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 Embora possa parecer, para alguns, algo inusitado, o título desta nossa reflexão representa uma verdade cristã que deveria estar mais presente e atuante na fé dos católicos. Pois se temos uma ideia clara do que seja a Igreja, sua missão no mundo, seu sentido na história, a comunidade humana que a constitui, então aí encontraremos necessariamente também o Espírito Santo. Duas realidades indissociáveis. Vejamos.

A Igreja constitui o Povo de Deus com a finalidade de anunciar e realizar o Reino de Deus ao longo da história. Este Reino significa o projeto de Deus para uma humanidade que viva sob a soberania de Deus, a saber, na fraternidade, na partilha, no perdão, na justiça, numa palavra, no amor fraterno. Este projeto que já teve início no Antigo Testamento com a vocação do Povo eleito e com sua incumbência de levar a todas as nações a salvação de Deus, irrompe em sua fase definitiva na pessoa de Jesus Cristo, cujas palavras e ações consistem exatamente em anunciar e tornar realidade o Reino de Deus (Mc 1,15; Lc 4, 21). Sabemos que a vida de Jesus foi conflitiva porque sua mensagem e seu comportamento foram vistos como ameaças ao poder civil e às autoridades religiosas. Assim a vinda do Reino implicou sua paixão, morte e ressurreição.

Entretanto a formação dos doze apóstolos, o envio de discípulos já durante sua vida terrena para anunciar o Reino, o mandato explícito de proclama-lo a todos os povos (Mt 28,19), determinam a comunidade de seus seguidores como um grupo social cuja razão de ser é exatamente, como o foi a vida do Mestre de Nazaré, proclamar e realizar o Reino de Deus. Este é o sentido último da Igreja que explica sua existência e sua atividade. De fato, é a missão de evangelizar confere sua identidade e determina seu objetivo.

Observemos contudo que durante toda a sua vida Jesus esteve em contínua união com o Espírito Santo, procurando sempre sintonizar suas ações com a orientação interior provinda deste Espírito. Realmente, a presença atuante do Espírito não se deu apenas em sua encarnação (Mt 1,20; Lc 1,35), em certa consciência de sua união ao Pai (Lc 2,49), mas, sobretudo por ocasião de seu batismo, quando então é ungido pelo Espírito para iniciar sua missão na obediência ao Pai (Mc 1,10). Também pelo Espírito é impelido ao deserto onde vencerá a tentação de ser um Messias com poder e sucesso para ser o servo de todos como queria o Pai (Lc 4,1-13). As noites passadas em oração implicavam também a escuta do Espírito, que lhe deu forças para aceitar a paixão que se aproximava (Mc 14,36), de tal modo que o autor da Carta aos Hebreus pode afirmar que “pelo Espírito eterno se ofereceu a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14). De certo modo podemos dizer que a história de Jesus é também a história do Espírito, com tudo o que esta história nos revela do próprio agir de Deus, de seu desígnio salvífico na construção do Reino, no modo como deseja que esta sua soberania aconteça na história e torne a humanidade mais fraterna e feliz.

A comunidade eclesial é antes de tudo a comunidade dos discípulos de Jesus, dos que assumem sua missão em prol do Reino depois de sua partida deste mundo, dos que são também instruídos, iluminados e fortalecidos pelo Espírito, como o foi Jesus. Este Espírito prometido (Jo 16,7) e enviado (Jo 20,22) pelo Ressuscitado, consagra, unge e ilumina interiormente cada fiel (1Jo 27), conformando sua vida com a de Cristo: “se vivemos pelo Espírito, andemos também sob o impulso do Espírito” (Gl 5,25). Se a fé dos fiéis constitui o fundamento da Igreja, como já afirmou Santo Tomás de Aquino, esta fé não existiria sem a ação do Espírito (1Cor 12,3) e, portanto, também não haveria Igreja. É o Espírito, presente e atuante em todos os cristãos, que estabelece a comunhão entre todos (2Cor 13,13).

