Ex-Director do INETI (Coimbra)
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Conto
Há muito que Zé Francisco se habituara a passar o Natal na companhia das memórias. A mulher desaparecera no tempo do PREC, embrulhada de corpo e alma numa bandeira vermelha vertida em símbolo da liberdade, deixando para trás a adolescência de Luís e Manuela. A liberdade é uma ambição social que desperta na primavera da vida adulta, imbuída do desejo de se ser dono da própria existência, e morre no ocaso da maturidade, quando a luta pelo aconchego se impõe por entre os interstícios da solidão. Xico tinha os olhos humedecidos pelo orvalho da mágoa, quando a campainha da porta tocou e, ao abri-la, deu com Guida, a sua neta mais velha. Margarida olhou o avô e, com ar comprometido, seguiu-lhe os passos até ao escritório, cujas paredes estavam atapetadas por uma enorme exposição fotográfica. Francisco jurara que daria uma descompostura a Guida mas, naquele momento, a neta afigurou-se ser a pessoa capaz de lhe aveludar a dor da ingratidão. Espinosa estava certo. «Uma emoção forte só se combate com outra emoção forte» e tornar a ver Guida, era uma emoção fortíssima:
     – Vou ao Luxemburgo passar o Natal com os meus pais e venho desejar-te boas-festas – disse sorrindo para o interior da alma que retribuiu do mesmo modo. Desculpa não ter aparecido mais cedo, mas ando perdida com o trabalho que me distribuíram na faculdade. Com quem vais passar a consoada?
     – Comigo mesmo! Será que não estou bem acompanhado? – Retorquiu Francisco, deixando correr o braço ao sabor do tempo expresso naquela gigantesca composição fotográfica.
     – As recordações não são companhia avô, são o sudário do passado e nelas não há futuro. Por que não refizeste a vida? Tenho ouvido tanta história a teu respeito.
      – E que histórias são essas?
      – Desabafos que nem sempre consegui deixar de escutar. A mãe acha que não refizeste a vida porque não admites que a avó tenha morrido e tens esperança de a voltar a ver. O tio Luís diz que tiveste uma vida dupla, razão pela qual a avó te deixou. Tiveste amantes? – Perguntou Guida, concentrando-se num conjunto de fotos sobre a Gruta da Natividade em Belém, a Via Sacra e a Igreja do Calvário em Jerusalém, uma fortaleza medieval em Acre, um congresso no Technion, em Haifa e retalhos de lazer boiando em gigantescos blocos de sal no Mar Morto. – Quem é a mulher que está contigo nas fotografias?
      – Como vai a tua pesquisa sobre pintura flamenga? – Ripostou Francisco, mudando o rumo da conversa, enquanto revia passagens da sua vida com Lisa.
     – Ando perdida, mas um colega alertou-me para um conjunto de artigos de um tal José Oliveira, que era tido como conceituado especialista na matéria. Não o conheceste?
     – Ouvi falar dele durante algum tempo! Quando voltares, podemos desenvolver esforços para o encontrar. Tens os artigos contigo?
     – Já os pedi na biblioteca, mas ainda não os arranjaram.
Francisco sempre olhou para as religiões como um capítulo da História. Tinha um enorme apreço por alguns místicos, nomeadamente Thomas Merton, aceitava que os monges pudessem conviver com o sagrado quando se entregavam à meditação, mas continuava a afirmar que Deus existe como criação humana. «A alma de um monge pode ser uma variante da gruta da natividade, mas Xico sabia que o Natal não eclode pela via da razão» tanto mais que em questões de fé, a verdade usa brincar com a ciência. «Sempre que alguém dá um passo em frente no sentido de desvendar racionalmente os eventos, a verdade dá um passo atrás conservando invariável a dimensão da ignorância». E por tudo isto, Francisco saiu desiludido da Gruta da Natividade. O que vira e ouvira não encaixava com a concepção que tinha do presépio e da estrela que guiou os Magos, que nunca se soube que tipo de fenómeno astronómico poderia ser: conjugação de planetas, passagem de um cometa, aparecimento de uma supernova, interrogações que persistem em amalgamar-se com simbolismos comerciais, como o Pai Natal e a árvore das prendas. Por estas e demais razões, Xico sempre se deu mal com a surpresa. Tudo o que de bom lhe aconteceu foi planeado ao ritmo do conta-gotas, uma espécie de singularidade que perseguia a sustentabilidade do raciocínio à boa maneira das pedras eversivas insertas na eternidade estrutural das pontes romanas.
Na véspera de Natal não queria ver ninguém. Sempre assim procedeu, mas depois de tanta insistência resolveu, contrariado, dar-se à curiosidade de ver quem tocava à campainha com tão abnegada insistência. Quando Francisco assomou à porta, um sufoco de voz ficou suspenso em olhares lucilantes que desaguavam numa bátega de ternura enxertada de abraços e lágrimas penitentes, uma espécie de tributo sobre os afectos em relaxe. Luís, Manuela, Guida e demais gente estavam postados na sua frente, envoltos numa manifestação de afecto que não se esgotava no fervor do sangue que a selava. Uma espécie de “fénix invisível” encurtava o tempo e a distância, enchendo o ar de um incenso repleto de agradável surpresa. No avesso da imagem, filhos, genros e netos apareciam de mãos dadas para abrir a porta que dá acesso à felicidade inserta nos labirintos da alma humana. E foi deste modo, que a casa do velho Xico abandonou o luto para se transformar num lugar de convívio, pleno de incenso de vida. A chávena de chá, que Francisco preparara para tomar como ceia de natal, deu lugar a uma mesa engalanada com misturas de várias culturas. E no calor da alegria, Guida interrompeu a amálgama das conversas cruzadas para perguntar ao avô:
     – Por que é que não me disseste que eras o autor dos trabalhos sobre pintura flamenga, que me foram recomendados na universidade? Fala verdade…
     – Poucos são aqueles que acreditam no que digo, excepção seja feita aos que estão nos painéis fotográficos do escritório – replicou Xico, para acrescentar com ironia – o que me admira é ter uma neta que se esquece que, nesta mesa, está plantado um olival, dado que o meu nome é José Francisco de Oliveira – asserção que redundou numa gargalhada colectiva.
E por estes desacertos e coincidências, desprovidos de racionalidade e plenos de afecto e de emoção, Francisco lembrou-se que a religião e a ciência nunca foram amigas e que a bíblia é um livro recheado de metáforas que ajudam a distinguir os bons e os maus caminhos, motivo de sobejo para que aquela casa se tivesse transformado, naquela noite, numa Gruta da Natividade. E nada do que aconteceu tinha a ver com matemática, física, astronomia e demais ciências, mas tão-somente com solidariedade, amor e um pouco de arte também.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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