IvoneGebara

“Não ardia nosso coração quando ele nos falava no caminho”, Lc 24, 28.

Um dia desses perguntei a uma amiga, Ir. Tereza, já avançada em anos o que era a vida religiosa hoje para ela. E ela pensativa silenciou por alguns instantes e respondeu: “não sei”. Eu, inquieta e meio perplexa com a resposta, imediatamente me apressei e reagi. “Como, depois de tantos anos de vida religiosa e com um currículo de serviços grande como o seu, você ousa responder que não sabe? Você está decepcionada com o seu longo caminho ou com sua opção de vida?” “Não”. ‘Teria gostado de ter outra vida?’. “Não”. “Perdeu a esperança de lutar pela justiça e pela misericórdia? “Não”.

Ela se acomodou melhor na poltrona, sorveu um gole de chá de erva doce, terminou o biscoito que começara a comer, me deu um sorriso e iniciou sua conversa.

“Olhe você não é a primeira pessoa que me faz esta pergunta. Jovens religiosas, sacerdotes, agentes de pastoral, jornalistas, vizinhas do bairro já me fizeram essa pergunta. Cada um espera que eu responda segundo seu ponto de vista e muitas vezes ficam frustradas como você, porque respondo apenas desde o meu atual e contextual ponto de vista. Dizer ‘não sei’ é bem mais difícil do que retomar o texto do Evangelho e dizer que tento seguir dentro de minhas possibilidades a Boa Nova de Jesus. Dizer ‘não sei’ é mais complicado do que me situar a partir das teologias do pós Concílio Vaticano II. Dizer ‘não sei’ é mais complicado do que falar sobre a opção pelos pobres e o feminismo que abracei. Dizer ‘não sei’ é talvez revelar certa experiência de intimidade comigo mesma que, se por um lado me constrange, por outro, me liberta. Esta postura me faz ter consciência das muitas muletas que usei e ainda uso para justificar a minha vida mesmo tendo certa consciência de que isso faz parte da vida humana. Buscamos teorias, roupagens, regras, hábitos, exercícios, Concílios que nos dêem a segurança de sabermos o que é e para que serve nossa vida. Buscamos nos convencer que o caminho do bem que escolhemos é sem ambigüidades e contradições, que temos clareza sobre o Evangelho e o seguimento da vida de Jesus. Fazemos muitas vezes o papel do fariseu que se crê justificado. Queremos continuidade histórica e para isso queremos discípulas e discípulos que reproduzam mais ou menos a nossa vida como se a continuidade fosse sinal de eficácia e de plenitude de vida, como se a continuidade pudesse dar sentido ao nosso presente. Embora digamos que não buscamos glórias nem prestígio eles estão presentes como se estivessem embutidos em nossa busca de servir os outros. Crer que somos arautos do Reino, que fazemos a vontade de Deus, que anunciamos o Reino já implica em uma glória íntima, em uma presunção, em um orgulho, em alguma superioridade ética mesmo se bastante pequena. Nem sempre nos damos conta de que tudo isso é apenas a superfície da vida, é a moda do momento, a linguagem do momento, talvez até a ilusão ou a frustração do momento.”

“Ir. Tereza você está filosofando e eu não estou entendendo aonde você quer chegar? Dá para falar mais claro dando alguns exemplos?”

Nessa hora, Ir. Tereza olhou para as flores do desordenado pequeno jardim que podíamos avistar de sua janela, como se buscasse um pouco de repouso. Eram flores de muitas cores, misturadas ao verde da grama que crescera com a chuva. O chá tinha terminado e ela não quis outro apesar de minha oferta. Por um instante tive receio de minha forma direta de reagir e de minhas perguntas insistentes, mas ela voltou logo ao assunto e recomeçou a falar.

“O que você me pede é um caminho mais difícil para mim, pois mais uma vez, cada um quer ouvir aquilo que seus ouvidos e seu coração gostariam de ouvir. Cada um interpreta o que ouve à sua maneira… Cada um justifica o que vive e pensa como se fosse o único centro do mundo. Mas, vou tentar e se for preciso você me interrompe.

