Dom Sebastiao Francisco e helder

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Instituto Dom Helder Camara, 27 de Agosto de 2013 

“Sonha sem medo, sem limites, sem censura e põe os teus sonhos a serviço da monotonia cotidiana, da mesmice cansativa, da eterna fragilidade, da mediocridade humana.”
“Felizes os que sonham, alimentarão a esperança de muitos e correrão o doce risco de um dia ver os sonhos realizados.”
“Não devemos temer a utopia. Gosto de repetir muitas vezes que, ao sonharmos sozinhos, limitamo-nos ao sonho. Quando sonhamos em grupo, alcançamos imediatamente a realidade. A utopia, compartilhada com milhares, é o esteio da história”.
Dom Helder Camara

O SONHO DE DOM HELDER
Sonhei que o Papa enlouquecia
E ele mesmo ateava fogo
Ao Vaticano
E à Basílica de S. Pedro…
Loucura sagrada,
Porque Deus atiçava o fogo
Que os bombeiros
Em vão Tentavam extinguir.
O Papa, louco,
Saía pelas ruas de Roma,
Dizendo adeus aos Embaixadores
Credenciados junto a ele;
Jogando a tiara no Tibre;
Espalhando pelos pobres
O dinheiro todo
Do Banco do Vaticano…
Que vergonha para os cristãos!
Para que um papa
Viva o Evangelho,
Temos que imaginá-lo
Em plena loucura!…
Meditações do Padre José
(Pseudônimo de Dom Helder Camara)

Visão de um católico com olhar anglicano e por isso ecumênico

Ao agradecer o honroso convite, começo dizendo estar muito à vontade neste ambiente que sentimos como “sagrado”, pelas marcas indeléveis das pegadas do Dom. De fato, tive a graça de conviver com ele, como tantas pessoas das que aqui se acham presentes; e até mesmo auxiliá-lo, quando acontecia de pedir ajuda e assessoria à equipe do querido DEPA (Departamento de Pesquisa e Assessoria), irmão gêmeo do ITER (Instituto de Teologia do Recife). Tenho tido também, embora em muito menor proporção, a experiência de bispo da Igreja de Cristo. E continuo católico, minha fé se mantém católica, embora vivida hoje em outra moldura institucional, pois o Anglicanismo, na verdade, se define como um dos ramos do Catolicismo, com a particularidade de nele terem lugar também certas conquistas da Reforma Protestante como dimensão complementar e nem de longe contraditória à grande comunhão católica. O mover-se do Catolicismo Romano muito me interessa, pois, além de ser de minha formação, o que aí acontece é importantíssimo para toda a Cristandade e tende a influenciar o inteiro mundo cristão. Finalmente, só conversar sobre o Dom já seria grande alegria, sendo ele permanente e imorredoura inspiração para todos e todas nós.

Evidentes semelhanças

A pessoa e a presença do papa irradiam espontânea simpatia, ao percebermos imediatamente tratar-se de alguém inteiro, de evidente sanidade psíquica. Mostra, sem véus, ser pessoa feliz, sorridente, espontânea e sem medo. Parece nada ter a esconder e nada precisa mostrar, é ele mesmo e basta. É daqueles de quem o povo diria: “Nem parece papa”, como todo mundo dizia de João XXIII. Dele, o povo miúdo das periferias de Roma chegava a exclamar: “È anche lui um poveraccio come noi, è vero che stà in Vaticano, ma lui stesso non há niente a che vedere com quella roba” (“É também ele um pobretão como nós, é certo que está no Vaticano, mas ele mesmo não tem nada a ver com aquele negócio”). No Dom, esse jeito de ser se manifestava bem quando se definia simplesmente como “uma criatura humana, irmão em fraqueza de toda a humanidade”, sem nenhuma pretensão de qualquer superioridade. Aberto à beleza da vida, às amizades, à literatura, ao cinema, à dança, à música, ao teatro, às artes e ciências em geral, e ao encantamento com o amor entre as pessoas, capaz de ter a delicadeza de parar a admirar um casal de namorados se beijando na rua,,,

