Saulo Marden 15 de junho de 2015

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“ A violência é criada pela desigualdade;
a não-violência, pela igualdade.”

Mahatma Gandhi

Os trovões anunciavam a esperança de vida, a fartura para o povo sofrido. O temporal desabou.
As crianças corriam, pulavam e gritavam sob a chuva. Para todos, motivo de alegria. O tão esperado dezenove de março, dia de São José, trouxera o inverno em toda a região do agreste nordestino.
Pela janela José Severino observava o vai-e-vem das crianças: Ah! Que falta tenho daqueles bons tempos, quantos amigos, quantas brincadeiras. As estórias assustadoras e de aventuras de caçador. Onde estará seu Bené? Será que ainda vive? Nunca mais me trouxeram notícias dele. Vou perguntar a Tonho quando passar por aqui.

José vivia limitado a quatro paredes, companheiras da solidão, e as lembranças da juventude. Se distraia com o próprio pensamento. Ficava horas a fio lembrando-se do tempo em que podia viver com vigor e energia:

“Daqui a um mês os umbuzeiros devem ter frutos maduros. Como era bom sentar à sua sombra e comer umbu, esperar a revoada dos marrecos na boca da noite, atirar de badoque, andar descalço pela terra molhada, sentir o cheiro do mato, tomar banho no riacho, beber daquela água cristalina e voltar pra casa sem se importar com a hora. Estas lembranças alimentam minha alma, trás esperanças, fortalece a resignação para não me tornar louco. Se algum dia elas me faltarem acho que enlouquecerei.”

De costas para a janela recostou-se na cama e continuou a pensar. As recordações, aos poucos, tornavam-se mais recentes:
“Será que Adelaide já casou? Ah! A vida foi malvada comigo. Podia ter sido tão feliz.”

A angustia logo se instalou e veio pesada. Para não se deixar levar ao desespero, levantou-se da cama. Caminhava de um lado para o outro no pequeno compartimento, até que o cansaço o dominou. Deitou-se, dormiu.
Filho de agricultores, muito cedo aprendeu a lidar com a terra. Os pais sobreviviam do fabrico de farinha de mandioca. No dia da torragem era o costume da região realizar uma festa. Numa dessas, conheceu Adelaide, moça morena e formosa, de andar faceiro e riso aberto. Os freqüentes passeios atearam fogo e logo José se apaixonou. O namoro durou pouco. Constantes dores de cabeça o impediam de acompanhar Adelaide. O médico local sem ter um diagnóstico formado, o mandou ir a um centro mais adiantado.
Sem saber se movimentar na capital, o pai o acompanhou na viagem que fizera de trem. Na volta, ele pensou:

 “Esta tal de Recife que muitos falam, não tem graça. É só agitação. Gente para lá e para cá, parece que não têm o que fazer! Queria ver esse pessoal lá na roça, com uma enxada na mão cavando o chão, arrancando mandioca. Se a metade dos que vi por aqui fosse para a lavoura, nossa terra seria outra.”

Os exames indicaram ser problema de vista. Precisava usar óculos. O grau da miopia era forte. Exigia grossas lentes. Após usar por uma semana, as dores de cabeça sumiram. Mas, um outro problema surgiu. O rosto se transformara. Os olhos vistos através das lentes deixavam-no envelhecido. Parecia um abobalhado. As conquistas tão freqüentes, estavam dificultadas. Adelaide, mulher dos seus sonhos e de tantos forrós, se esquivou de acompanhá-lo.
No dia de São José fazia aniversário. Na tentativa de superar os problemas, aproveitou a festa do santo dia para convidar os amigos para irem a um forró onde comemorariam o aniversário. Adelaide, num vestido estampado, acima do joelho, ombros nus, estava mais formosa do que nunca. Enciumado por vê-la dançando, deixou o bar e entrou no salão:

– Coma vai Adelaide? Faz tempo que chegou?
– Sim. O forró está é bom. E continuou a dançar sem lhe dar importância. Acabrunhado, deu meia volta. Dirigia-se ao bar improvisado com tábuas rústicas e palha de coqueiro que ficava ao fundo da palhoça, quando encontrou um amigo:
– Pedro, como vai rapaz? Sabe que hoje é meu aniversário?
– É mesmo? Então vamos beber.
– Tonho, bota aí uma da garrafada de jurubeba para mim. Hoje a bebida é por minha conta.

Mal foi servida uma rodada, pedia outra. Após tomar umas quatro, viu algumas moças encostadas na mureta de palha que delimitava o terreiro de chão batido. Com a bebida fazendo efeito, saiu ao encontro delas e tirou uma para dançar. Calçado com botas de vaqueiro saiu pisando e atropelando tudo o que lhe aparecia no caminho. No meio do salão, deparou-se, a menos de dois palmos, com Adelaide que colada dos pés a cabeça, dançava de olhos fechados sem se importar com o mundo. Aquilo para ele foi mesmo que uma punhalada. Num movimento brusco, largou a moça e saiu do salão:

– Tonho me dá mais uma.
– Vai devagar José. A noite ainda nem começou.
– Que nada. Hoje estou pra tudo.
Pedro que assistiu a cena, preocupado com o que poderia ocorrer disse:

– Irmão, o que está acontecendo? Estou admirado. Nunca o vi beber assim tão depressa!

– Você esqueceu que é o meu aniversário. Com as chuvas da tarde nossa lavoura está garantida. Por isto estou alegre.

– Será mesmo isso, José? Ou será por causa de mulher?

– Está besta homem. Beber por causa de mulher. Nem quero pensar. Aquilo é uma mulher desavergonhada.
– Deixe ela para lá. Veja quantas moças tem sobrando. Vou tirar uma para dançar. Você não vem?
– Daqui a pouco. Tonho, bota mais uma

A língua embolada dificultava a fala. Tonho notando o estado de embriaguez em que ele estava, nada mais comentou. Fez-lhe um gesto de desaprovação com a cabeça, serviu o pedido. De um único gole José virou o copo, deu um passo, cambaleou, aprumou-se, subiu as calças e entrou no salão:

– Adelaide. Esta dança é comigo.

Sem esperar resposta, tomou-a do parceiro. Aquela ação provocou uma reação imediata do outro que lhe deu um empurrão. José se livrou dos braços de Adelaide que o agarrava pela cintura e sacou da cintura uma faca. Deu cinco peixeiradas no rapaz:

– Isto é para aprender a não tomar a mulher de um homem, cabra da peste.

E saiu pelo salão ainda com a faca em punho, como se nada tivesse acontecido. Todos os olhavam admirados sem acreditar que uma pessoa tão calma era capaz de uma atitude daquela. Ao tentar subir no cavalo, os policiais o prenderam.

Três anos se passaram sem que fosse julgado do crime. A janela da cela era a única visão que o fazia lembrar-se do amargo da vida.

* * *

 

 

 

 

 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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