ZeCarlos2

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Não sei explicar, mas tenho a sensação de estar dentro de um filme e, mesmo fazendo parte dele, ser apenas um expectador.

Todas as cenas se passam diante dos meus olhos e não consigo sentir nenhuma emoção. É como se não estivesse ali. Como se não fizesse parte daquela história, como se nada pudesse fazer para mudar os fatos.

Vejo meu irmão chegando, sorridente, estendendo sua mão grande em minha direção, enquanto abre escancaradamente o outro braço, como se quisesse envolver-me num afetuoso abraço. Mas não consigo e nem ao menos me encolho. Apenas olho em seus olhos e permaneço imóvel, completamente frio àquele convite para aquela expressão de afeto e de cordialidade. Ele pára a um passo de mim e, ainda incrédulo, pergunta se não estou reconhecendo-o, completando que é meu irmão mais velho, que retorna à casa após um longo período fora.

Alheio, apenas continuo fitando seus olhos que começam a anuviar-se e, dando um passo atrás, dou meia volta e me retiro da cena. Sei que ele permaneceu ali, um embaraço incrédulo substituindo seu sorriso amplo de minutos atrás. Vai recolhendo a mão, olhando-a à procura de algum objeto estranho e fechando o outro braço, metendo nos bolsos a mão que se aprontara para acariciar minhas costas.

Ele saiu de casa num momento em que precisávamos de toda a família reunida, meus pais se separando e o lar se desfazendo. Ele preferiu manter-se neutro, sem tomar nenhum partido. Preferiu afastar-se e viver a sua vida. Sumiu pelo mundo.

Meu pai saiu de casa e também sumiu pelo mundo. Minha mãe trabalhou duro para terminar de me educar e me dar algum estudo. Jamais recebeu qualquer ajuda para isso. Quando me formei e comecei a trabalhar, ela, sentindo-se livre das obrigações a que se impôs, permitiu-se relaxar, adoecer e, aos poucos, permitiu-se morrer, deixando-me só pela primeira vez na vida.

Eu aprendi a me virar sozinho, encontrei meu caminho profissional e a mulher com quem me casei e que, durante todos estes anos, cuidou de mim e do nosso lar. Há dois anos eu a perdi para a doença. Ela se foi quieta, sem queixas, deixando-me só pela segunda vez. Sofri muito, chorei a falta das duas mulheres da minha vida, tive pena de mim e afundei na depressão, saindo dela lentamente, a custa de remédios e horas de terapia.

Retomei a minha vida, a duras penas, mas com coragem. Um dia, a surpresa (ainda não decidi se boa): ganhei um belo prêmio na loteria! Aposentei-me, comprei um apartamento confortável, apliquei o dinheiro e me dispus a, finalmente, viajar pelo mundo. Sozinho, como sempre! Eu e minhas lembranças.

Falam em perdão. Eu não tenho o que perdoar, mas também não tenho o que dividir. Minha vida foi sendo construída sobre perdas e abandonos e o que me resta agora? Não sei. Fantasmas, talvez.

Parto amanhã para o norte da Europa. Quero aproveitar o período de verão na Dinamarca, Suécia, Noruega e onde mais me der vontade. E não quero um fantasma de um passado longínquo assombrando minha vida,  (Agosto de 2011 )

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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