Ambos são pessoas seguras de si, livres, longe de convenções, conscientes de seu carisma, capazes de falar de si e, ao mesmo tempo, ter gestos de extrema humildade, compreensivos com as outras pessoas por não terem de buscar segurança fora de si mesmos. Essa segurança os leva a encontrar-se na liberdade de dizer, com simplicidade e verdade, o que pensam. Como era lindo escutar do Dom “eu não me escandalizo com o pecado de ninguém, pois me conheço muito bem”, ou “ser santo não é ser perfeito, mas experimentar a alegria de se levantar depois de cada queda”.

A espiritualidade que em ambos se converte em traço típico da atitude pastoral brota da vivência de pobreza pessoal, na seqüela de São Francisco. Pobreza profunda de quem vive do Espírito, conforme a bem-aventurança: “Feliz quem é pobre segundo o Espírito de Deus” (Mt 5, 3). Dessa fonte brota espontânea a proximidade afetiva e até física  com os pobres, justamente tudo o que consta na famosa “Carta das Catacumbas”, dos idos do Concílio Vaticano II, inspirada em São Francisco e em João XXIII. Ambos se encontram no terreno comum de viver a espiritualidade da pobreza, da fraternidade e da compaixão por todos os seres do universo, com radical compreensão para com as fraquezas humanas. Quantas vezes não ouvimos o Dom a dizer: “No mundo há muito mais fraqueza do que pecado”, e a perguntar: “Quem não tem defeitos?”… Todos dois, profundamente preocupados  com os problemas humanos, sobretudo com ajudar os pobres a se levantar.

Papa Francisco e o Dom manifestam profunda sintonia na atitude espiritual, na atitude pastoral e no jeito de pensar, quem sabe, também por causa do ambiente eclesial que os formou e que eles mesmos, por sua vez, têm ajudado a formar, a experiência de nosso continente afroameríndio (por favor, não digamos mais “América Latina”, o nome de nossa alienação, antes, afirmemos “Afroameríndia”; por que homenagear o  conquistador “Americo Vespucci” e seus “latinos”? achemos nossa identidade na diversidade que nos caracteriza como descendentes de povos africanos, de povos aborígenes e de povos que conquistaram estas terras, estes últimos, porém, recordados em partícula átona “amer”, entre a afirmação tônica “afro-índia”; aí, sim, estaremos juntos desde o México e o Caribe até a Patagônia, passando pela região Central e o Sul). Ambiente eclesial marcado pelos estupendos “Documentos de Medellín”, nos quais o Dom foi presença eminente; pela “opção pelos pobres”, acentuada na Conferência em Puebla; pela missão e pelo discipulado de Jesus, retomados no “Documento de Aparecida”, do qual o Cardeal Bergoglio foi o redator final: concepção da missão da Igreja com ênfase particular na diaconia social e política, tendo como foco os pobres, os que pendem aqui e agora da cruz, o “Cristo vivo”, como costumava dizer o Dom e de quem o papa tem falado com insistência.

Papa Francisco manifesta grande abertura ao Ecumenismo. Carrega larga experiência de amizade e diálogo com judeus e já dá sinais evidentes de fraternidade na direção do Oriente ortodoxo e do mundo protestante. E sua atitude ecumênica ultrapassa as fronteiras do Cristianismo, indo ao encontro de outras religiões e de pessoas, grupos e movimentos que buscam a Deus sob o nome de Justiça. Lembro-me do Dom, em entrevista a queima-roupa no aeroporto de Paris, durante os anos do Concílio Vaticano II. Perguntado por sua concepção de Ecumenismo, respondeu prontamente com o que lhe estava sempre na ponta da língua: “Quando nós, das Igrejas cristãs, resolvermos assumir realmente as preocupações de Deus, que são as necessidades da vida de Seu povo, então, chegaremos a ter vergonha de nossas divisões, pois nos parecerão coisa tão pequenina”. Ambos, Papa Francisco e o Dom simbolizam e tornam efetiva uma Igreja realmente a serviço da vida dos pobres. Para eles, diria Dom Oscar Romero, “a imagem viva de Deus é o pobre de pé”, parafraseando Santo Irineu no século II d.C.:”Gloria Dei, vivens homo”, “a glória de Deus é o ser humano em plena vida”.