Esta fé possibilitada pelo Espírito nos dá acesso à Palavra de Deus como tal, à participação autêntica nos sacramentos, à esperança da ressurreição (Rm 8,11). O culto agradável a Deus consiste na oferta da própria vida (Rm 12,1), mas este culto espiritual é fruto da ação do Espírito Santo em nós (Fl 3,3). Seríamos incapazes de rezar se o Espírito não viesse em nossa ajuda (Rm 8,26), levando-nos a ousar invocar Deus como Pai (Gl 4,6; Rm 8,15), e suscitando nossas preces e pedidos (Ef 6,18). Portanto em toda a vida da Igreja está presente o Espírito, como já afirmava Santo Irineu. Deste modo é o Espírito que tanto garante a fidelidade à tradição (2Tm 1,14) quanto capacita os fiéis a enfrentarem os novos desafios postos pela história.

O Espírito é a fonte última dos carismas na Igreja, estimulando os cristãos a investirem seus diferentes talentos na construção do Reino de Deus. Deste modo a plenitude do Espírito reside na totalidade dos diversos carismas e ministérios concedidos aos fiéis. Daí resulta que todos devem poder exerce-los. Consequentemente silencia-los autoritariamente, não dar espaço para sua manifestação ou tempo para seu amadurecimento, seria como “extinguir o Espírito” (1Ts 5,19). Naturalmente não se nega a necessidade do discernimento (1Ts 5,21), que, embora seja um carisma particular (1Cor 12,10), também pode ser realizado pela comunidade (1Cor 14,29; 1Jo 4,1).

A partir destas verdades afirma o Concílio Vaticano II que a ação do Espírito possibilita um consenso na Igreja sobre questões de fé e costumes, fá-la penetrar mais profundamente a revelação e aplica-la à vida (LG 12). Este “sentido da fé” (sensus fidei) permite também, ao longo da história, um crescimento e um melhor entendimento da fé, seja pela contemplação e estudo dos fiéis, seja pela íntima compreensão que desfrutam das coisas espirituais, seja pela pregação dos bispos (DV 8). Este “sentido da fé”, patrimônio de toda a comunidade eclesial, não consiste numa vivência estática, já que a fé está continuamente confrontada e desafiada pelas mudanças socioculturais, pelos diferentes contextos nos quais estão os fiéis, pelas diversas linguagens locais, que exigem dos cristãos uma vivência da própria fé sempre em renovação e que acaba por enriquecer toda a Igreja. “Esta, pois, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de Deus” (DV 8).

Esta sensibilidade interior com a ação do Espírito Santo concede aos fiéis, segundo o mesmo Concílio, o direito e o dever de exercerem seus carismas “na liberdade do Espírito Santo, que ‘sopra onde quer’ (Jo 3,8), e ao mesmo tempo na comunhão com os irmãos em Cristo, sobretudo com seus pastores” (AA 3). Também compete a todos na Igreja “com o auxílio do Espírito Santo auscultar, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra divina” (GS 44), ou seja saber captar e discernir “os sinais dos tempos” (GS 4).

É importante enfatizar também que a vida cristã autêntica não se limita a observância de normas ou de práticas. Já S. Paulo observa que “onde está o Espírito, aí está a liberdade” (2Cor 3,17) e que os cristãos por serem guiados pelo Espírito, não estão mais sujeitos à lei (Gl 5,18). Pois a “lei de Cristo” (Gl 6,2) não é propriamente uma lei, uma norma que vem de fora, porém mais propriamente um dinamismo interior, uma força divina que nos capacita a “viver segundo o Espírito” (Gl 5,25). Em última instância trata-se do “amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5,5). Ou, como diz Santo Tomás de Aquino, é a graça do Espírito Santo, uma lei infundida, não escrita, a saber, a fé operando pelo amor. Numa palavra, a ação do Espírito Santo atinge o ser humano interiormente, animando-o a agir a partir do amor, e não por força de uma lei externa.

