No nosso bate-papo de hoje, abordaremos a questão de se os textos sagrados mais importantes contém ou não elementos poéticos.
Uma dificuldade que logo aparece quando enveredamos por estas áreas é a da definição dos termos.
Sabemos que por religião queremos dizer Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, etc. Mas, por poesia? O que queremos mesmo dizer com este termo?
•Definição de Poesia
Quando escrevemos um texto comum (a exemplo deste que você lê agora), embora utilizemos o mesmo vocabulário do texto poético, eles se distinguem bastante. É que no texto comum queremos abordar um objeto, queremos fazer isso de forma direta, clara, muitas vezes expressando argumentos ou mesmo sentimentos. Na poesia, por sua vez, podemos jogar com as palavras, com seus significados, seus propósitos. Com uso do imaginário e da metáfora, a poesia é muito mais livre do que o texto que aqui estamos chamando de comum.
Peggy Rosenthal, em um texto be interessante que li (“Poetic ways of being religious”), colocou uma citação do poeta americano Karl Shapiro que eu gostaria de repassar para vocês. A citação é a seguinte:
“Poesia não é uma maneira de dizer as coisas – é uma maneira de ver as coisas.
Mas, será que vemos este tipo de discurso na Escrituras tidas como sagradas? É o que vamos ver agora.
•A Poesia nos Textos Sagrados
Hinduísmo
Os textos sagrados mais antigos do Hinduísmo são conhecidos por Vedas. A palavra “Vedas”, em sânscrito, é वेद e quer dizer conhecimento ou sabedoria. Embora não haja consenso quanto à data de produção desses textos, acredita-se que seus primeiros escritos datem de 1500 a.C. O mais importante para o nosso bate-papo, contudo, é registrar que nas Vedas podemos encontrar milhares de poemas.
Judaísmo
A Tanakh (תנ״ך, no original) é o nome que se dá ao texto sagrado do Judaísmo. Interessante é notar que o nome “Tanakh” é formado por três sílabas, sendo cada uma delas as primeiras sílabas de Torá (תורה), Neviim (נביאים), e Ketuvin (כתובים), que formam as três partes da Tanakh:
a.A Torá é formada pelos primeiros 5 livros, conhecidos como os livros de Moisés, ou Pentateuco, se preferir;
b.A Neviim é formada por 8 livros, conhecidos como livros proféticos; e
c.A Ketuvin é formada por 11 livros, conhecidos como Escritos.
No conteúdo, a Tanakh é igual ao Antigo Testamento dos cristãos, embora varie na divisão, na ordem e no número dos livros. É que a Tanakh é dividida em 24 livros, enquanto a Antigo Testamento é dividido em 39.
Mas o que nos interessa mesmo aqui é saber que há livros fortemente poéticos na Tanakh. Entre tais livros, certamente se destacam os livro de Salmos, o livro de Jó, e os Cânticos.
Os Cânticos, para citar um exemplo, é um poema lírico escrito por Salomão, enfatizando o amor entre o marido e a esposa. Ele provavelmente o escreveu por volta do ano de 965 a.C., e teve como ponto central estabelecer que o amor entre o marido e a esposa deve ser realizado no plano emocional, espiritual e também físico.
Neste sentido, o poema tem um viés erótico, que se contrapõe a ideia de que o prazer físico entre o marido e a esposa seria errado, assim como esclarece que este amor não é apenas físico, pois tem o lado espiritual e emocional, que são igualmente importantes.
Cristianismo
Conforme vimos, tudo o que foi apresentado para o Tanakh serve para cá, pois é, no conteúdo, idêntico ao Antigo Testamento.
A Bíblia, contudo, tem o Novo Testamento, que não está nas Escrituras judaicas. Sendo assim, será que o Novo Testamento tem uma vertente poética?
Bom, como Jesus era extremamente habilidoso no uso de parábolas, muitos estudiosos o consideram um grande poeta. Rosenthal, no texto a que me referi no começo deste post, propõe a passagem em Mateus 13 como um exemplo excelente desta técnica. De fato, o capítulo 13 de Mateus é cheio de parábolas, como a do semeador (13:1-23), do trigo e do joio (13:24-30), do grão de mostarda (13:31-25), etc.
Islamismo
O texto sagrado do Islamismo é o Alcorão (ou Corão), do original árabe القرآن, que foi escrito por volta dos anos 610 a 632 d.C.
O Alcorão traz uma passagem bem específica sobre poesia. Ele diz assim:
“E nós não demos ao Profeta Maomé nenhum conhecimento de poesia, nem é ele poeta. (Surat 36:69)
Apesar disso, não podemos dizer que não há poesia no Alcorão. É que eles acreditam que o texto foi ditado por Deus a Maomé (e não inspirado como creem os cristãos sobre a Bíblia). Sendo assim, os muçulmanos creem que a poesia no Alcorão é de autoria direta de Deus mesmo. Fato é que não vemos elementos poéticos como há nos outros textos, embora muitas de suas passagens sejam declamadas em cânticos, para facilitar a memorização.
•Conclusão
Vimos, assim, que os textos sagrados contém estilos poéticos em algumas de suas partes. No entanto, isso não continuou assim por muito tempo na produção da poesia religiosa. Embora tenha se mantido até o Barroco, o surgimento da Renascença faz com que poetas românticos passem a se interessar mais por si próprios do que por Deus.
Naquela época, separaram o conceito de razão do de religião, dizendo que do primeiro se originava a verdade e, do segundo, o mito.
O Século XX coloca a ciência como o ente a ser adorado, o que torna a poesia religiosa praticamente escassa.
Apenas nas últimas décadas do Século XX, com o homem totalmente perdido em si mesmo e vivendo em um ambiente de total incerteza, é que começa um clamor interno por Deus no coração de alguns poetas. Alguns deles, agora convertidos ao Cristianismo, começam a publicar poemas de exaltação a Deus e, devagar, o Cristianismo ressurge na literatura poética para registrar agora um Deus com que o poeta teve experiência, muitas vezes a experiência da conversão.
Dessa forma, analisaremos no outro post desta série a poesia religiosa na história da humanidade, com fundamento no que vimos hoje sobre a poesia nos textos sagrados.
Por agora, deixe-nos saber a sua opinião a respeito disso nos comentários logo abaixo. Permita-se sugerir que também leia os Cânticos de Salomão, apreciando uma das mais belas poesias líricas já escritas na história da humanidade.
Obs: Imagem enviada pelo autor.