Preocupações manifestadas com liberdade fraterna

O papa Francisco tem dito claramente que é responsabilidade da Igreja, como povo de Deus, participar da ação política, como “forma excelente de exercício da caridade” (Pio XI) para que o poder e as estruturas sociais estejam a favor dos pobres. Sabemos que o Dom experimentou na vida grande evolução (ele chegava a falar das “conversões de um bispo”) até perceber a dimensão estrutural da pobreza e do sistema mundial fundado na injustiça estrutural. Conseguirá o papa ajudar efetivamente a Igreja a ir além do mero “amor preferencial pelos pobres” e voltar verdadeiramente à “opção pelos pobres”, que foi o grande chamado das Conferências de Medellín e de Puebla? Optar pelos pobres é muito mais do que simplesmente voltar-se para eles com simpatia e providenciar ajuda e assistência. Antes, é perceber a dimensão estrutural dos problemas mundiais e a globalidade e profundidade da crise da civilização, de tal forma que se chegue e pensar e agir a partir dos oprimidos(as), a saber, na ótica de sua libertação. É converter-se a sentir e atuar do ponto de vista dos pobres, olhar toda a realidade buscando situar-se do lugar da pobreza e da exclusão.

O papa acena com reformas. Aqui nos lembramos logo dos sonhos do Dom, de ver a Igreja levar adiante as reformas preconizadas pelo Concílio Vaticano II, das quais falara a João XXIII e Paulo VI, com sugestões muito concretas e operacionais.  Mas, se o papa deixa entrever sensibilidade espiritual, lucidez intelectual e coragem pessoal para liderar reformas profundas na Igreja, este papado se destina a enfrentar fortíssima oposição, já a partir de dentro de sua própria “corte”. Uma coisa teria sido suceder a João XXIII/Paulo VI, outra bem diferente é chegar depois de mais de trinta aos de João Paulo II/Bento XVI. Tem-se tentado de tudo para desmontar a herança do Concílio e promover sua recepção em linha até oposta ao que foi sua autêntica perspectiva renovadora; o poder está ainda mais centralizado no Vaticano, com aberta desautorização das Igrejas locais, os bispos sentindo-se espionados e muitos até paralisados; há estreitos laços com grupos conservadores, tanto grupos eclesiais, como da sociedade e dos Estados. Por isso, a preocupaçãos é se o papa terá efetivas condições políticas de realizar reformas profundas e, aliás, necessárias e urgentes para a própria honra da Igreja e glória de Deus.  Sem essas condições, o risco é termos uma Igreja mais simpática e sorridente, no seu líder máximo, mas intocada em suas estruturas “já muito atrasadas”, como ele mesmo tem dito.

Conseguirá realmente, na prática, reconhecer a diversidade do corpo eclesial e promover a unidade mediante o diálogo e o esforço de compreender as grandes diferenças entre os diversos ramos da Cristandade e entre Igrejas locais no âmbito da Igreja Católica, em países diversos, com correntes sociais, filosóficas e teológicas divergentes, culturas tão distantes umas das outras no conjunto dos vários povos, nesta época de transformações radicais? Um problema a mais é que o papa, usualmente, é posto em condição de falar a todas as pessoas e escutar muito pouca gente e, o que é pior, ser controlado por menos gente ainda, como dizia João XIII a Dom Helder. Logrará o papa estabelecer diálogo efetivo  e aberto, dispondo-se ele mesmo a escutar com atenção o que lhe pode vir de “outras” vozes que não sejam apenas o eco da sua própria? Veremos, afinal, acontecer o que preconizava Paulo VI em sua primeira encíclica, “Ecclesiam Suam”, quando afirmava que “a forma atual de nossa pregação tem de ser o diálogo”?

