dom seb Pentecostes

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Páscoa e Pentecostes são momentos oportunos para reler textos do livro dos Atos dos Apóstolos.

Temos, porém, de prestar muita atenção ao que lemos, pois a Bíblia tem seu jeito próprio de falar. Às vezes, conta direitinho o que aconteceu, fatos históricos, com personagens reais e até com detalhes. Outras vezes, a partir de fatos reais, constrói uma dramatização na qual o que mais interessa não são os detalhes factuais, digamos, os detalhes históricos do fato “bruto”, mas o sentido do acontecimento para a vida do povo. Baste pensar nas histórias lendárias de Sansão, nas quais os traços maravilhosos do herói chegam ao ponto do inverossímil; para a humanidade antiga, se Deus pode tudo, não há limites para a fantasia acerca de Seus feitos grandiosos. Para descrever certas situações nas quais se toca o misterioso da presença de Deus, utiliza-se de imagens e símbolos a que os ouvintes ou leitores(as) já estavam habituados(as). Em vez de dizer simplesmente que na morte de Jesus Deus Se estava manifestando, fala de terremoto, de escuridão “em toda a terra”… sinais que desde o Primeiro Testamento já indicavam a presença do Senhor em meio a Seu povo (cf. Ex 19, 16ss). Certas vezes, chega a Bíblia até a montar a narração de cabo a rabo, cria os fatos, como se fosse peça de teatro ou romance ou novela, para falar de experiências vividas. Quem já não leu alguma vez o delicioso livrinho de Rute ou o de Jonas? São como novelas nas quais, em torno de algumas personagens, se faz uma reflexão profunda e inspirada pelo Espírito de Deus, abordando problemas bem atuais da vida do povo daquela época. Na Bíblia estão contidos diversos gêneros literários, desde a história, até a lenda e a fábula, passando por ditos, cânticos e poemas…

 Por isso, nem sempre é para interpretar tudo ao pé da letra, pensando que as coisas se passaram exatamente daquele jeito. Do contrário, podemos, sem querer, passar a imagem de que a Bíblia é história de Trancoso ou de carouchinha, “do tempo em que os bichos falavam”, assim como as árvores, como se vê, por exemplo, na história da burrinha de Balaão e na fábula de Jotão (cf. Nm 22, 22-35; Jz 9, 7-15). É preciso sempre prestar muita atenção ao jeito como o texto fala, isto é, seu “gênero literário” e observar bem as imagens e os símbolos usados em cada caso. Em alguns textos, com aparência de história, temos verdadeiros poemas de grandiosa densidade teológica, meditações construídas durante séculos, ao longo de inteiras gerações, como é o caso de Êxodo, capítulo 14, a grande epopéia da saída da servidão no Egito. No ponto de partida, na verdade, está o fato, a experiência vivida por antepassados(as), mas o texto que lemos já quer dizer muito mais do que apenas “contar”, pois pretende explicitar para as gerações vindouras o sentido que têm aqueles acontecimentos para o futuro do povo de Deus.

Nós também não falamos assim, através de figuras, imagens, metáforas? Depois de uma boa chuvarada, passada a seca, o chão molhado, as folhas verdes de novo, as gotas d’água a brilhar beijadas pelo sol, o camponês sorridente não chega a dizer que “a terra está sorrindo”? Não dizemos às vezes que estamos com o “coração na mão”, ou “o coração saindo pela boca”? Não mandamos as pessoas “plantar batata” ou “tomar banho” e elas imediatamente entendem que estamos falando de outra coisa? A linguagem tem seus códigos e senhas próprios. Certas coisas da realidade, só as expressamos por figuras e imagens. Como então falar de nossas vivências com Deus, senão pela linguagem da poesia? Pensar de outro modo é deixar-se aprisionar naquela leitura “segundo a letra!, tão condenada pelo Apóstolo São Paulo, e que “leva à morte”, porque pesada e opressiva (cf. 2Cor 3).

