Ex-Director do INETI (Coimbra)
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O envelhecimento reconhece-se quando a ténue luz da consciência dá conta da incapacidade para gerir o tempo que escoa. O passado nunca me preocupou mas, para gerir o presente, fiz um pacto com o futuro: nem eu fujo dele nem ele me persegue para me dizer o que devo fazer. O dia-a-dia é meu e o amanhã é deste livro dedicado à cultura salatina, da qual fizeram parte importantes grupos de fados e guitarradas.
Longe da velha torre da universidade, encontrei o prazer de ver e ouvir a forma artística de trabalhar a guitarra e a viola, respetivamente nas mãos de Jorge Tuna e Durval Moreirinhas, meus amigos desde a adolescência. Morava então na Ladeira das Alpenduradas e aquela circunstância levou-me a aprender a arranhar viola na barbearia da Associação Académica tendo, por mestre, o saudoso Fernando, irmão do celebérrimo Flávio Rodrigues. Mais tarde, mudei de residência para a R. do Loureiro, posicionada no coração da Alta e, se a Ladeira das Alpenduradas foi ninho de um dos mais prestigiados conjuntos de guitarras de Coimbra, a R. do Loureiro, a Couraça dos Apóstolos e a R. da Covas foram alforge de bons guitarristas entre os quais vale a pena citar Jorge Godinho, Hermínio Menino, António Nazaré e Assis e Santos. Aprendi a tocar viola numa Di Giorgio de concerto, que meu pai encontrou nos interstícios do recheio de uma casa solarenga. É uma viola para a qual nunca tive as devidas unhas, mas que me aceitou com a tolerância de quem sabe estar e que, esquecendo os salões de música erudita por onde passou, nunca se importou de participar nas serenatas de Coimbra, de tocar modinhas das fogueiras dos Santos Populares, folk escocês por terras do Loch Ness, merengues e coladeiras em chãos africanos, samba no Nordeste Brasileiro e acompanhar o fado de Lisboa, despautério tido, ao tempo, como um sacrilégio à nobre música de Coimbra.
O misticismo coimbrão foi conservador e até persecutório relativamente à inovação, preso que esteve a uma intelectualidade plasmada no orgulho de uma academia elitista, exotérica e ancilosada, facto que impediu a exaltação indispensável à readaptação aos tempos modernos. É certo que, no domínio da guitarra, teve os irmãos Eduardo e Ernesto Melo, na viola Rui Pato, e, no âmbito das baladas, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
– E agora? – Perguntei à Di Giorgio que, indiferente ao meu pesar, respondeu imersa num incenso áspero e maledicente, até então desconhecido.
– Estou farta do bolor dos fados de Coimbra. Prefiro “O Recado a Lisboa”, a “Gaivota”, “Se ao Menos Houvesse um Dia”, “Fado Português”, “Oh Gente da Minha Terra” e outros temas alfacinhas – disse com um arreganho próprio de quem se julga dona da virtude transformada em lenda, para acrescentar com desprezo –. Tiveste uma vida a mexericar nas minhas cordas sem o mínimo respeito pela música para que fui feita. Não sabes que não há futuro para os fados de Coimbra, enquanto não aparecer uma geração capaz de criar qualquer coisa verdadeiramente nova. Há muito que o Romantismo se foi. Coimbra precisa de um Alain Oulman e de um empresário que aposte na novidade. Há décadas que o tempo deixou de se compadecer com amadorismos.
Sofri um baque que me arrastou nas asas do desespero por entre becos sem saída. De um instante para o outro, o espaço encheu-se duma surdez que escurecia os afetos. A inocência de um amador transporta-o, frequentemente, para longe do plano da realidade. Todavia, só por delírio pretensioso era possível chegar a tamanha ingratidão. Além do mais, não passava de uma viola feita para morrer entre as velharias de um solar de aristocratas empobrecidos. Levei-a a correr o mundo, como se fosse uma amante que, após o prazer da cama, me ajudava a compor os discursos e as intervenções para os muitos congressos e conferências internacionais onde participei. Mas agora, queria trocar-me por um qualquer André Segovia capaz de dedilhar o Concerto de Aranjuez ou o Concerto Andaluz.
Abri o álbum das recordações e vi quão genuínos foram os guitarristas da Alta Salatina cujas fotos me deixaram uma saudade dificilmente esquecível. E lá estava o Jorge Godinho a mostrar a forma aveludada como tratava a guitarra, o Hermínio Menino preocupado com a sua unha guitarrista que, de vez em quando, necessitava de um cálice de Vinho do Porto para burilar a tensão, o António Nazareth a acalmá-lo e a dizer que tudo estava bem, o Rui Nazareth a rir-se, o Assis e Santos a corporizar a humildade que sempre riscou a sua vida, o Borralho com a máquina fotográfica pronto a captar instantâneos, enquanto o António Rainho segurava, preso a um sorriso plácido, um garrafão de vinho tinto e, por isso foi, por unanimidade e aclamação, eleito nosso boticário.
E por tudo isto, fico suspenso num enorme dilema. O passado é indiscutivelmente um lugar de visita, mas não é um local para se residir; porém, o presente é um tormento comandado pelo objetivo do lucro, onde o amadorismo e a filantropia só têm lugar quando o investimento é dedutível nos impostos, razão pela qual não consigo prever o amanhã.
Esclarecimento: Dado que muitas pessoas não sabem o que é a Alta Salatina, lembrei-me de fazer um parêntesis. A Alta Salatina é a parte histórica da cidade de Coimbra onde fica situada a Universidade Clássica com a sua torre, figura emblemática de Coimbra. Fica intramuros do Castelo medieval, do qual existem somente algumas remanescências.
FADOS E GUITARRADAS DE COIMBRA
SERENATA NA ACADEMIA ALMADENSE
Almada (1960)
Cantores: José Mesquita e Mário Pombo
Guitarristas: Hermínio Menino e António Nazareth
Violistas: José Horta da Silva e Rui Nazareth