Algumas interrogações

O querido Dom costumava falar de colegialidade episcopal, colaboração do clero com o episcopado e corresponsabilidade de todo o povo de Deus. Logrará o papa estabelecer de fato relação de colegialidade com o episcopado e, por conseguinte, com as diversas Igrejas locais, com respeito a suas peculiaridades e ao princípio de subsidiariedade, como era a forma da Igreja durante o primeiro milênio, quando o ministério do papa, longe do centralismo de hoje, se encaixava na moldura da sinodalidade eclesial? Não deixa de ser sinal positivo sua insistência em dizer-se “Bispo de Roma”. Mas o próprio papa João Paulo II, aliás tão cioso de seu poder sobre a totalidade da Igreja, em sua carta “Ut Unum Sint”, chegou a pedir ajuda no sentido de se chegar a uma forma de primado que não fosse obstáculo à comunhão, reconhecendo assim que a forma do papado tem sido sério obstáculo ao diálogo e à unidade da Igreja.

Vem imediatamente ao pensamento a necessária reforma da Cúria Romana, algo tão intensamente presente ao coração do Dom, pois é o pivô do centralismo e autoritarismo, bem, como de certos vícios do sistema eclesiástico romano, com pesada burocracia, sentimento de poder, privilégios, carreirismo, hipocrisia, corrupção e costumes mundanos… sem falar dos mecanismos de segredo e de estimulo à rede de delação e denúncias, mesmo anônimas, contra bispos, religiosos e religiosas, teólogos e teólogas, que tem levado a perseguição e condenações. A Cúria, na percepção do Dom e de diversos padres conciliares progressistas, deveria reduzir-se a organismo de assessoria, planejamento e execução, sendo o papa rodeado por um “senado” de eminentes representantes do episcopado mundial o órgão de decisão, portanto legislativo com autoridade de mando, em sintonia com o Sínodo dos Bispos com autoridade de decisão e as Conferências Episcopais.

O Dom foi o homem dos movimentos leigos, da Ação Católica e do movimento popular de evangelização, sempre atento à mobilização política do povo. Chegará o papa a enfrentar os privilégios de que gozam na Igreja hoje movimentos conservadores e até de direita, que já não respondem mais aos bispos locais, pois, com estrutura internacional, respondem diretamente às instâncias romanas, movimentos que têm dado à Igreja orientação que vai na contramão da mentalidade do Vaticano II, alguns até com sério comprometimento político conservador e muito influentes nas cúpulas políticas e da Igreja?

Nenhum sistema de governo deriva diretamente do Evangelho e de instituição divina. Em sua organização, a Igreja, ao longo da história, tem acolhido elementos dos diversos sistemas políticos humanos: patriarcalismo sinagogal, patriarcalismo familiar, monarquia absoluta, monarquia constitucional, aristocracia, principado feudal, democracia…  No momento, a Igreja Católica Romana persiste como sistema de monarquia absoluta, com traços de aristocracia (governo dos “melhores”). Ora, teologicamente, a Igreja é “cristocracia” (soberania de Cristo), e política e juridicamente deve adotar mecanismos que encarnem o mais adequadamente possível a autoridade de Cristo e de Seu Espírito, superando formas de poder que a fazem semelhantes a sistemas opressivos, sejam ditatoriais, (com ausência de participação do povo), sejam patriarcais e androcêntricos (com exclusão das mulheres) e mesmo gerontocráticos (com ausência de forças jovens). Terá o papa condições de reverter o autoritarismo e clericalismo eclesiástico, sedimentado pelo menos nos onze últimos séculos, desde a famosa reforma de Gregório VII no século XI, abrindo a Igreja ao sopro da alegria e da liberdade, com aceitação plena de alguns mecanismos e costumes aprendidos da democracia, como, por exemplo, a liberdade de expressão e opinião, a eleição, ou ao menos indicação, de bispos pelas Igrejas locais (Paulo VI já vinha caminhando neste sentido), a liberdade de pesquisa e opinião teológica? O Dom estabelecera na diocese um sistema de governo colegiado e de participação e chegara a falar de um eventual próximo concílio que, para além da sucessão dos Apóstolos pelos bispos com o papa, refletisse sobre a sucessão de “evangelistas, pastores, doutores e mestres”. Quando veremos a Igreja como modelo de respeito aos direitos humanos, por exemplo, nos processos canônicos por razões de prática pastoral, de opinião teológica ou de posição política?

