ZeCarlos2

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Por que o medo do envelhecimento? Basta deixar que a vida exponha as instruções, sutilmente, gentilmente. Os jovens não conhecem o estoicismo necessário à realidade da carne murchando, enquanto as recordações vão ganhando colorido e vida. 

Pensava sobre isso enquanto deixava que o olhar vagasse pela sala calma, que guardava anos de memórias, mais parecidas a cacos espalhados pela maré. Ela conhecia exatamente a origem de cada caco. Pilhas de livros de arte subindo pela estante junto à grande janela que mostrava o escuro e estrelado céu de junho. Um grande vidro redondo contendo pedras coloridas que havia apanhado em cada cidade visitada em suas viagens.  Uma tigela de porcelana craquelada com conchas colecionadas pelas crianças décadas antes. Uma grande caixa de madeira repleta de cartões-postais enviados por pessoas em férias. E fotos. Muitas. Fotos dos filhos em diversas idades, do marido e de tantas outras pessoas, algumas já gozando seu descanso eterno e outras desaparecidas pelas esquinas do mundo. 

Precisava desfazer-se daquela tralha… rearranjar e simplificar os seus dias.

Parou diante de um enorme espelho que lhe devolveu a imagem de uma mulher atraente, aparentando meia-idade. Os cabelos clareados disfarçavam os fios brancos e eram curtos para facilitar os cuidados diários. Olhando-se lembrou que, desde a longínqua morte do marido, nunca mais se permitira olhar para outro homem como só uma mulher sabe fazer. Deixara-se ficar cuidando das paredes pintadas de branco brilhante, hoje esmaecidas. E das cortinas que foram ganhando, com o tempo, um tom creme, filtrando uma luz perolada nos dias de sol. As crianças se tornaram adultos e ganharam o mundo para formar suas próprias famílias e colecionar seus próprios cacos.

Sim, precisava desfazer-se daquela tralha… uma pilha de velhos LP’s e compactos que, há anos, não eram tocados. Havia sobre um móvel, um antigo toca-discos. Por dificuldade em encontrar algumas peças, jazia ali, mudo e empoeirado.

Começou a acomodar tudo em caixas de papelão que iriam para a calçada à espera dos coletores de lixo. Pedras, conchas, postais, fotos, livros e discos deixaram de ter importância. Até o velho Hi Fi iria para a calçada, pois o mais importante agora eram as lembranças, os bons momentos vividos. 

E uma vez livre dos cacos acumulados, talvez pudesse permitir-se viver com mais intensidade, com mais paixão. 

Homenagem a Doris Lessing (em Amor, de novo).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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