   Pois bem. Os Atos se abrem, mostrando-nos o grupo de Jesus a tomar consciência de que Sua ausência é só aparente.  Pela fé necessitam perceber Sua presença que continua no meio deles e delas. Por isso se diz que “uma nuvem o encobriu e não puderam mais vê-Lo” (At 1, 9). Se a figura de Jesus está agora “encoberta pela nuvem”, é  sinal de que continua presente, do jeito daquela presença que é típica de Deus, oculta, discreta, misteriosa. Na memória cultural do povo a nuvem tinha um significado bem claro. No Primeiro Testamento era sinal da presença do Senhor sobre o Monte Sinai (cf. Ex 19, 16). Por isso, na Transfiguração, Jesus é envolvido por uma nuvem celestial (cf. Mc 9, 7). O Monte das Oliveiras (cf. At 1, 12), tão famoso na tradição popular (cf. Zc 14, 4), agora evoca o Monte da Aliança, é o novo Sinai, e o pacto se faz com o Deus que Se tornou próximo e palpável em Jesus (cf. 1Jo 1, 1). A nuvem está aí, bem em cima das cabeças do grupo, para indicar que Ele, apesar de  “oculto a seus olhos”, permanece presente em seu meio. Por isso, não se lhes permite ficar olhando o céu, paralisados pela saudade, ou, quem sabe, pela desilusão de que Ele se foi e o sonho acabou, ou com a frustrada expectativa de que o relacionamento com Ele deveria ter persistido como dantes, como foi tentada a imaginar Maria Madalena quando o reencontrou no jardim (cf. Jo 20, 16-18). É urgente ir por todo o mundo, testemunhar que a vida e obra d’Ele foi verdadeiramente aprovada  por Deus. Anunciar que VIVER é caminhar do jeito como Ele viveu.

Cada dia mais até a morte de Jesus vai sendo compreendida por eles(as) como Seu último e extremo gesto de vida. Vai ficando sempre mais claro, na luz do Espírito, na convivência comunitária, vai ficando sempre mais claro que viver é viver de tal modo que se possa até morrer como Jesus, dando a vida por amor. Assim, morrer já não é morte, mas o extremo e mais denso gesto de vida (cf. Jo 5, 24; 1Jo 3, 14). Já não tem sentido falar de morte para Ele, pois esta foi “engolida” pela vitória do amor. A partir dessa evidência (por isso os evangelhos nos contam que Jesus “se fez perceber” eles(as) O “veem”), experimentam Jesus vivo em seu meio e sentem a urgência de sair a proclamar o jeito de  viver de Jesus como o Caminho (cf. At 9, 2; Jo 14, 4-7) para a convivência humana autêntica, para chegar a provar a felicidade e o bem estar, o xalôm, tão esperado por todas as gerações do povo de Deus.

A perseguição leva-os a espalhar-se pela Judéia, Samaria e, mais longe ainda, pelas diversas regiões do Império (cf. At 1, 8). Vai-se sentindo no dia a dia como a Palavra está sendo proclamada, acolhida e celebrada nas várias línguas da terra. (cf. 1Ts 1, 7ss). As nações dos quatro cantos do mundo convergem na invocação do único nome de Jesus (cf. 1Cor 1, 1-3). Assumem o mesmo Caminho. Adoram o mesmo Deus e se reconhecem como membros de uma mesma família: têm agora um só Nome e se tratam de “irmãos e irmãs”. Apesar de oriundos de etnias e nações diferentes, agora conseguem entender-se “na mesma língua”. As comunidades se sentem fruto do milagre que inverte a situação de Babel. Lá as línguas se confundiram e as pessoas já não podiam comunicar-se na língua única imposta pelo Império opressor, a bênção divina da liberdade era cada qual guardar sua identidade própria (cf. Gn 11, 1-9). Nas comunidades, a diversidade de línguas já não é mais empecilho, já não confundem pois chegam a comunicar-se e entender-se na invocação do único Nome, o de Jesus, que, longe de oprimi-las, as liberta (cf. Fl 2, 9-11), pois já não é mais a língua da dominação e da unidade forçada, mas da livre adesão.

