Ina Melo 1 de maio de 2015

ina sem pensar no amanha

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A cadeira balançava e o ranger de molas se fazia ouvir. A mulher, de pele branca, cabelos lisos presos num coque dormitava. No rosto estampava um sorriso luminoso. Com que sonhava Iracy? No vai e vem do balanço, lembrava da menina de tranças pretas com laço de fita vermelha, a correr com as borboletas no seu refúgio, um recanto preferido do jardim. Quando estava cansada, deitava-se na grama verde e bem cuidada olhava para o céu e sonhava. Ou então, trancava-se na biblioteca do avô onde lia às escondidas, tudo o que alcançava com as pequeninas mãos. Depois, saía para brincar iniciando a viagem diária pelo mundo da fantasia. Assim, conheceu países distantes, heróis da mitologia e da literatura: Dante, Cervantes, Camões. Visitou castelos encantados e caminhou pelos labirintos das Pirâmides. Cresceu apaixonada pela história. Estudou na Capital e nunca saiu do país, voltando sempre para a cidade banhada pelo rio-mar. Casou, teve filhos, aos quais dedicou os melhores anos de sua vida. Continuou morando na antiga casa dos avós, simples, grande, cercada de jardins. Os filhos partiram e um dia o marido adormeceu, encantando-se. Ficou só. A casa vazia, silenciosa. Cada vez mais se refugiava no mundo dos livros. Tinha organizado as estantes de mogno por países. O mundo inteiro lhe pertencia. Conhecia historiadores, escritores, poetas. Vivos e mortos. Gostava de ler biografias, tornando-se assim, íntima das pessoas. Escrevia cartas que nunca enviava. Ganhou de presente um computador, passando então a ver o mundo com olhar de curiosidade, descobrindo quase tudo o que estava escrito nos livros. A vida tornou-se mais rica e interessante. Raramente saía ou recebia alguém. Hoje completava oitenta anos e metodicamente, como fazia sempre, caminhou pelos jardins, vendo desfilar à sua frente um mundo colorido de borboletas e passarinhos. Até mesmo as formigas lhe eram familiares. Cansada, sentou-se na cadeira e na cadência do balanço fez uma regressão. O filme de sua vida, a medida que o tempo passava, ficava mais nítido. Não lamentava o que não fez. Criou para si um mundo particular, onde realizava sonhos e desejos. O silencio era seu companheiro. Vez por outra o telefone tocava: eram os filhos que com pressa, diziam: alô! Mamãe, como estás? E desligavam. A juventude era assim, pensava com seus botões. Amigos, ainda restavam alguns, mas cada um com seus problemas de vida. Às onze horas da manhã, levantou-se tomou banho e aprontou-se para o almoço. Nunca dispensou uma taça de vinho. A sua volta havia sempre personagens importantes. Depois do repouso habitual, retornava ao jardim onde conversava com seus bichos de estimação. À noite, na penumbra da biblioteca, recolhia-se para ler e ouvir música. Mais tarde, adormecia feliz, livre e sem se preocupar se haveria ou não um amanhã. Ina Melo.Out/05.

 Obs: Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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