Padre Beto 15 de maio de 2015

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A corretora de imóveis Júlia escolhe um dos melhores apartamentos que pretende comercializar a fim de passar a noite com seu companheiro. Mas uma rachadura no teto acaba impedindo a diversão. Chamados para arrombar a porta do apartamento de cima e verificar o problema, os bombeiros encontram o corpo do antigo morador em estado de decomposição. Mais tarde, contudo, é Júlia quem faz a grande descoberta: nada menos que 15 milhões de dólares, pertencentes ao falecido, estavam escondidos sob o assoalho. A partir daí, a corretora se vê confrontada com a fúria de uma vizinhança que já sabia da existência do dinheiro. Tem início, então, uma bizarra disputa na qual todos da “comunidade” estão dispostos a fazer o impossível para se apropriar do capital.  Uma mistura de comédia e suspense, o filme do diretor espanhol Alex de La Iglesia “A Comunidade” é uma parábola sobre o sistema no qual vivemos, a sociedade que se denomina como democrática, com um Estado que, no discurso, está a serviço de todos, mas que na realidade é formada por indivíduos que estão lutando por seus próprios interesses. O resultado é algo que não se parece em nada com uma comum unidade.

Platão dividia o que chamava de alma humana em três partes: razão, coragem e cobiça. Para o filósofo, enquanto a razão se constitui na capacidade de percepção do universo, a cobiça nos oferece um verdadeiro sentido a nossos atos e a coragem nos possibilita ir além de nossos limites. Platão descreve estas três dimensões da alma humana utilizando a imagem de uma biga, ou seja, daquele carro romano de duas ou quatro rodas, puxado por dois cavalos. A biga chamada “alma” possui dois cavalos extremamente selvagens. O primeiro é a cobiça e o segundo a coragem. Os dois representam os nossos impulsos, inclinações e vontades. Quem permanece no carro em pé com as rédeas da biga é a razão. Esta deve realizar a missão de controlar os cavalos orientando-os para uma determinada direção. Assim, o desafio para o ser humano é o controle da cobiça e da coragem através de sua razão.

A cobiça é necessária para todo o ser humano. Ela faz com que nos movimentemos em direção aos nossos objetivos. Um ser humano sem nenhuma cobiça corre o risco de deixar de viver, sendo simplesmente “vivido”. Sem a cobiça permitimos que a vida nos leve ao invés de levarmos a vida. A cobiça pode, porém, conduzir rapidamente o ser humano à destruição, a partir do momento em que ela deixa de ser acompanhada pelo senso crítico. A cobiça desmedida e egocêntrica cria um mundo de selvageria e barbárie. O desafio da razão é controlar a cobiça com a necessária ponderação para que ela o movimente em direção aos seus objetivos sem se tornar destrutiva a ele e aos seus semelhantes. O segundo cavalo que movimenta a biga da alma humana, a coragem, nos possibilita enfrentar qualquer situação ameaçadora. Este segundo cavalo faz com que a biga continue a movimentar-se, apesar dos obstáculos que aparecem pelo caminho. A coragem, porém, pode se transformar em uma perigosa imprudência, a partir do momento que ela nos põe em perigo desnecessariamente. A moto, por exemplo, é um veículo que nos faz ser naturalmente arrojados. Quem possui uma moto sabe muito bem que este veículo, por ser pequeno e ágil, leva o motoqueiro a dirigir com mais rapidez e manobrá-la com muito mais astúcia. Mas, ao se envolver em um acidente, o maior prejudicado, sem dúvida alguma, é o motoqueiro, pois, afinal, ele torna-se a própria estrutura do veículo. Neste caso, a moto pode levar o ser humano a ser corajoso, arrojado e rápido na pilotagem, mas esta coragem não possui um sentido que possa equivaler a um custo alto como a própria vida. A razão deve utilizar a coragem para uma ação que tenha um motivo nobre e necessário. Se a razão consegue trabalhar estas duas forças da alma humana, a cobiça e a coragem, ela atinge o que Platão chamava de sabedoria. “Se o dinheiro for a sua esperança de independência, você jamais a terá. A única segurança verdadeira consiste numa reserva de sabedoria, de experiência e de competência” (Henry Ford). Quando a cobiça torna-se ponderada e a coragem racional, automaticamente a razão humana não somente atinge a sabedoria, mas também ganha um profundo senso de justiça. Estas quatro virtudes até hoje são chamadas de virtudes cardeais e parecem obsoletas em nossa sociedade de consumo. A cobiça sem senso crítico e a coragem cega nos leva a buscar um ganho de capital e um consumo com a justificativa do sucesso individual. Hoje não somente os profissionais liberais, mas religiosos, políticos e sindicalistas pregam a prosperidade individual e parece que todos se esqueceram da prosperidade coletiva. O resultado é nos tornarmos cegos diante de toda uma sociedade que sofre com a injustiça social criada pelos seus próprios membros.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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