É curioso. O laicato é de longe a maioria da Igreja, o povo “leigo” coincide com a quase totalidade do “laós (povo) de Deus”. Na verdade, o clero são ministros (e poderiam ser também ministras) a serviço do povo leigo. E, no entanto, quase não tem estatuto legal e social para garantir sua “autoridade” no sentido da “exousía” bíblica de membros plenos do Corpo de Cristo, com manifestações apropriadas em todos os níveis, a começar das comunidades locais, de tal forma que se torne efetiva a bela expressão “comunhão e participação”. No momento, mesmo que se tenha avançado no reconhecimento dos direitos do povo leigo na Igreja, na prática o laicato continua a depender da concessão e do beneplácito do clero que, na verdade, é quem detém o poder e ordinariamente o centraliza em torno de si. Chegará o papa Francisco a promover realmente a autoridade teologal do laicato, reconhecida teológica e juridicamente, e na prática quotidiana da Igreja, a partir de uma visão da comunidade eclesial como “roda de dons e serviços”, a autoridade de Cristo vivenciada de maneira complementar, como ampla articulação dos carismas do Espírito de Jesus, de acordo com 1Cor 12-14? Ajudará o papa a abolir a triste imagem de pirâmide do poder eclesiástico e acostumar-nos a sentir e pensar o ministério realmente como serviço no “discipulado de iguais” e não mais como “hierarquia”? Não há dons “acima” da Igreja, só “na” Igreja. Com efeito, “poder sagrado”, princípio e soberano, só o de Cristo e de Seu Espírito; e Cristo, Senhor da Igreja, se acha em seu centro, como Servo que se abaixa a lavar os pés. É virar de cabeça para baixo toda a concepção de poder mundano, o que há de mais original no testemunho da Igreja cristã.

Terá o papa realmente possibilidade de enfrentar o tabu da condição das mulheres na Igreja? Na verdade, o que se observa  no que diz respeito a elas é que prevalece o princípio de “o máximo de serviço e o mínimo de poder”. Ora, já não é claro que estamos passando do tempo de reconhecer que urge criticar os restos de patriarcalismo e machismo arraigados em nossa cultura e levar de fato a sério o princípio bíblico de que mulher e homem são as duas faces complementares de uma mesma humanidade? “Façamos a humanidade (“adam”, o ser feito de barro) a nossa imagem e semelhança (…) e Deus criou a humanidade (adam) a sua imagem, à imagem de Deus a criou, macho e fêmea os criou” (Gn 1, 26-27), o ser humano é um plural. Em Gn 2, a expressão hebraica diz que só a mulher é o ser que pode estar “frente a frente com o homem”, é “osso de meus ossos e carne de minha carne”, “por isso ela será chamada “ixá” (mulher) porque foi tirada de “ix” (homem)”, ou seja, a mulher é a forma feminina do único tecido que é a humanidade, daí por que “se tornam uma só carne” (Gn 2, 23-24). Por exemplo, as religiosas são maioria, no entanto nunca uma mulher poderá estar à frente da Congregação para os Religiosos. Por que? Recordemos que o Dom sempre esteve cercado de mulheres e chega até a contar que pode ter ordenado, junto com um bispo francês, duas mulheres diáconas… Será razoável alegar que João Paulo II teria encerrado a discussão do assunto da ordenação de mulheres ao ministério, quando sabemos que houve diáconas na Igreja antiga e, na Idade Média, certas abadessas tinham poderes semelhantes aos de bispo, e Paulo VI disse publicamente “não saber” e convocou uma reunião internacional de teólogos e biblistas  para estudar o assunto, a qual chegou à conclusão de que não há argumento bíblico relevante que se possa alegar para defender a “incapacidade” das mulheres a exercer a liderança eclesial? E isto se deu ainda nos anos setenta, imaginem… Já não é chegado o tempo de levar a sério o princípio paulino declarado em Carta aos Gálatas: “Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois vós sois um só em Jesus Cristo”? (Gl 3, 28). Com efeito, qualquer forma de discriminação da mulher não é tempero que, mesmo não intencional, vem fortalecer o preconceito e, no limite extremo, o desprezo e a violência?

