Maria-Clara22

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)

            Como sempre, o Papa Francisco tocou no ponto sensível e expôs a ferida.  Em carta ao arcebispo de Buenos Aires, Monsenhor Mario Poli, o Pontífice o congratula pelo centésimo aniversário da Faculdade de Teologia que se encontra na Universidade Católica daquela cidade.  Sublinha Francisco a feliz coincidência deste centenário com o cinquentenário do encerramento do Concílio Vaticano II que, em suas palavras, “foi uma atualização, uma releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea” e “produziu um movimento irreversível de renovação que vem do Evangelho”.

            Parece sugerir o Papa, de forma muito oportuna, que esta coincidência não se dá em vão.  A teologia – meta linguagem sobre a Revelação e a Fé – não é nem pode ser simplesmente monótona repetição de fórmulas dogmáticas.  Nem muito menos fechada e sofisticada reflexão acadêmica, tão intrincada e complexa que foge ao diálogo com as outras disciplinas, assim como à possibilidade de compreensão das pessoas mais simples que a procuram para aprofundar seu conhecimento de Deus. Deve ser um discurso que encontra cidadania nos átrios da vida moderna e pós-moderna fazendo-se ouvir e dialogando.

            Um teólogo é, portanto, alguém que deve viver na fronteira, dirá o Papa em sua carta ao arcebispo. Por um lado, é sempre uma espécie de porta-voz da sua comunidade eclesial, pois fala em nome dela. Mas também tem a função de questionar a fé e de avaliá-la de uma forma que seja comunicável à compreensão da humanidade de seu tempo. Portanto, um teólogo é alguém aberto, crítico e questionador, que não se esquiva de envolver e integrar a fé (sua e de sua comunidade eclesial) neste processo.

            Um teólogo é, por isso mesmo, alguém que deve ter coragem de questionar a própria fé, maturidade intelectual para assimilar as reflexões de outros teólogos que o antecederam, interpretando-as e reelaborando-as.  E também deve ter sensibilidade para ouvir e sentir com a humanidade de hoje. Tudo isso sem abandonar o método científico, que é próprio de todas as ciências e constitui base mínima para uma reflexão rigorosa e séria.

            Uma teologia em êxodo: eis o que deseja o Papa. Uma reflexão que –pensada em comunhão com o povo de Deus –  tem cada vez mais se aventurado a pensar fora dos limites da instituição, em plena sociedade, inserida no chão da história e da realidade, realizando um serviço que passa pela construção da justiça e da paz, pela análise da cultura e pelo alargamento da solidariedade entre os seres humanos. A indignação para com a presença do mal no mundo, além de ser um motor apropriado para colocar em andamento as engrenagens de uma sociedade mais solidária, é também o combustível de propulsão para uma nova reflexão sobre Deus e seu agir no mundo, uma nova leitura interpretativa da Bíblia e uma nova fonte de espiritualidade.

            O Pontífice faz propostas ousadas.  Além de convocar a teologia para fora dos gabinetes e enviá-la às fronteiras do mundo e da sociedade, conclama-a a “encarregar-se dos conflitos”.  E prossegue: “Não apenas (os conflitos) que experimentamos dentro da Igreja, mas também daqueles que afetam todo o mundo e que são vividos nas ruas…” Um bom teólogo, portanto, de acordo com o Papa, não é aquele que vive dentro do imaculado e asséptico espaço de seu gabinete, rodeado de livros, computadores e aparelhos de última geração.  “Os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram a povo e a rua e, com sua reflexão, derramam unguento e vinho nas feridas dos homens”.

            Retomando algumas palavras-chaves de seu pontificado, Francisco faz votos de que a teologia seja “expressão de uma Igreja que é ´hospital de campanha’, que vive sua missão de salvação e cura no mundo”.  E deseja que a mesma seja “porta-voz da misericórdia”, pois esta não é apenas uma atitude pastoral, mas a substância mesma do Evangelho de Jesus. A teologia não é, então, apenas “intellectus fidei” (inteligência da fé), mas sobretudo  – e mais que tudo, como diz o grande teólogo salvadorenho Jon Sobrino, “intellectus amoris” (inteligência do amor).

            Interpretando a alocução do Papa, chega-se à conclusão de que toda teologia é pública, embora nunca deixe de ser confessional e eclesial.  E o é no sentido de jamais poder confinar-se a um espaço privado que a impeça de ir ao encontro das grandes questões públicas e a elas procurar responder, em diálogo e interlocução com outras disciplinas e saberes.  Ser teólogo não pode levar à instalação em zona de conforto.  Ao contrário, pensar e falar de Deus é risco permanente e implica acompanhar os processos culturais, sociais e políticos, especialmente as situações e transições difíceis tal como o aconselha o Papa Francisco.

            Bendito risco esse de ser teólogo, que nos impede a nós todos e todas que um dia respondemos afirmativamente a essa vocação, tornar-nos “intelectuais sem talento, moralistas sem bondade ou burocratas do sagrado”, como adverte séria e paternalmente Francisco de Roma.  Bendito risco esse que nos abre à escuta de uma Palavra que vem de Outro e que não nos fecha sobre nós mesmos, mas nos lança ao mundo e aos outros, em atitude de serviço humilde e diálogo constante.

 A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)

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