O texto de Atos dos Apóstolos, capítulo segundo, é uma grandiosa e bonita síntese dessa experiência. As comunidades de seguidores(as) de Jesus sentem-se animadas por Seu Espírito no mesmo Caminho por Ele trilhado. Sentem-se transformadas. Suas vidas têm sido abaladas como se por elas tivesse passado violento vendaval que tudo arrasta e faz a terra tremer (cf. At 2, 2). Nada se mantém como dantes quando o Senhor passa (cf. Hab 3, 3-7). Vem-lhes natural a lembrança do Sinai. Ali, como agora, a comunidade do povo de Deus teve seu solene início. Ao propor Aliança, Deus transformava a vida de gentes marginalizadas  na solidariedade de um povo organizado. Tremores de terra, trovões e relâmpagos e nuvens eram a simbologia para expressar a grandiosidade da poderosa manifestação transformadora de Deus (cf. Ex 19, 18-).

Os mestres judeus, ao comentar as tradições sobre o Sinai, chegavam a dizer que ali a “voz” de Deus se manifestara numa bola de fogo e esta se repartira em setenta línguas (labaredas) pelas várias nações da terra.  Era a ideia de que o fogo iluminador do Senhor “enche o orbe da terra”. Reflexão que insinua uma visão ecumênica, universal da atuação de Deus no mundo.  As comunidades se sentem em continuidade com o povo da Aliança. Para elas, com a vida de Jesus, se renova e se aprofunda o pacto de Deus com Seu povo. As Igrejas (comunidades) são agora o novo Monte de Deus onde se pode fazer experiência semelhante à da força de trovões, relâmpagos, fogo e terremoto. As “línguas de fogo” são a voz do Deus da Aliança se espalhando na direção de todas as nações da terra (cf. At 2, 5-13).

O Espírito nos chega como Consolador e Advogado (cf. Jo 16). É enviado por Jesus para fortalecer e consolar as comunidades em seu confronto com o mundo. Confere a quem crê a plena certeza interior de que está salvo e defendido, e acusa o mundo do pecado e da mentira. Desmascara, com fatos reais, a ideologia segundo a qual viver em comunidade não passa de sonho e ilusão. O Espírito de Jesus é o grande dom concedido aos fiéis para se manter firmes em meio às dificuldades, conflito e perseguição. Foi por isso que o grupo de Jesus julgou normal representar a ação do Espírito nas comunidades sob o símbolo das “línguas (labaredas) de fogo”, Fogo expressa luta e combate. Em luta contra seus inimigos, Deus é como fogo devorador. Assim imagina o profeta Isaías: “A mão do Senhor se manifestará em favor dos seus servos, mas se há de indignar contra seus inimigos. Porque o Senhor vem com fogo, e seus carros parecem furacão, para desabafar sua ira com ardor e sua ameaça com línguas (labaredas) de fogo. É com fogo que o Senhor fará justiça sobre toda a terra” (66, 14-16).

No livro do Êxodo, quando Moisés se sente convocado por Deus a guiar o povo na luta contra o Faraó do Egito, desenha-se em sua imaginação uma enorme labareda de fogo que queima sem parar (cf. Ex 3, 2). Essa imagem pode mesmo ter-lhe sido sugerida por um espinheiro de verdade pegando fogo em pleno calor do deserto; algo semelhante ao que acontece com o profeta Amós ao presenciar cenas do quotidiano (praga de gafanhotos, queimada na roça, prumo de pedreiro, cesto de figos na feira)  e logo lembrar-se da sorte que aguarda o povo do país (cf. Am 8, 1-3; 7, 1-9). A chama tem forma de espada. É a espada ameaçadora de Deus, desembainhada à vista dos inimigos do povo.  A prova disto é que, na visão que tem Josué, sucessor de Moisés, literariamente paralela à cena da visão do espinheiro, substitui-se a chama pela espada brilhante ao sol (cf. Js 5, 13-15). A mesma imagem aparece quando o homem e a mulher são expulsos do Jardim; é o sinal de que a ruptura com Deus e com a Natureza está consumada. Já não podem nem mesmo se aproximar do  Éden. A entrada agora está guardada por dois querubins que fecham a passagem tendo na mão “espadas flamejantes”  — labaredas de fogo que servem de espadas – como sinal de declaração de guerra à humanidade desobediente (cf. Gn 3, 23-24). Neste texto, espada e labareda de fogo são postas em evidente conexão. Nos evangelhos, João Batista anuncia os tempos de Jesus como dias de um batismo “no Espírito e no fogo”, quando a palha será queimada e toda árvore que não der bom fruto será cortada e queimada no fogo (cf. Mt 3, 10-12).