Observemos ainda que a ação do Espírito em Jesus o levou a uma existência na qual não faltaram incompreensões, conflitos, sofrimentos, até a entrega da própria vida. E exatamente aí é que se dá a vitória do Ressuscitado (Jo 3,14s), é aí que o grão produz frutos (Jo 12,24). Também na Igreja a autêntica ação do Espírito se opõe ao “espírito do mundo” (prestígio, poder, cobiça, vaidade). Daí as agressões, as difamações, as perseguições que experimentam os seguidores fiéis do Espírito, mesmo que sejam membros da hierarquia. A vida dos santos comprova o que afirmamos. Do que vimos até aqui aparece que a fidelidade ao Espírito é sempre primeira, seja para as autoridades eclesiásticas, seja para os demais fiéis.

Se formos indagar pela origem de todo este esforço do papa Francisco em prol da renovação da Igreja encontraríamos a resposta em sua Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho (EG). Seu objetivo é convidar toda a Igreja a reconhecer e interpretar as moções do Espírito Santo, a estudar os sinais dos tempos (EG 51), na linha de um discernimento evangélico que se nutre da luz e da força do Espírito Santo (EG 50). Nesta Exortação Apostólica aparece claramente o Espírito Santo como fonte de toda vida e atividade da Igreja. Pois a ação do Espírito Santo guia o cristão, ajuda-o a discernir o que vem de Deus (EG 119), “impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (EG 261). Para tal o cristão deve ter “uma decidida confiança no Espírito Santo”, “invoca-lo constantemente”, deixar-se conduzir por Ele (EG 280) e cultivar sempre a oração (EG 262). Assim a vida do cristão se assemelha a uma aventura, sempre desafiada pela realidade circundante e pelos apelos do Espírito, dificultada pela fragilidade da condição humana, sempre a caminho, sempre aberta a um Deus que nos desinstala e desconserta, rompendo hábitos sem vida, aprofundando nossa fé, lançando-nos em novas trilhas.

Já que todo o sentido da Igreja é a missão, sendo o Espírito Santo “a alma da Igreja evangelizadora” (EG 261), recomenda o papa Francisco que devemos crescer no discernimento de suas sendas (EG 45), sabendo “apenas que o dom de nós mesmos é necessário” (EG 279). Pois “evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo” (EG 259). No fundo o papa Francisco nos propõe uma concepção de vida cristã não tanto assentada em mandamentos e práticas, doutrinas e normas, mas na fidelidade à ação do Espírito Santo. Naturalmente uma concepção mais exigente, porém certamente mais fiel ao Evangelho.

No ponto em que chegamos aparece claro que a reforma estrutural pretendida pelo papa não tem sua raiz apenas numa atualização da Igreja à sociedade atual, mas brota do impulso renovador do Espírito, ao recuperar e valorizar as conquistas do Concílio Vaticano II (descentralização, colegialidade, laicato, ecumenismo) e pleitear maior simplicidade e sobriedade de vida para seus ministros, maior escuta do Espírito que lhes fala, maior testemunho do que pregam. E sobretudo uma Igreja que não se apoie no poder do mundo (GS 76), mas na força de Deus, e que não ponha sua segurança apenas no doutrinal ou disciplinar, mas na fidelidade ao Espírito. Portanto uma Igreja “em saída” (EG 24), uma Igreja em contínuo processo de renovação e de reforma.

Portanto, sentir com a Igreja é de fato sentir com o Espírito Santo, que a guia e anima de dentro, que a fortalece para ousar mais, que a encoraja a não temer o novo, a se converter cada dia, a trilhar novos caminhos, a se libertar da segurança e da comodidade de mentalidades e práticas herdadas, a reaprender o diálogo e o respeito ao diferente, a permitir a participação de todos, a viver realmente a comunhão fundada no Espírito (2Cor 13,13). Consequentemente resistir ao Espírito, procurar extingui-lo, equivale a dissentir da Igreja, embora previamente tudo deva passar pelo crivo do discernimento (1Ts 5,21).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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