Será que o papa, em conjunto com os bispos, vai conseguir redirecionar a formação do clero, de tal forma que possamos voltar a maior profundidade espiritual e teológica, e a opções evangélicas que levem a compromissos com a vida do povo e sobretudo dos pobres, à superação do clericalismo e do autoritarismo centralizador? Que finalmente se chegue ao reconhecimento do celibato como carisma distinto do ministério, assumido livremente por quem se sentir chamado a isso, isto é, sem mecanismos duvidosos de pressão institucional, ao lado do ministério ordenado de pessoas casadas? Tal nova situação não viria em benefício do próprio celibato que acharia mais credibilidade diante do povo cristão, já tão agredido por tantos escândalos de padres de vida dupla e da praga da pedofilia que tanto desaponta e envergonha a Igreja e dificulta ao povo acreditar verdadeiramente no celibato e na autenticidade espiritual do clero?

Não está o discurso do Magistério católico demasiado centrado em questões de ética sexual e familiar, ao contrário da Bíblia que é tão discreta nessa matéria e dá ênfase sobretudo aos aspectos da ética social e política, como se vê nos livros narrativos, nos proféticos e nos evangelhos? Sabemos que o Dom foi sempre muito discreto em relação a questões de moral sexual e muito sábio e compreensivo na solução de casos concretos nesse terreno. Qual é a vigência hoje da categoria “lei natural” e seu real significado e abrangência, quando é tão forte atualmente a percepção de que o ser humano é, por sua própria natureza, por “lei natural”, portanto, eminentemente criador de cultura? Ora, a categoria “lei natural”, como oposto a cultural, tem sido usualmente argumento decisivo no discurso do magistério papal. Entendo que será difícil desafio para o atual papa aproximar o discurso eclesiástico oficial da prática efetiva das pessoas católicas em questões, tais como relação entre prazer erótico e função generativa do sexo; atividade sexual e proteção contra contaminação por HIV; como evitar AIDS, que mata milhões de pessoas, enquanto se proíbe indiscriminadamente o uso de preservativos? exercício do sexo e regulação da natalidade e métodos artificiais (preservativos, pílula e outros recursos); no tema do aborto, como ter em conta, ao mesmo tempo, defesa da vida do nascituro e preservação da vida de mulheres, sobretudo as mais pobres,  que, lamentavelmente, se veem  forçadas a abortar? no caso do divórcio, como olhar com seriedade e realismo o fato de que no Brasil, por exemplo, os casamentos duram em média pouco mais de sete anos, e a família está submetida a verdadeira experiência de laboratório com incrível diversidade de formas, enquanto o matrimônio vai perdendo a olhos vistos tanto a estabilidade quanto a sacralidade, e o sacramento se degrada em muitos ambientes a mero rito sociocultural, quando muito supersticioso, sem falar de casos de puro mercantilismo religioso? como olhar com lealdade a nova situação da juventude que já começa a exercer a sexualidade desde a adolescência e convive sexualmente bem antes de oficializar casamento? como e em que medida admitir claramente a participação de pessoas homoafetivas ou homossexuais na vida da Igreja, sem exclusões, em nome do direito à diversidade e do respeito à dignidade humana de todas as pessoas? Um fato é claro, sem dúvida, a exclusão de qualquer categoria humana, mesmo sem querer, funciona como legitimação do preconceito que leva a considerar pessoas como inferiores, indignas da convivência humana, entregando-as, assim, à sanha da perseguição e até da morte. Como realizar hoje em dia a tarefa suprema da Igreja que é formar pessoas na “mente de Cristo”, de tal forma que assumam, em liberdade, a responsabilidade de tomar decisões de consciência diante de Deus, sem se sentirem pressionadas e subjugadas pelo poder da lei, em outras palavras, como tomar em sério o “evangelho paulino” da liberdade em Cristo?

