oração, o jejum e a esmola, como exercícios de conversão (cf Mt 6,1-6.16-18), realiza-se o rito da imposição das cinzas, sinal de penitência, no sentido de conversão. Reconhecemos a nossa condição de criaturas limitadas, mortais e pecadoras. “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15): ouvimos no gesto da imposição das cinzas sobre nossas cabeças. A conversão consiste em crer no Evangelho. Crer é aderir a ele, viver segundo os ensinamentos do Senhor Jesus.
Certamente, não é fácil aceitar ser cinza. Contudo, a fé em Jesus Cristo ressuscitado faz com que a vida renasça das cinzas. Jesus Cristo faz brotar a vida, onde o ser humano reconhece sua condição de criatura necessitada da ação de Deus: é entrar na atitude pascal.
A Campanha da Fraternidade inicia, neste dia, na Igreja do Brasil, com o tema “Fraternidade: Igreja e Sociedade”. E o lema: “Eu vim para servir” (cf Mc 10,45).
Recordando a Palavra
A Quaresma começa, hoje, fazendo ecoar novamente em nossos ouvidos as inquietantes palavras do profeta Joel: “rasgai o coração, e não as vestes” (2,13a). Após descrever a invasão dos gafanhotos, presságio de que está próximo o dia de Javé (2,1), o profeta mostra que, para o juízo de Deus, não basta preparar-se com um rito penitencial meramente exterior (“rasgar as vestes”), que não seja acompanhado do gesto interior de mudança de vida (“rasgar o coração”). É preciso que o ser humano, em sua inteireza, se volte para Deus. Assim, criaremos em nós o espaço para que a graça de Deus nos refaça e nos preencha. Nosso Deus é misericórdia, e toma sempre de novo, a iniciativa de nos perdoar.
Com o Sl 50(51) respondemos à exortação do profeta Joel. Este salmo nos transporta do mundo do pecado para o reino da graça. Confessando-nos pecadores e pedindo o perdão de Deus, começamos a ressuscitar: “dai-me de novo a alegria de ser salvo” (Sl 50(51),14).
Paulo nos convoca, em nome de Cristo, a nos deixar reconciliar com Deus, a não deixar passar em vão a sua graça (cf 2Cor 5,20.6,1). E o Senhor nos diz: ”no momento favorável eu te escutei, no dia da salvação eu te ajudei” (Is 49,8). “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (cf 2Cor 6,2). O movimento da reconciliação começa com a iniciativa divina. Cabe a nós deixar-nos reconciliar com ele.
O Evangelho repete três vezes: “o Pai vê o que está oculto”. Ele sabe o que se passa dentro de nós, conhece nossas verdadeiras intenções e os valores para os quais orientamos nossa vida. A oração, a esmola e o jejum, as “obras de piedade” do judaísmo antigo, são gestos que marcam a nossa experiência com Deus, mas podem ser pura exterioridade, não terem ligação alguma com o nosso coração. O Pai é quem sabe com que intenção eu rezo, faço caridade e jejuo.
Atualizando a Palavra
Tendo escutado com o ouvido do coração a Palavra proclamada na celebração, resta-nos atualizá-la. Entramos em diálogo com Deus, fazendo perguntas que procuram trazer o texto para dentro do horizonte da nossa vida. O que há de semelhante e de diferente entre a situação do texto e a nossa vida de hoje? O que a mensagem destes textos diz para a nossa situação concreta? Que mudança de comportamento sugere para nós, que vivemos no Brasil, em tal região, em tal cidade?
A conversão quaresmal para a qual os textos bíblicos apontam é sempre um caminho de reconhecimento de nossa condição de criaturas limitadas, pecadoras. Conversão é mudança de vida, que consiste em crer no Evangelho, isto é, aderir a ele, viver segundo o ensinamento de Jesus, entrar no caminho pascal de Jesus que é caminho de salvação.
Reconhecer-nos necessitados da ação de Deus em Cristo e no Espírito coloca-nos em uma atitude pascal, faz-nos passar, com Cristo, da morte para a vida.
A conversão quaresmal é também um caminho de amor e solidariedade: quem se converte a Deus, encontra e reencontra os irmãos e irmãs, fortifica-se no espírito fraterno e cresce no aprendizado da misericórdia.
A Campanha da Fraternidade, que celebramos na Quaresma nos estimula a abrir o coração ao que o Senhor pede a cada um de nós em particular e a sintonizar com a realidade social, política, econômica e cultural na qual vivemos.
Em contraposição à Cultura Moderna, caracterizada pelo individualismo, relativismo, fundamentalismo e pelo consumismo exacerbado, que gera a cultura do descartável, “encontra-se em muitos homens e mulheres, crentes ou não, os sinais da formação de uma nova Cultura, que respeita e ajuda a desenvolver a pluridimensionalidade da pessoa humana, sua autonomia e abertura ao outro e a Deus.
Esta Cultura em formação é marcada pelo respeito à consciência de cada um, pela tolerância e abertura à diferença e multiculturalidade, pela solidariedade com todo o criado, a rejeição da injustiça e uma nova sensibilidade para com os pobres” [1].
Uma verdadeira conversão do coração atinge todas as dimensões de nosso ser e repercute em nossas relações com as pessoas, na sociedade em que vivemos, em sintonia com a ação e o anúncio de Jesus Cristo cuja centralidade é o projeto do Reino de Deus: serviço, luta por dignidade, por justiça e igualdade.
