A liberdade dos fortes

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            Nunca consegui, pelo menos espontaneamente, ver as coisas assim, simples e puras, como efetivamente são, ou seja, sem conceituá-las. Talvez porque uma de nossas boas definições seja a de que somos, em essência, seres que conceituam. Nada é limpo, desnudo, unicamente substantivo. Havemos, pelas razões mais obscuras, de vestir tudo o que existe com a roupagem do adjetivo.

            Não poderíamos simplesmente notar as coisas e vivenciá-las, apreciá-las, contemplá-las? Não, é preciso mesmo qualificá-las, nem que o façamos com adjetivos meio transparentes e insossos, que nem precisariam vir ao pensamento.

            Também existem os que só concebem o mundo de forma bipolar, como se fossem essas pessoas fiéis adeptos de um maniqueísmo aplicável a todos os conceitos. Para eles, a água é suja ou cristalina; os mares, violentos ou calmos; os cães, ferozes ou mansos… E os seres humanos, como seriam?

            Em relação ao ser humano, existe maneira de conceituá-los, assim, de forma minimamente admissível, sem cair nos fáceis precipícios do pré-conceito e da discriminação? Talvez sim, pois, por certo, seres humanos há de vários tipos, embora existam os mais reducionistas, que os conceituam em apenas dois grupos.

            Nietzsche, entre tantos, não fugiu a isso: para ele, estavam, de um lado, os fortes e, do outro, os fracos. Seriam, pelo menos em algum sentido, constituídos de essências completamente diversas, mesmo inconciliáveis, podendo-se mesmo dizer, com os exageros próprios dos despreocupados, que homens formam duas ontologias próprias em uma mesma espécie. Seriam os que os afeitos às nostalgias do pensamento metafísico denominariam de seres-em-si incompatíveis, mesmo que soubessem que a conceituação seria sintoma de um apressamento do julgamento.

            O forte, homem de espírito livre, seria moralmente mais afirmativo do que o fraco, meramente inteligente e calculista. Verdadeiramente livre, o forte vive, simplesmente, e é feliz. Afirma a sua natureza, o seu modo de ser, a sua estrutura independente.

            Os fracos – meramente inteligentes, senão por vezes inteligentíssimos – desenvolvem a sua vida em um pano de fundo traçado pela mais temível das estratégias: a de se afirmarem na vida em função dos outros. A inteligência, para essas pessoas, é como uma ferramenta para se portarem no mundo, como um mecanismo para lhes informar quem eles devem ser em dado momento, dependendo do contexto, das pessoas presentes, dos objetivos que almejam atingir, etc. Encontram espaço, aqui, a dissimulação, o cálculo, o fingimento e a hipocrisia.

            De maneira diferente, para o forte – o homem livre -, a inteligência lhe serve de refinamento. Usar a inteligência, para ele, causa sensação semelhante àquela que as crianças demonstram no transcorrer das brincadeiras infantis: um misto de prazer e inocência. Para o homem livre, a inteligência não é um meio, mas um fim em si mesmo, embora lhe sirva, contudo, para, principalmente, promover a visão contemplativa do mundo e, independentemente do que pensa Nietzsche, do próprio Deus.

            O forte não precisa da inteligência, pois vive independentemente dela. A afirmação de sua vida, diferentemente do que ocorre com os fracos, é um processo que nasce em si, em sua sinceridade e em sua honestidade diante de si e do mundo. A vida, para o forte, é fonte de alegria, de alegria honesta.

            O fraco, por sua vez, está a todo tempo tentando postar-se no mundo para conseguir algo. Como não tem personalidade nem identidade próprias, a vida lhe é um fardo, uma tristeza, um caminho espinhoso e, por isso, ele não é livre. O fraco é aquele para quem, como disse Schopenhauer, a semana se divide em cinco dias de sofrimento e dois de tédio. Resta-lhes, assim, imitar os outros, fazer conluios, amar estratégias, tudo para sentir uma sensação falsa e transitória de alegria que não se compara à alegria do forte, que perdura.

            É verdade que, também para o forte, a vida apresenta todas as dificuldades, intempéries e vicissitudes que todos conhecem. Mas, para ele, a possibilidade de lutar contra tais dificuldades já é causa de prazer e alegria. O forte vai à guerra para lutar contra os problemas e sente prazer na própria luta. Ele ama a guerra contra os problemas e, ao final de cada batalha, passa a amar o próprio adversário, esquece tudo e continua a viver como se nada tivesse acontecido, pois jamais lhe passaria pelos quereres a idéia de remoer os eventuais dissabores e infortúnios da existência.

            Nesse sentido, o forte chega mesmo a escolher o caminho mais difícil, pois sabe que o enfrentamento da luta é o que o tornará mais vivo; é o que fará com que ele sinta o sangue correr em suas veias, que sinta a beleza extravagante que existe nas folhas, nas pedras, nos trovões, no mar, isto é, na própria existência.

            Para o fraco, qualquer problema, por menor que seja, apresenta-se como a mais selvagem das feras. Parece mesmo um muro intransponível, um obstáculo que jamais superará. O fraco, então, disfarça-se, mente, camufla-se e não enfrenta o problema. Prefere despistá-lo ou mesmo ceder até o momento em que possa unir-se com outros fracos – eis o conluio! – para, em conjunto, lutar traiçoeiramente em uma batalha que deveria ser só sua. O desfecho da peleja, nesses termos, será momentâneo e o problema certamente voltará, pois já exerce poder sobre o coração do próprio fraco.

            O forte é o verdadeiro poeta e o verdadeiro artista, que são pouquíssimos – se é que ainda existe algum! -, talvez todos desconhecidos, silenciosos e alheios a tudo o que acontece no âmbito mais destacado da rotina humana: o da futilidade, que jaz na superficialidade do que é hoje de um jeito e amanhã será de outro, ou seja, de tudo o que é transitório.

            Eis por que as coisas que perduram, definitivamente, não encontram o menor espaço nas preocupações da maioria da humanidade. Resta a eles, os fortes, viverem as suas vidas alegremente, contemplando o valor estético que reside na tragédia da coexistência, em uma só época, de tristes homens com vidas mais tristes ainda.

 Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco. Ilustração de Adonias Filho, criada especialmente para o ensaio.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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