Ao assumir o símbolo das “línguas de fogo”, as comunidades manifestam a consciência de que falar com a “língua” (chama) do Espírito, anunciar a vitória e presença de Jesus vivo, implica em entrar com “espadas (labaredas) de fogo no combate de Deus em vista de afirmar Sua realeza no mundo (cf. At 4). Agora as pessoas e as comunidades se reúnem, não mais em torno dos sacerdotes, dos escribas e doutores da lei, mas em redor de pobres pescadores galileus, a saber, gente da periferia do país. Já não segue mais os ensinamentos oficiais e a ideologia dominante. Dirigem-se por caminho alternativo, que subversão! Vivem a prática de uma nova solidariedade: partilham os bens e tomam a ceia em comum, com ação de graças (eucaristia), e atualizando em suas vidas a memória do gesto supremo de Jesus ao entregar-se por Seus amigos(as), quando o sistema o julgara indesejável. Transformam suas próprias casas em “casa de oração” onde irmãos e irmãs são acolhidos(as) e se sentem em casa. Cada casa se torna o Templo de Deus (cf. At 2, 42-47; cf. 1Cor 3, 16-17; 6, 19-20). Já não há necessidade de templos, só de casas para abrigar a nova família que se reúne em “assembléia” (igreja). No evangelho, o templo é destruído e Jesus é o Senhor da casa (cf. Mc 13, 1-27; ibd 33-37). O anúncio da Ressurreição não é mera palavra, é, sim,  nova coragem e  novo jeito de viver – em comunidade (cf. At 4, 32-37).

Essas comunidades de gente necessitada e solidária abrem-se naturalmente aos de fora. Entre eles(as) e os outros pobres e marginalizados já não se interpõe “nem ouro nem prata”. Olham-se diretamente nos olhos e fazem nascer nova solidariedade para que coxos comecem a caminhar com os próprios pés (cf. At 3).

O sistema do mundo se sente agredido por gente sem poder mundano, o combate começa. Vem a perseguição, a fuga, a cadeia e até a morte. O Espírito que os arrasta irresistivelmente transforma-os(as)  pelo fogo, fá-los falar uma nova língua que mais se parece a espada afiada e flamejante (cf. Ap 1, 12-16), joga-os(as) de cheio no fogo do combate pelo Reino. É que o Mestre é aquele que disse: “Eu vim lançar fogo sobre a terra e como gostaria que estivesse aceso!” (Lc 12, 49). “Não pensem que vim trazer paz à terra, Eu não vim trazer a paz, mas sim a espada” (Mt 10, 34).

 A consolação do Espírito não é falsa tranqüilidade de águas paradas e apodrecidas de quem está “fechado com medo” do mundo (cf. Jo 20, 19). O conforto ou “repouso no Espírito” não é o fácil sentimentalismo que aliena da vida e, particularmente, mistifica a realidade e impede de enxergar os pobres e a restauração da justiça como centro do reinado de Deus entre nós. Antes, é a firmeza profética do combate mediante a coragem das Igrejas e no coração da história. Ao individualismo sentimentalista e alienante, as primeiras comunidades cristãs preferiram a experiência de sentir-se arrebatadas pelo “violento vendaval que abala a casa” onde estavam fechados os discípulos(as), preferiram a experiência de se sentir desafiadas a empunhar a espada (labareda) de fogo do combate, como os guerreiros de Deus cantados e exaltados no Salmo 149, “com cânticos a Deus na garganta, espadas de dois gumes em suas mãos”. E nós?

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Obs: Imagem enviada pelo autor.

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