Cada experiência tem a sua importância maior ou menor para quem a vive. Nossas experiências são na realidade toda nossa vida, muito embora possamos fazer algumas coisas e algumas escolhas que dão uma tonalidade diferente ao nosso cotidiano. Mas é o dia a dia, às vezes repetitivo, marcado por conflitos, pela monotonia e pelo cansaço que é a matéria maior de nossas experiências de vida. As pessoas muitas vezes preferem as belas palavras, as histórias edificantes e as belas teorias do que as experiências vividas no cotidiano. É como se as teorias tivessem uma nobreza maior que as simples experiências. É como se as teorias pudessem ser descritas para além das contradições da realidade. E é como se o passado fosse mais importante do que o presente. Isso é muito comum na Igreja e nas Congregações religiosas. A gente fala mais daquilo que já foi ou daquilo que imaginamos ser possível e menos do que realmente se vive hoje. A gente louva mais o passado do que o presente. E mais, a gente se ilude com as próprias palavras ou com os textos da Bíblia ou com os escritos dos fundadores ou até com discursos do papa. Você pode entender quando eu digo que é a música que me sustenta? Certamente se você gostar de música será mais fácil. Ou que é a possibilidade de ler bons livros que me nutre? Ou que, às vezes, o encontro com uma pessoa que toca meu coração é parecido com a ardência do coração dos discípulos de Emaús? A gente quer eternizar aquele momento… Aquilo que está escrito é vivido de muitas e diferentes maneiras. Cada um interpreta como quer e o usa como pode conforme a perspectiva em que se situa. Se fosse só isso até que seria bom, mas de fato acabamos combatendo uns aos outros, atirando pedras só porque não são como eu, não pensam como eu, não vivem como eu. Por isso a maioria das coisas boas que se passam no coração do ser humano são pouco expressas. A gente sabe disso em teoria, mas tem medo de provar as muitas ‘boas novas’ no cotidiano de nossa vida e falar delas, pois as julgamos menos importantes do que um texto escrito.

Os pobres, a tragédia dos miseráveis, a fome das crianças, a violência crescente contra as mulheres, a guerra sem fim, a mentira e a corrupção da qual todos/as participamos, não nutre o meu coração. Ao contrário me deprime, me diminui, me faz sofrer, me entristece… Escolho a beleza que está numa pessoa, a beleza que reside, por exemplo, numa pobre mulher moradora de rua ou na grandeza de coração que percebo num fisioterapeuta que me ajuda ou no marceneiro que concertou meu armário. Sua beleza me redime, ou seja, me faz apreender a humanidade nela que não posso e não quero deixar perder-se. É por essa beleza que luto, é essa vida encantadora que está em nós e fora de nós que chama por mais vida. Não são as receitas que tenho para tirar a mulher da rua que fazem a diferença em sua e em minha vida apesar da importância disso. Mas, aquela coisa especial que uma descobriu na outra ou que uma descobriu no outro. Aquela coisa para além do número de pobres atendidos, para além das estatísticas, para além das cestas básicas distribuídas, para além da ciência dos movimentos do corpo. Isto comecei a perceber depois de muitos anos de vida… Passei por muitas fases em meio às minhas tortuosas buscas. Na mesma linha as celebrações, missas, votos, promessas, orações se perdem quando não expressam o que habita em nosso coração. O grande problema é que desconhecemos nosso coração. Estamos vivendo formas e fórmulas e colocamos nelas nossa segurança. Repetimos coisas de outros e nos alegramos porque acreditamos que estamos bem ajustadas a elas, que somos fiéis a elas. Vibramos com as luzes externas e desconhecemos as nossas pequenas lâmpadas. Nossas lâmpadas só podem ser alimentadas com o azeite que trazemos em nós. E, sinto que já não sabemos mais como encontrá-lo em nós. Temos que correr aos vendilhões do templo para comprá-lo e aí perdemos a chance de descobrir que sua fonte jorra em nós e que é ela que possibilita os encontros inesperados e a ação de graças. O caminho até o próprio eu é árduo e diferente de pessoa a pessoa. Apesar de sermos um eu nem sempre conseguimos descobrir-nos com nossa originalidade própria. Muitas vezes imagino que essa foi a busca constante de Jesus… “Encontrar-se para além das leis e da sinagoga e encontrar pessoas para além das leis, da sinagoga, dos costumes e do Império Romano.”

Desta vez fui eu que comecei a mover-me em minha poltrona e queria introduzir-me ainda mais naquilo que ouvia… Vivia um estranho sentimento, uma mistura de contentamento, de agitação interior e perplexidade. Por isso disse: mas, Ir Teresa, parece que você não leva em consideração toda a evolução e os esforços feitos por tantas mulheres e homens que ao longo da História fizeram valer o seguimento de Jesus e entregaram suas vidas para salvar vidas?”

Minha entrevistada levantou-se discretamente e serviu-se de água, olhou de novo seu jardim e voltou a sentar-se. Seus olhos brilhavam mais do que antes e pareciam até refletir nas lentes de seus óculos misturadas à luz do entardecer do dia e de sua vida. Retomou a palavra com um tom menos doce que antes.