Terá o papa condições efetivas de redefinir o “Instituto para Obras de Religião”, vulgo Baco do Vaticano, de modo que não seja uma instância de contratestemunho da Igreja ao mundo? Sabemos bem que, quando estão em jogo dinheiro e poder, a luta pode ser cruel e até mortal, pois estamos em campo aberto de combate com Satanás, como se vê claramente na experiência de Jesus nos evangelhos.  O Dom tinha sua opinião sobre isso e reconhecia que “a Igreja está enredada na engrenagem internacional do dinheiro e só se libertará por milagre de Deus”. E, na intimidade, dizia temer a influência crescente na Igreja de grupos poderosos que haviam ajudado a “cobrir o rombo” do tal banco.

Como o papa vai conseguir compatibilizar seu papel de pastor, Bispo de Roma e Primaz universal a serviço da caridade com as funções e o prestígio de chefe de Estado? Em outras palavras, como vai poder colocar o Vaticano e sua autoridade moral a serviço da missão da Igreja, pondo, ao mesmo tempo, em risco sua posição de poder mundano? É sabido que o Dom tinha idéias claras sobre isso, já expostas aos papas. Em relação com isto, vem a questão espinhosa da diplomacia e da relação da Igreja com o Estado laico, particularmente em países de tradição cristã, onde a Igreja Católica ainda goza de privilégios ou pretende reivindicá-los.

Chegará o papa a ajudar a romper a atual estação de “inverno ecumênico”, dado o fechamento dos últimos mais de  trinta anos, simbolizado pelo tristemente famoso documento “Dominus Iesus”, da Sagrada Congregação da Fé, e os documentos de condenação da Teologia da Libertação, e o estreitamento do controle e condenação de grande número de teólogos e teólogas?  Conseguirá ele promover a tolerância, o diálogo e o reconhecimento do pluralismo teológico e de práticas pastorais?

Sãs muitas as perguntas. Há algum tempo li um interessante e perturbador livro, bastante radical, de um “jovem” pároco belga de mais de oitenta anos, cujo título é “Outro Cristianismo é Possível”. É que a crise global da civilização representa reviravolta profunda na cultura em que temos sido formados(as). O teólogo Padre Comblin, em seus últimos anos, usava repetir: “Temos de começar tudo de novo”. Lembremo-nos dos derradeiros escritos de Dom Clemente Isnard e do que há pouco tempo escreveram Dom Tomás Balduíno, Dom José Maria Pires e Dom Pedro Casaldáliga. Não os esqueçamos de que o Dom sonhava  com a Igreja dos Pobres, como profetizara o papa João XXIII; com o fortalecimento da relação da Igreja com os problemas da sociedade, sobretudo no que toca às vítimas do chamado e decantado “desenvolvimento”; com a intensificação  das relações ecumênicas, entre gente de Igrejas cristãs, das diferentes religiões e de diversas tendências ideológicas na sociedade em vista da defesa da Justiça e da Paz.  Chegou a sonhar com um novo concílio, mais amplamente ecumênico, quem sabe, em Jerusalém, e com um encontro mundial das várias religiões… lutava pela possibilidade da paz entre as nações, fundada na justiça, e chegava a nos anunciar a possibilidade de vida em outros planetas, o Pai em obras para refazer o nosso mundo e alargar as fronteiras e nossas ainda tão estreitas mentes…

Todas as Igrejas oremos e ajudemos o Papa Francisco a ter as condições de obedecer à voz de Jesus: “Francisco, reconstroi minha Igreja”! Assim seja!

 Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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