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No começo foi o grito.
Anésia Pacheco e Chaves
Acendo o abajur e a lâmpada queimada não ajuda a chegar ao banheiro, lavar o rosto, olhar no espelho quebrado.
Me olhar no espelho quebrado.
Crescem rugas no meu rosto estranho. Não pertenço a este lugar? Desde ontem vejo coisas, sinto coisas e não sei o que dizer.
– Aceita este homem…
Bebo um café bem forte. Tão forte o café que a garganta arrepia as amídalas, desperta as papilas.
– … na saúde e na doença…
Tomo um banho demorado. Faço espuma com o sabão, ensaboo o corpo inteiro à procura de mim mesma.
– … respeitando-se…
Que sorte ser feriado! Não preciso levar as crianças ao colégio, a roupa na lavanderia, o cachorro para passear…
– … como seu futuro ex-marido?
Carlos veio ontem visitar as crianças com os papéis do divórcio. Devo ler com calma, assinar com calma, consultar com calma o advogado. O advogado, olhos cor do céu.
Um novo céu.
Um novo dia.
Acompanho os alunos na visita ao museu. Pedro é o maior de todos. Pedro, com seus nove anos e a cadeira de rodas.
– Tenho superpoderes, professora!
– Sim, temos todos superpoderes, Pedro. Você, na cadeira de rodas, pode chegar mais rápido. O Flávio, com os óculos, enxerga melhor. A Alice, o aparelho nos dentes… tão afiados os dentes da Alice. Mas não temos, nenhum de nós, o poder de desaparecer e aparecer em outro lugar… Por isso, meninos e meninas, eu na frente, porque somente eu sei o caminho!
O caminho diferente hoje, no museu de sempre. Os quadros de sempre e ninguém me avisou, que, no meio da exposição de Gauguin, e Van Gogh, e Tarsila do Amaral, lá estava ele, impávido, silencioso, tão silencioso como sua morte certa, como se me contasse algum segredo vindo do caixão.
– Desculpe, professora, esquecemos de avisar que esta área está reservada ao velório do Doutor Muniz.
Não quero saber do segurança, dos quadros, dos alunos, só o morto me interessa, só o morto atravessa a sala enorme sem jardins. Por que nem os girassóis, nem a pergunta de onde somos, mas para onde iremos, Sr. Muniz? O senhor agora sabe, o senhor agora entende como tudo aconteceu. Como Carlos me deixou. Como Carlos deixou de me amar amando outra, ou será que amou outra para deixar de me amar?
– São tão estranhos, os mortos…
São tão estranhos, os homens… E ali me aquietei. Ao lado da viúva. (A amante?) Da filha. (Uma bastarda?) O caixão. Um homem de bigode e barbas brancas. Ele não olhava para mim. Não olhava mais ninguém. Mas, se eu me abaixasse, se por um instante escutasse, sairia o que dos seus pulmões?
– No começo foi o grito.
Lembro aqui, sentada, parada, com os alunos pulando ao meu redor, o segurança falando ao meu redor, que ouvi aquela frase, eu li aquela frase, no começo foi o grito, em alguma exposição. Mas o que importa agora? A arte, os artistas, os alunos, se o Sr. Muniz está morto?
– Não conheço o Sr. Muniz.
E a viúva (amante?), a filha (bastarda?) seguraram a minha mão. Aqueceram a minha mão como se ao defunto aquecessem, como se ao defunto quisessem fazer ressurgir e descobrir o que há do outro lado.
– Ele é mais feliz agora.
Saberá de tudo agora? Com a viúva e a filha em minhas mãos? Que eu traí Carlos primeiro, com o carteiro, o padeiro, o açougueiro, a amiga da sua prima. Com a prima também?
– Era um homem muito justo.
E a justiça, Sr. Muniz? A quem se aplicaria, a quem se gritaria pedindo o perdão?
O Grito, Edvard Munch
Óleo sobre Tela, Têmpera e Pastel, 1893
Galeria Nacional, Oslo
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* O Grito recebeu Menção Honrosa em Março de 2012 na Categoria Contos do Concurso Literário da UBE-Canoas, RS. Link permanente: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=3514
* Escritora de poemas, contos e romances desde 2004, tem 8 livros publicados e é mestranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco, linha de pesquisa Intersemiose, com o projeto O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: um romance indicial, agostiniano e prefigural, sob a orientação da Prof. Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino. Contatos:www.patriciatenorio.com.br e [email protected].
Obs: Imagem enviada pela autora.