“Não, não me esqueço da História passada. Nós continuamos essa longa História e vamos acrescentando novos capítulos a partir de novos momentos e novas influências da sociedade mais ampla. Desde os eremitas do deserto, passando pela fundação das comunidades religiosas, pela missão cultural dos monges que preservaram a cultura antiga e medieval, pelo nascimento das ordens mendicantes e dos pregadores, das congregações dedicadas à educação dos pobres e da criação de hospitais para os pobres, pela vida em grupo nos lugares mais marginalizados e abandonados, até o recente esforço de ajudar a criar na América Latina as comunidades eclesiais de base e os movimentos populares do campo e da cidade, assim como a atual luta contra o tráfico humano, tudo isso é nossa história cheia de grandezas e de mesquinharias, de contradições e harmonias. No fundo dessa longa História sempre esteve presente a crença de que algumas pessoas são chamadas por Deus a restaurar as relações humanas e a seguir Jesus pobre, célibe e obediente. Acreditaram nisso e criaram organizações, disciplinas, espiritualidades para que isso pudesse ser uma realidade. Justificaram como puderam suas escolhas de vida. Não faltaram esforços positivos, mas também rigidez, opressão e até crueldade que acabaram mostrando o quanto para alguns as leis estabelecidas se tornaram mais importantes que o amor e a misericórdia. Fomos cúmplices de muitas formas de opressão e de muitos crimes que se fizeram sem que levantássemos a nossa voz visto que acreditávamos numa ordem estabelecida como vontade de Deus e seguimento de Jesus. Não aceitamos de rever nossa crença sobre essa ordem chamada divina. Apenas ajustamos coisas, colocamos remendo velho em pano novo. Hoje essa visão vem sendo questionada de diferentes maneiras e estamos sendo convidadas/os a repensar nossas ações e motivações a partir de outras maneiras de expressar a nossa fé. É um momento difícil, sombrio e ao mesmo tempo muito rico. Creio até que apenas minorias vão aceitar esse novo desafio de nossa História”.

Ir. Tereza calou-se como se continuasse a conversar consigo mesma e lembrasse ainda de outros acontecimentos que não valia a pena partilhar comigo. Mas, eu queria saber mais, muito mais porque as perguntas que lhe fazia eram também em grande parte minhas perguntas. Continuei: “mais uma vez, as coisas concretas da vida onde estão? Já que você falou de experiências cotidianas sem contar fatos ou acontecimentos gostaria de saber um pouco mais sobre tudo isso.”

Ir. Tereza já parecia meio cansada com minhas perguntas. A noite já estava se anunciando e eu precisava pensar em terminar a entrevista.

“Pois é, quero falar agora especialmente de nós mulheres que, apesar de seguir muitas orientações masculinas e de nos submetermos à sua vontade como se fosse vontade divina, fomos capazes de uma extraordinária proximidade com os mais pobres. Fomos nós quem criamos as primeiras hortas medicinais para cuidar de nós mesmas e dos mais pobres, compusemos tonalidades diferentes de música sacra, inventamos a poesia romântica… Curamos e acolhemos doentes, cuidamos de sarnas e lombrigas de tantas crianças, fizemos partos em lugares distantes onde a presença de médicos e parteiras especializadas estavam ausentes, inventamos cozinhas comunitárias para nutrir velhos e crianças. Ensinamos a ler, escrever e contar. Aliviamos tantas dores em meio à contradição de nossas próprias vidas. Recentemente aprendemos e ensinamos aos pobres e especialmente às mulheres a lerem a Bíblia à luz dos acontecimentos atuais de forma a tornarem seu um saber que era privilégio masculino. Denunciamos estruturas de opressão e ultimamente as estruturas de opressão de gênero tão presentes em nossas organizações religiosas. Parte do povo e parte de nós conseguimos nos libertar do fatalismo religioso e da dominação masculina sobre nós e sobre a religião. Desnudamos os reis e seus deuses. Sentimo-nos dentro da história, construindo-a e modificando-a. Não éramos e não somos apenas espectadoras, mas participantes ativas. Isto nos valeu experiências lindíssimas de liberdade e de verdade, mas também sofrimentos, perseguições e a experiência do desnudamento de nossas próprias seguranças. É onde estamos agora? Falo apenas de algumas de nós, daquelas que provaram talvez algo parecido com a gravidez idosa de Isabel… Estamos um pouco sem pé nas coisas do passado e sem pé nas coisas do presente sobretudo naquilo que se chama estruturas oficiais da Igreja… É por isso, talvez, que nos incomoda repetirmos palavras velhas ou a invenção de palavras como ‘recriação’, ‘refundação’ que revelam nossa pobreza e medo diante do momento atual… Não gostaria que tivéssemos tanto medo de desaparecer ou de nos transformarmos em “comida” diferente nos dias de hoje. Algum medo da novidade existe sempre, mas muitas vezes retemos a tradição e a aprisionamos para não nos enfrentarmos aos desafios que este tempo nos lança. Há muito que pensar e falar sobre tudo isso. Vá e faça o mesmo com suas companheiras e companheiros. Temos que ter a humildade de dizer que não sabemos muita coisa, que somos ignorantes em relação aos suspiros de nosso coração e simplesmente dar-nos as mãos para manter a esperança.”

O olhar de Ir Tereza se fixou docemente no meu. Fiquei meio confusa e sem saber o que fazer ou dizer. Então quis terminar com uma última e atrevida pergunta: ‘com isso tudo que disse Ir Tereza, mais uma vez, o que é hoje a vida religiosa para você’? Agora com um sorriso entre cansado e pacificado abriu-se em doce risada e respondeu: “Não sei”…

Abril 2015.

Escritora, filósofa e teóloga

Obs: Artigo publicado em ADITAL

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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