Ligando a Palavra com a ação eucarística
Em todas as celebrações litúrgicas, somos desafiados a viver a ligação entre fé e vida. O mistério pascal de Jesus Cristo celebrado na liturgia, ou seja, o mistério de sua morte-ressurreição precisa ser vivido no dia-a-dia, tanto individual como comunitariamente.
Na Quaresma, celebramos a Páscoa de Jesus em cada um/a que se volta ao Senhor de todo o coração e pratica o que é agradável aos seus olhos.
Exortados à reconciliação com Deus, neste início da Quaresma, participamos da mesa da Palavra e da mesa da eucaristia, que nos convidam a nos desprendermos dos nossos bens e dividi-los com os outros.
Trazemos para a eucaristia os acontecimentos da vida, a realidade pessoal e política. A Eucaristia que celebramos é expressão dinâmica do Cristo Ressuscitado e do Espírito vivificador, que está presente em tudo, renova todas as coisas, transforma nossos corações, fazendo-nos buscar mais profundamente a coerência com o projeto de Deus.
Os textos bíblicos proclamados nesta Quarta-feira de Cinzas se tornam Palavra viva, Palavra que alimenta nossas vidas. Deus continua atuando nos acontecimentos de nossa vida diária e em nossa caminhada histórica.
A nossa atenção amorosa e a abertura do nosso coração nos ajudam a perceber, nas leituras proclamadas, a presença ativa e libertadora de Deus em nossa vida pessoal, comunitária e social. Isto nos ajuda a reconhecer, nos textos sagrados do Primeiro e do Segundo Testamentos, nossa própria vida, nossa história atual, a história de nossa comunidade, da sociedade em que vivemos. Neste tempo favorável, a Palavra proclamada na liturgia nos motiva à conversão, à mudança de vida, à intensificação da oração, do jejum, de gestos concretos de solidariedade.
Para melhor vivermos a liturgia eucarística, precisamos voltar à última ceia de Jesus. Ele celebrou a ceia na noite em que ia ser entregue. E todas as vezes que celebramos a eucaristia, há pessoas sendo entregues, sofrendo perseguição, passando fome, sendo injustiçadas em nosso país, em nossa região, em nossa cidade.
A eucaristia é sinal profético, que antecipa e apressa o Reino de Deus, que é Reino de fraternidade, de partilha. A eucaristia é sinal de um mundo sem fome, sem miséria, sem exclusão.
O projeto de uma nova sociedade, de uma nova Cultura, proposto pela Campanha da Fraternidade 2015, é anunciado na celebração da eucaristia, que é sinal profético, “escola” de cidadania, de convivência respeitosa, justiça e solidariedade; exercício de partilha e de distribuição de bens.
Sugestões para a celebração
1 – Recordamos, mais uma vez, que a Quaresma requer sobriedade, despojamento, austeridade. O clima geral é de recolhimento, retiro. De outro lado, devemos valorizar e destacar o que é realmente essencial para a celebração do mistério de Cristo, ou seja, o altar, o ambão, a cadeira presidencial e a pia batismal.
2 – A celebração da Quarta-feira de Cinzas se realiza na missa, na celebração da Palavra ou no Ofício Divino. A cinza deverá estar preparada antecipadamente, se possível, com a queima dos ramos usados no Domingo de Ramos do ano anterior. Lembram, portanto, o Cristo vitorioso sobre a morte: a palma é símbolo de vitória. As cinzas que recebemos na testa ou na cabeça são sinal de penitência, de conversão, de arrependimento e luto pelo pecado, colocando-nos no caminho de conversão em preparação à Páscoa. Colocar a vasilha na qual estão as cinzas, em um lugar visível para a assembleia.
3 – Neste dia, é feito o lançamento da Campanha da Fraternidade, de preferência, após a homilia. Sugere-se, pois, que participem da procissão de entrada uma pessoa levando a cruz, o presidente, os ministros ou a equipe de celebração e pessoas com o cartaz da CF 2015, que será apresentado na frente e posto em lugar que possa ser bem visualizado.
4 – É importante que a homilia seja bem preparada e ajude a comunidade a dar uma resposta adequada à Palavra, na celebração e na vida. É o momento do confronto entre a Palavra proclamada, que nos exorta à penitência, à mudança de vida, à retomada do caminho do Evangelho: Converte-te e crê no evangelho! Convém mostrar, na homilia, a ligação entre a imposição das cinzas e o tema da CF.
5 – Os cantos carregam a “marca” do tempo litúrgico celebrado. E os cantos de Quaresma são cantos que brotam “das profundezas do abismo”, em que nos colocaram nossos pecados (Sl 130) [2]. Dispomos de um bom repertório de cantos de Quaresma, conforme já mencionamos anteriormente. A repetição de cantos conhecidos nos ajuda a vivenciar o mistério celebrado, a fazer uma experiência penitencial. Repetindo cantos como: “Senhor, eis aqui o teu povo”, “Reconciliai-vos com Deus”, “Pecador, agora é tempo”, “Agora o tempo se cumpriu” e outros, recordamos e revivemos o Mistério que encerram estes quarenta dias, nos quais somos convidados a nos aproximar mais de Deus, na oração pessoal e comunitária, escutando sua palavra e deixando que ele purifique a nossa fé.
Obs: a) publicado pela CNBB nacional.
b) Com autorização da autora, alguns subtítulos foram alterados para a postagem.
c) imagem enviada pela autora (retirada da internet)
[1] Texto Base da CF 2015 – VER n.57-58.
[2] Hinário Litúrgico da CNBB, 2º Fascículo. Introdução. p.5.